A produção de curtas-metragens e o papel das escolas de cinema entre 1994-2000

Histórico

Não são poucos os artigos ensaísticos sobre a cinematografia de curta-metragem que enfatizam o nascimento do cinema neste formato, e que daí retiram a conclusão de sua importância sumária no desenvolvimento do cinema. De fato, as primeiras filmagens executadas pela companhia de Edison para o Kinetoscópio, não passavam de tiras fotográficas com 17 metros de extensão (o máximo que a tecnologia da época era capaz de produzir) que eram passadas numa velocidade inconstante, cuja duração não ultrapassava os 30 segundos.

O mesmo irá ocorrer com o fabuloso invento dos irmãos Lumière, que agora não se restringia à execução individual de um trecho cotidiano; a projeção cinematográfica permitiu a expansão democrática da imagem. De qualquer modo, os filmes dos Lumière também são "curta-metragens", embora numa concepção bastante diferente sobre aquilo que atualmente denominamos como tal. Não havendo a possibilidade da fabricação, pelo menos até aquele momento, de uma tira mais comprida de negativo fotográfico, a restrição às situações curtas era determinada mais pela inaptidão tecnológica do que pela opção estética.

A capacidade industrial seguiu o curso natural imposto pela demanda comercial: A necessidade de filmes maiores, filmagens de peças de teatro e experimentalismos que levaram os pioneiros do cinematógrafo a encontrarem uma linguagem própria e desvinculada do suporte teatral, também levou a Eastman Kodak a fabricar películas específicas para este fim, bem maiores em metragem.

O desenvolvimento da gramática própria do cinema possibilitou o aumento quantitativo da narrativa até os abusos de D.W. Griffith, que impôs mais de duas horas a uma platéias acostumada a pequenas comédias de três minutos. Embora o tempo da narrativa num longa metragem seja antes determinado pela necessidade de coerência entre as ações do que propriamente pela estimativa ambiciosa do tempo, é certo que nem todas as histórias podiam ser expandidas ao tempo do longa-metragem sem a perda da fluidez narrativa, conservando naturalmente o curta-metragem como gênero específico da narrativa breve.

Quando, a partir dos anos 20, o formato de longa-metragem tornou-se universalmente aceito, o curta tomou justamente a posição que ainda hoje lhe confere a hegemonia de caráter estético, pelo menos de maneira genérica: A experimentação. Após as experiências de Edison, Lumière, Meliès e Porter, por exemplo, na busca de uma linguagem autônoma, e que desembocaram nas produções de Eisenstein e Griffith como solidificadoras da linguagem cinematográfica, o curta-metragem passou a constituir o laboratório mais acessível e natural para o experimento e desenvolvimento da linguagem, principalmente no gênero ficcional. O outro lado do curta-metragem, o chamado documental, também se consolidou em sua forma média e longa-metragem, de maneira que o curta da facção breve no gênero também passou a servir aos mesmos fins.

O Curta na Brasil

Enquanto temos exemplos notórios deste tipo de uso, o mais comum, do curta-metragem na Europa, como "Um Cão Andaluz"(1929) de Buñuel e Dalí, no Brasil a situação era análoga, levando um de nossos maiores cineastas, Humberto Mauro, a colaborar na criação do INCE (Instituto Nacional de Cinema Educativo), em plenos anos da era Vargas, 1937. Mauro produziu mais de 300 curtas e médias metragens documentais, o que levou a uma tradição, que perdurou por duas décadas, de manter o curta-metragem como gênero documental. Mesmo sob tal estigma, ainda assim o curta-metragem ainda servia ao propósito básico de funcionar como "ensaio" para futuros longa-metragistas de ficção. Foi nesta época a promulgação da primeira lei de obrigatoriedade de exibição de curtas nacionais nos cinemas, mantendo uma série de empregos estáveis nos altos e baixos das produções de longa-metragem. Mas a falta de fiscalização e de incentivos pecuniários acabou, como tantas outras vezes, por não desenvolver o curta-metragem em seu estado potencial.

