Uma metrópole em busca da sua autodeterminação cinematográfica

São Paulo Sinfonia da metrópole é um documentário de longa metragem que registra cenas do cotidiano da capital paulista, enfocando aspectos que tentam caracterizar a cidade como uma verdadeira metrópole.

O filme pode ser considerado como um exemplar do documentário expositivo do tipo centrado no referente, pois trata-se de:

Um dos verdadeiros marcos do início da década, entretanto é Limite, que pode ser considerado hoje, após sua recuperação e revisão, como a melhor contribuição brasileira para a avant garde internacional, junto talvez, com São Paulo, sinfonia da metrópole, direção de Rodolfo Lustig e Adalberto Kemeny (1).

Portanto, o filme estilisticamente, apresenta uma ruptura com relação aos documentários brasileiros típicos dos anos 20.

Pode-se até questionar o papel de vanguarda que São Paulo, sinfonia de uma metrópole, pois ele apresenta um novo padrão de filmar e de se produzir documentário no Brasil. Isto deve-se aos seus enquadramentos burilados, com a sua fotografia bem contrastada, que revela um nível técnico superior à média das produções brasileiras, tanto de ficção ou de não-ficção. Trata-se de uma vanguarda da bricolage cinematográfica, pois os húngaros apenas mudaram a forma e não o conteúdo.


Dando uma maior atenção aos intertítulos do filme, pode-se perceber que eles exprimem com clareza a ideologia embutida no discurso. Ao longo da obra, estes textos desempenham o papel do narrador do filme, a voz off do documentário expositivo tradicional. É verdade que se trata de uma voz muda, mas é uma voz necessária que, de qualquer maneira, conduz a narrativa diante da torrente de imagens que abarrotam a tela.

Logo na apresentação, a produtora de São Paulo, sinfonia de uma metrópole se introduz como uma fonte reveladora da urbanidade paulistana para os seus próprios cidadãos denotando dessa maneira o seu projeto fílmico. Entre outras coisas, fica claro o seu projeto pedagógico. Esta é uma característica básica do filme documentário tradicional. Fica perceptível também um conteúdo otimista que dará o tom ao longo do filme.

Ao aparecer o segundo intertítulo do filme na tela, percebe-se o espírito expositivo que predominará durante todo o transcorrer da projeção. Ao enunciar as palavras: Silêncio e ante-manhã, logo depois se vê uma rua deserta no centro comercial da cidade com as lojas fechadas e nenhum transeunte. Apenas as fachadas, o orvalho da noite que ficou sobre as ruas e o vento balançando a copa de algumas árvores esquálidas podem ser vistas. É perceptível um olhar poético que não estará presente na maioria das tomadas apresentadas. Neste sentido a narração continua, fazendo um travelling sobre o que hoje pé chamado de centro histórico da cidade, nas proximidades da Praça da Sé, perto do Pátio do Colégio.

Outro intertítulo anuncia que "a cidade abre os olhos á bruma. Desperta." Nesta seqüência há uma clara referência aos irmãos Lumière, especificamente ao clássico filmete que exibe a chegada da locomotiva na estação ferroviária, quando é mostrado o deslocamento de um bonde. Os cineastas desta forma vão delineando o cotidiano da cidade primeiro desta forma prosaica. Onde as ruas, ainda desertas, estão despertando para um novo dia de trabalho que se aproxima.

Pode ser notado um movimento de pessoas que começam a se deslocar para o trabalho, tema que o filme enfocará durante toda a narração. Nesta seqüência, o espectador percebe a importância que este filme pode ter como fonte de informação, no que se refere a alguns aspectos da moda e da antropologia social do período. Ao fazer um plano geral da rua, já em franca ebulição, com transeuntes indo de um lado e para o outro, vê-se que os homens todos se trajam de um maneira homogênea, com ternos e chapéus.

Ao mostrar a população urbana, com destaque para as personagens oriundas de classes com poder aquisitivo, os cineastas tentam conferir um certo grau de cosmopolitismo na vida urbana de São Paulo, que não seria muito diferente de uma outra grande cidade norte-americana ou européia da época.

São Paulo, sinfonia de uma metrópole propõe uma plataforma ampla de abordagem da cidade, exibindo um burguês solitário, os operários que caminham em grupo, pessoas que acotovelam para pegar um lugar no bonde, o meio mais moderno de transporte urbano disponível na época. O fluxo de gente que transita nas ruas da cidade aumenta de maneira progressiva, imitando uma aceleração de ritmo de uma música inaudível. Uma outra seqüência coloca diante do público um floricultor que passa com um cesto de flores, provavelmente, destinado a alguma senhora desconsolada. O dia está lúgubre.

Numa espécie de plano americano invertido, é possível se ver uma porção de pernas frenéticas de operários que estão caminhando em direção