Somente na década de 60, com a maciça divulgação na imprensa do Cinema Novo, o advento de uma nova estética cinematográfica nacional, deu ao curta-metragem a renovação de um olhar antes estratificado como não-ficcional. Isso porque o Cinema Novo nasceu de curtas-metragens, "Arraial do cabo" (1960) de Paulo César Saraceni, "Couro de Gato" (1960) de Joaquim Pedro de Andrade e "O Pátio" (1959) de Glauber Rocha. O interesse por parte de um público intelectual no movimento também repercutiu na produção de curtas, retomando a antiga tradição de colocar o curta-metragem como laboratório de narrativas mais tarde expandidas na forma de longa.

Expansão

Tornou-se então o gênero curta um dos mais cobiçados pelos aspirantes a cineastas, não só pela extrema influência deixada pelos precursores do cinema novo e a conseqüente tentativa de seus jovens apreciadores em seguir os passos dos mestres, como também pelo baixo custo e possibilidade de experimentação.

Dentro desta perspectiva, podemos enunciar os dados fundamentais: Primeiro, o final da década de 50 e início de 60, que consagra volta do curta-metragem de ficção como possibilidade de experimentação estética, é concomitante com um interesse crescente no aprendizado cinematográfico que resultou no aparecimento dos cursos de cinema, ainda sob a forma de curso livre, mas que dez anos depois iria formar a base dos cursos nas faculdades. Disto decorre a significativa importância que adquiriu o curta-metragem para o processo de desenvolvimento das estéticas pós-Vera Cruz. Segundo, o contingente de técnicos e profissionais do ramo que começaram a desenvolver atividades didáticas nas universidades é fator fundamental para entendermos as diferenças estilísticas de cada escola. Por fim, já na década de 90, temos que a extinção da Embrafilme e a queda da lei de obrigatoriedade de exibição de curtas relegou ao curta-metragem, num primeiro momento, a exclusiva atividade nas escolas, e, num segundo momento, a quase que exclusiva produção cinematográfica.

É fato que, durante um bom período da cinematografia brasileira, principalmente na entrada dos anos 70, os cineastas se dividiram entre os seguidores da estética cinemanovista e os seguidores de uma estética comercial que irá desembocar na pornochanchada. Ainda merece citação uma estética híbrida daqueles que nem encontravam no cinema novo uma escola convincente, e nem tampouco eram atraídos pela vulgaridade dos temas erótico-cômicos (como por exemplo, Anselmo Duarte). Enquanto os longa-metragistas desenvolviam suas estéticas próprias, o curta adquiria espaço, gradativamente e com apoio maciço dos que por ele começaram ( Carlos Reichenbach, Sérgio Bianchi, Nélson Pereira, etc..).

As Leis

Em 1966, por exemplo, foi criado o INC (Instituto Nacional de Cinema), que retoma a antiga lei de obrigatoriedade para os curtas. Extinto em 1975, e tomando seu lugar o Concine, outra vez as leis federais contribuíram, de maneira ainda deficitária, para a exploração deste gênero, como por exemplo a lei 6.281 de 1975, que obrigava a exibição de curtas nacionais antes do longa-metragem estrangeiro. Embora não fosse inédita, tal lei agora abarcava não mais somente curtas documentais e educativos, mas também ficções de estreantes. Apesar da lei, a falta de incentivos governamentais para a produção do curta propriamente dito, bem como a lacuna na fiscalização rígida das salas exibidoras, acabou por não surtir o efeito desejado no cinema nacional, ou seja, sua expansão. Os mesmos motivos e as mesmas precariedades fizeram com que todas as leis de obrigatoriedade caíssem em desuso.

Foi somente no final da década de 80, que a lei de obrigatoriedade de exibição de curtas encontrou apoio em órgãos governamentais recém-fundados como a FCB (Fundação do Cinema Brasileiro), que, juntamente com a ABD, promoveram a fiscalização das salas exibidoras com o intuito de fazer valer a lei de obrigatoriedade dos curtas. Como conseqüência direta, a lei de incentivo (Prêmio estímulo) e a obrigatoriedade conjeturaram um novo boom do curta-metragem, com produções abundantes em todo o país, ainda que com notória supremacia Paulista, Carioca e Gaúcha. Foi por um breve período (1987-90), mas suficiente para que finalmente o curta encontrasse terreno fértil para se proliferar. Exemplos evidentes encontram-se nas produções de Jorge Furtado, "Ilha das Flores" (1989), vencedor do Festival de Berlim na categoria, e a premiação inédita em Gramado, no ano de 86, de três curta-metragens,

Mas o início da era Collor põe um fim brusco no desenvolvimento do curta-metragem. A extinção da Embrafilme, do Concine e de todos os demais órgãos regularizadores do cinema nacional, transformou o fazer cinema numa odisséia de desencontros e frustrações, relegando a produção nacional a menos que um filme por ano.

As Tendências

Neste momento, porém, já eram notáveis os efeitos da produção de curtas nas faculdades de cinema existentes no Brasil, duas em SP (ECA-USP e FAAP) e uma no Rio (UFF).
Aqui então concentro os limites deste estudo: A contribuição, bem como os estilos que permeiam estas escolas, dentro do panorama do cinema atual.

A única produtividade cinematográfica deste período recaiu, portanto, nas escolas de cinema e na realização de curta-metragens.
Não é preciso delinear todos os pormenores da importância que o curta universitário adquiriu nesta fase, pois com sua forçada exclusividade, acabou por não servir mais apenas ao experimentalismo ou ao puro exercício de linguagem; antes, adquiriu responsabilidade estética de colocar obras de consistência num mercado paralelo de exibição. O papel da universidade de Cinema nesta fase que adentra os anos 90 é de uma relevância ímpar, visto que a maior fonte de produções em curta-metragem manteve-se estável nas escolas pela própria obrigatoriedade imposta pelo MEC em conferir diploma apenas a quem participa da produção cinematográfica nos moldes acadêmicos.
O quadro que inicia os anos 90 é exatamente este: instabilidade nas produções profissionais, carência de recursos e subsídios estatais e pouquíssimos espaços para veiculação e exibição de filmes fora do ambiente acadêmico.

Este, por outro lado, ainda que com problemas de ordem administrativa sérios, não deixa de continuar a fornecer produções regulares em curta-metragens que irão lançar no mercado uma série de novos cineastas que agora começam a renovar o conteúdo do cinema brasileiro. Para satisfazer a este novo mercado, festivais e mostras foram criados, como o Festival Internacional de Curta-Metragens, promovido pelo MIS em 1990, e nestes fatores reside a verdadeira importância da produção acadêmica dos anos 90, cujos frutos ainda estamos começando a colher.

Quais seriam, portanto, as diretrizes estéticas que cada escola, enquanto estrutura física, ideológica e didática, deram ou ainda estão dando aos futuros cineastas de formação acadêmica? Este não é um problema isolado, percorre uma série de causas advindas dos próprios rumos mercadológicos e institucionais que permeiam a economia, o comércio e a cultura deste final de milênio. Uma destas causas é a própria importância dada atualmente ao diploma universitário, antes relegado apenas às profissões técnicas ou clássicas, como direito, medicina, economia ou administração. Em nossa própria cultura isto é evidente; grandes nomes de nossa literatura, como Guimarães Rosa, Graciliano Ramos ou Euclides da Cunha, tinham formações acadêmicas totalmente distintas daquelas que se relacionam às letras clássicas, e o mesmo se pode dizer de grandes cineastas, tanto internacionais como brasileiros. Os próprios rumos do mercado de trabalho agora exigem uma formação acadêmica cada vez mais especializada, o que é refletido na procura maciça pelos cursos de cinema nas faculdades existentes. Basta dizer que a nota de corte para o vestibular de cinema na ECA é atualmente uma das maiores da USP, superando até medicina, e que a média dos alunos formados em cinema pela FAAP até 1990 não ultrapassava 5 alunos, tendo hoje este número mais do que duplicado.

Estes fatos estatísticos não dizem respeito somente à procura direta pela área de interesse específica de cada aspirante à profissão, mas também pelo ressurgimento das leis de incentivo e retomada galopante de uma produção nacional de altíssima qualidade. A questão que permanece é justamente o entroncamento das duas tendências: Onde o cinema universitário atuou como essência mantenedora da produção nacional ao ponto de incentivar sua retomada, e onde a retomada da produção aumentou a procura pelo curso de cinema? Aliando a tendência mundial em especializar-se cada vez mais e mais próximo daquilo que realmente interessa ao universitário, e com a possibilidade de vislumbrar um mercado de trabalho estável e atuante no cinema, são fatores que decorrem da segunda questão, ou seja, o quanto o cinema profissional de longa-metragem influenciou e influencia a procura pelo caminho universitário. Mas a primeira questão continua em aberto: Poderia o cinema universitário, ainda que em sua parca fase intermediária entre um público e novas produções, influenciar uma retomada significativa do cinema nacional como a que atualmente vivemos? Embora não seja o único fator, não podemos negar esta contribuição. Sua base está nos seguintes fatos:

Sendo a produção a partir do governo Collor reduzida a praticamente zero, as atenções da mídia se voltaram para os talentos emergentes, personificados em estudantes universitários de cinema, como nunca antes os veículos de comunicação a tanto se dedicaram. Exemplos não faltam, como o artigo de Edmar Pereira, publicado no Jornal da Tarde de 30 de julho de 1991, entitulado "Investindo nos curtas-metragens. Sem medo do Brasil". De cara, o artigo já nos oferece o resumo do panorama cinematográfico de então: "Longas fracos. Curtas ótimos.". E continua: "...Há uma nova ou novíssima geração de cineastas que abriu com valentia seu caminho até as telas e que, ao contrário de outras anteriores, não parece tão apressada em passar do filme curto para o filme longo". Sem dúvida, este artigo nos remete diretamente à primeira questão formulada há pouco. O curta-metragem passou a carro chefe da produção cinematográfica mundial, ao ponto de passar, por breve período, a representar com fidelidade muito maior que o longa as tendências estéticas de nosso cinema. Por exemplo, em artigo publicado na Folha de S.Paulo em Dezembro de 1990, Amir Labaki nos informa de uma mostra retrospectiva de curtas-metragens brasileiros na Itália, num evento organizado pela cinemateca italiana. Ora, há muito que nem ao menos nos festivais internos, como Gramado ou Brasília, a presença do cinema brasileiro havia despertado tanto interesse, pelo menos para a cultura internacional. Faziam parte desta mostra curtas premiados como Ilha das Flores, O dia em que o Dorival encarou a Guarda (Jorge Furtado e José Pedro Goulart, 1986), Arabesco (Eliane Caffé , 1990), A Mulher do Atirador de Facas (Nilsson Villas-Boas, 1988), A Garota das Telas (1988) e Frankenstein Punk (1986), ambos de Cao Hamburger, Dov'e Meneghetti? (Beto Brant, 1989), entre vários outros, e que certamente começaram a despertar novamente o interesse de um público que viria a ser, pouco tempo depois, o principal patrocinador da safra de renovação de longas-metragens. Que mais poderíamos dizer senão mencionar o artigo de Amir Labaki na Folha de S.Paulo de 25 de Agosto de 1991, entitulado "Diretores de Festivais elogiam Curta nacional", onde simplesmente 4 diretores de festivais internacionais, convidados a assistir a segunda edição do Festival Internacional de Curta-Metragens do MIS, colocaram os curtas brasileiros "entre os melhores do mundo". A intensa propaganda gerada pela mídia sobre o curta-metragem e seus realizadores certamente influenciou empresários na batalha em prol do cinema nacional. Quando foi promulgada, por insistência da ABD, o prêmio Estímulo para realização de curta-metragens, embora as dificuldades gerais continuassem, a qualidade dos curtas tornou-se notória e abriu caminho para que as futuras leis federais e municipais de incentivo à cultura fossem facilitadas no contato de patrocínio com empresas dispostas a investir em cinema. Esta certamente foi a maior contribuição do curta-metragem, mérito justificável pelos níveis de excelência das produções apresentadas.

As Escolas

Mas a história não pára por aí. O curta-metragem enraizou-se nos últimos anos como formato independente e de expressão própria, desvinculado da necessidade do seu realizador produzir em seguida um longa (embora não deixe de ser a ambição de todo o cineasta). E entra aí justamente o papel da formação acadêmica no cinema. Muitos dos cineastas premiados em curta-metragem vieram das escolas de cinema, de tal maneira que a universidade hoje se comporta realmente como termômetro da produção. Artigos variados que saíram a partir de 1995, atestam esta tendência de maneira contundente. Primeiras páginas de cadernos culturais de importantes jornais como a Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo e o Jornal da Tarde, dedicaram-se exclusivamente a registrar as tendências dos curta-metragistas universitários, como por exemplo o artigo de Israel do Vale publicado no caderno ZAP! (JT) de 31 de Agosto de 1995, entitulado "Cinema Novo", numa clara alusão ao movimento estético mas pretendendo enfatizar uma nova safra saída das universidades. Nos mesmos moldes, o artigo de Luiz Zanin Oricchio publicado no Caderno 2 (OESP) em 17 de Março de 1996 intitula-se "Entra em cena o novo cinema brasileiro". O caderno inteiro foi praticamente dedicado à produção universitária, com alunos em curso ou formados, retratando suas dificuldades e conquistas dentro do mercado cinematográfico. Portanto, todo o processo anterior levou o curta metragem a encontrar nas escolas seu campo mais fértil e promissor, sendo bastante pertinente a atenção dada pela mídia ao cinema universitário.
Atualmente, novas escolas de nível superior têm surgido no Brasil, mas durante muitos anos, apenas 3 eram oferecidas. Que tipo de cinema, em termos estéticos, estas escolas oferecem e oferecerão às futuras produções de longa-metragem brasileiros? Esta é a questão que encerra a minúcia acerca do curta-metragem.
O Primeiro curso superior de cinema no Brasil teve, ironicamente, vida curta. Foi na Universidade de Brasília, e durou apenas três anos, de 1965 a 1968, sendo extinto por pressões políticas e exílio de vários professores, em pleno regime militar.
As demais escolas descenderam de cursos livres, sendo a primeira a ser formada como curso superior a escola de cinema da ECA, na Universidade de S.Paulo. Foi criada em 1966 através de Cícero Cristiano de Souza, que convidou Paulo Emílio Salles Gomes e Rudá de Andrade (que se tornou seu primeiro diretor) a montarem o curso universitário, ainda desvinculado da ECA. Com a anexação à Escola de Comunicação e Artes em 1971, o curso de cinema da USP tornou-se um reduto de idéias e concepções estéticas que permaneceram por muitos anos na vanguarda do cinema. Um pouco anterior à ECA é o curso livre de cinema montado pela Fundação Armando Álvares Penteado , a FAAP, mas que enquanto curso superior só veio à tona algum tempo depois. O curso livre foi trazido ao prédio da Fundação pelo cineasta Rodolpho Nanni, e aceito como curso superior em 1972. Neste meio tempo, Nélson Pereira dos Santos funda, em 1969, o curso de cinema da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Pode-se perceber, pelas datas, a extrema necessidade e procura pelos cursos de cinema num mesmo período, e que levou à formação quase concomitante de todos os pólos universitários mais importantes no Brasil.

Estéticas

As escolas de cinema, apesar da criação simultânea, vieram de fontes bastante variadas. Isto se reflete de maneira notória na história da produção de cada uma delas, além das diferenças fundamentais de interesse, sendo a UFF e a ECA públicas e a FAAP privada. Independente disso, as estéticas em que cada uma se apoia estão mais vinculadas à formação estrutural e do corpo docente do que propriamente à intenção comercial. O retrato das principais tendências de cada escola ainda hoje é evidente, sendo a influência original que sofreram, por parte dos profissionais que voltaram-se ao ensino, é ainda visível em muitas produções. O objetivo desta análise é então considerar as universidades de cinema como partes de tendências estéticas tais como aquelas que na virada dos anos 50 para os 60 permearam o cinema nacional; tal acontece com o curta metragem hoje em dia e nas universidades como produtoras em potencial dos filmes neste formato. A diversidade de talentos, tanto os mais e os menos expressivos neste panorama, oferecem a possibilidade de troca infinita na riqueza de informações com os atuais longa-metragistas, tanto os novatos como os consagrados, visto que não se pode negar a importância do curta e sua atual primazia nas universidades. As tendências estéticas aqui serão analisadas a partir da escolha de trabalhos específicos e relevantes de cada uma das escolas mencionadas, ECA, UFF e FAAP.

ECA

O curso de cinema da escola de Comunicação e Artes da USP nasceu sob o estigma do cinema novo. Não apenas pela formação de seus professores, muitos deles vanguardistas, críticos e ensaístas de alta relevância no cenário cultural brasileiro, mas também pela própria formação e característica geral da USP. Com uma história de lutas estudantis e democráticas, a USP não poderia deixar de compartilhar desta ideologia na mais panfletária das artes, o cinema, e que teve em seu quadro de professores críticos da importância de Paulo Emílio Salles Gomes. De um lado, o cinema de curta-metragem da ECA foi muito marcado pela crítica social e política, mas cujo mérito não lhe é exclusivo, e por outro, pelo estigma da inovação de linguagem sempre presente nas estéticas do cinema novo. A primeira marca é representante da classe cinematográfica como um todo, de maneira que não caracteriza propriamente seu estilo. Já no segundo, encontramos exemplos extremos ao ponto de legitimar uma estética. O modelo mais contundente de vanguarda experimental, que apela para o grotesco e o inóspito, é encontrado no cinema da ECA através da produção de "Juvenília"(1994), de Paulo Sacramento. O filme é narrado através de uma seqüência estática de fotografias onde um grupo de jovens sádicos mata e esquarteja a pauladas e picaretadas um cachorro vira-lata. A força dramática de um filme com esta temática ultrapassa a perspectiva de uma tragédia social qualquer; antes, incita-nos ao asco profundo, à náusea e ao mais completo desconforto irremediável. Este filme, embora atípico e extremado, nos reflete uma tendência comum na escola da USP em buscar vanguardas a todo o custo: Herança do cinema novo. As fotos em Preto-e-Branco, a trilha sonora de Pink Floyd, a expressão revoltantemente sádica dos atores (todos da produtora Paraísos Artificiais, de alunos e ex-alunos de cinema) convoca o espectador a uma agonia que só traduz o vazio de objetivos claros numa geração perdida e inócua. Sob este aspecto, não podemos sequer criticar as intenções do autor, pois foram prontamente cumpridas, mas a um bom custo. A ousadia do filme parece sua melhor característica, e que se prontifica a seguir a tradição vanguardista da década de 60, com a diferença fundamental que naquela estética havia um comprometimento político acirrado e onipresente, ao passo que nesta, não há senão o retrato da obra de uma juventude marcada pelo estigma de um passado convidativo mas impraticável; a vontade de retomar objetivos e ideologias, mas não encontrá-las em lugar nenhum, ao ponto de reconfortar-se na destruição da inocência. Eis o objetivo: o nada.
O filme não está fora de seu contexto, muito pelo contrário, retrata tão bem este universo que foi merecedor de três prêmios em festivais europeus, na França, Alemanha e Itália. Mas seu próprio autor se assustou com o resultado e a repercussão: Não há meio termo possível, ou se adora ou se odeia um filme deste caráter. Novamente o cinema novo está presente, pois mesmo o mais retórico dos críticos que o odeie não pode a ele ficar indiferente. "Fale mal, mas fale de mim", parece ser o subtítulo que acompanha o filme. Neste exemplo fica claro que a sombra do cinema novo acompanha as produções da ECA, pelo bom ou mal exemplo, ainda que outras produções que não as do grupo que formou a Paraísos Artificiais (cujos filmes seguem semelhante caráter) pertençam a universos mais leves, sem abrir mão do caráter psicológico e crítico que o cinema novo propôs, como "A Escada" (1996) de Philipe Barcinski ou "Nó na Garganta" (1994) de Camilo Tavares.

UFF

É interessante fazer notar as diferenças existentes entre as produções das escolas públicas de cinema, visto que elas basicamente bebem na mesma fonte. As produções cariocas da Federal Fluminense também mantém este estigma, mas a mão de Nélson Pereira dos Santos está presente na mesma medida em que Gláuber está para os paulistas da ECA. Exemplo disso é o filme de Bruno Vianna, "Geraldo Voador" (1994) que, embora tenha sido feito depois de seu autor ter cursado a faculdade, ainda reflete, tanto pela estética quanto pela equipe (basicamente formada pelos estudantes) as características mais proeminentes da instituição. Curiosamente, o filme também é rodado em Preto-e-Branco, mas possui traços distintivos evidentes. A história retrata o sonho de um garoto morador da favela carioca em voar. Seu objetivo encontra barreiras intransponíveis nas pressões da mãe, incapaz de compreendê-lo diante dos problemas sociais que vive, e pelos outros moradores do morro, que o querem colaborando com o tráfico de drogas. O sonho de Geraldo só pode ser realizado através da morte, gerando uma autêntica tragédia carioca, curta, eficiente e sobretudo bela. A presença da estética de Nélson Pereira fica evidente na concepção dos personagens que se cruzam indiscriminadamente, pelas tomadas do cenário carioca típicos, sua natureza e paisagem, e embalados pela música dos candomblés, ligeiramente sambados, não podendo fugir das referências a "Rio Zona Norte" e "Rio, 40 graus". A densidade da atuação dos personagens, a força dramática das narrativas de tensão paralelas que permeiam o filme são marcas de uma utilização segura e convicta da vertente cinemanovista de Nélson. Cita-se neste filme a coerência que a fotografia obtém por sua beleza seca de um preto-e-branco sufocante que só encontra liberdade na morte que redime o personagem. "Geraldo Voador" só obteve premiações dentro de território nacional, mas foram muitas e merecidas.

FAAP

Numa outra ponta está a faculdade de cinema da Fundação Armando Álvares Penteado, com uma estética muito diversa e igualmente notória. Muito se deve ao fato de admitir um outro tipo de público, em vista de ser uma faculdade paga, mas o fator de maior diferencial certamente reside na formação que os alunos obtiveram de outras vertentes profissionais. Enquanto as universidades públicas foram constituídas por intelectuais, jornalistas, técnicos e acadêmicos, ativos ou não no mercado cinematográfico, a FAAP montou seu contingente de professores com basicamente técnicos experientes, mas com pouca ou nenhuma formação acadêmica. A isso acrescenta-se que este contingente técnico é formado por profissionais que atuaram muito antes do cinema novo, como o fotógrafo Juan Carlos Landini (que trabalhou na Maristela), o montador Máximo Barro, também atuante e respeitado como um dos maiores pesquisadores de cinema brasileiro da atualidade, e que trabalhou desde o final da Vera Cruz, os diretores Rodolpho Nanni ("O saci", 1953, e "Cordélia, Cordélia", 1971), Milton Amaral (que dirigiu para Mazzaropi "Jeca Tatu" e "O Corintiano", entre outros) e o animador Milton Costa. Como se observa, na própria formação do corpo docente, a FAAP já abre uma diferença marcante para todos os lados, desde a formação intelectual até a experiência profissional. A estética cinemanovista é traçada não como um panfleto retórico, mas como uma tendência entre várias outras que estes técnicos viveram dentro de seus trabalhos enquanto profissionais competentes. Portanto, há uma diversidade maior de estilos dentro da produção da FAAP, também conseqüência de um curso pago que não exige período (e nem dedicação) integral como as outras duas. Mas, em se tratando de uma faculdade de fins comerciais, o equipamento disponível para uso dos alunos supera em número e qualidade o das outras duas juntas; vantagem que nem sempre é condizente com o nível das produções apresentadas. Mas, frente a este panorama absolutamente diverso, ainda assim podemos traçar uma linha típica que permeia as produções faapianas. Durante um bom período, o descaso da diretoria frente ao curso causou efeitos evidentes de igual descaso para a produção dos curtas; uma vez resolvido o problema burocrático (que ainda atrasa a máquina estatal e impede a renovação das outras universidades), o curta-metragem da FAAP adquiriu sua cara própria, também despojada de críticas tão acirradas (se comparada às demais) e francamente tendenciosa para o exercício da narrativa pura e simples: É o caso de filmes como "O Relógio do Hospital" (1993), de Tito Lívio e Sérgio Kieling, baseados em Graciliano Ramos e "M.U.R.O." (1994) de Marcelo Cordeiro, baseado em Sartre. Só a escolha, neste último, de uma base em literatura estrangeira, já seria patente a confirmar o despojamento da FAAP em buscar a todo o custo uma estética ufanista, como fizeram os cinemanovistas e os alunos das escolas públicas por eles influenciados. Mas talvez o mais típico filme faapiano, que se destaca pela coragem e rara incidência do tema, a comédia, é "Coentro e Quiabo e a Carne de Sol" (1995) de Eduardo Abad. Só no título já se encerra uma crítica ao cinema novo em forma de paródia, linha que segue o filme todo, além de uma fotografia colorida e com uma história simples, convincente e cativante: Dois assaltantes fogem para o interior depois de um roubo e um deles foge deixando o outro na estrada. O que continua depara-se com um boteco na beira de uma estrada de terra, e, prepotente, zomba da comida caipira disponível. O dono do bar, representado numa atuação magistral como um típico capiau pacato, enerva-se e aponta uma arma ao assaltante, obrigando-o a comer variados pratos feitos pela mãe do caipira até a congestão. O filme não tem grandes pretensões, e, justamente nisso, está seu sucesso. Os diálogos bem resolvidos, a situação surreal e a verve cômica dos atores, bem como o uso fundamentado de objetivas grande-angulares, fazem deste um dos melhores filmes de sua geração, tanto pela inusitada opção de comédia, tão rara na ambição estudantil, quanto pela crítica velada ao cinema intelectual verborrágico que exige um público especializado.
Como se vê, uma outra tendência, muito diferente em concepção e realização, está presente no curta-metragem universitário.

Conclusão

A partir deste panorama apresentado, fica clara a importância do curta-metragem na constituição de uma estética própria do cinema nacional, e que encontra atualmente sua voz mais ativa na produção cinematográfica acadêmica. Os curtas das escolas também refletem as múltiplas tendências de pensamento e linhas estéticas de desenvolvimento do cinema, tanto quanto as linhas do longa-metragem, mas com a diferença da possibilidade ilimitada da experimentação, tanto na crítica exasperada quanto nos seus meios-termos e críticas à própria crítica. Enfim, um universo rico e potencialmente promissor, digno das atenções de todos aqueles que se interessam pelo cinema nacional. Pois é certo que a história do cinema influencia o curta-metragem assim como o curta-metragem influencia a história do cinema, visto que faz parte desta. O longo caminho que foi percorrido até que houvesse um respeito pelo trabalho em curta-metragem reflete não apenas a lacuna da produção de longas, mas também a infinita tendência a conseguir sempre avançar para dizer coisas novas ou as mesmas coisas de outras maneiras. As implicações disto revelam-se na continuidade que cada autor formado pelas escolas dará à sua obra, dentro da possibilidade que cada um reconhecer, de tal maneira que a diversidade estética é uma qualidade profunda e louvável, sendo que todos nós do ramo cinematográfico esperamos que tais experiências venham a surtir efeitos criativos mais e mais profundos daqui para frente.

Bibliografia:

MIRANDA, Luiz F. Dicionário de Cineastas Brasileiros, São Paulo, Art Editora, 1990
RAMOS, Fernão (org.), História do Cinema Brasileiro, São Paulo, Art Editora, 1990

TESE DE DOUTORADO:

"ECA: Retrato em Preto-e-Branco" de Maria Helena Pires Martins

CD Rom:

"TRAJETÓRIA DO CURTA BRASILEIRO", produzido pela KINOFORUM

copyright©2000 Filipe Salles

*Filipe Salles é fotógrafo e cineasta; professor de fotografia, mestre e doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP.Já fez Super-8 e nas horas vagas é músico.

Data de publicação: 27/06/2000
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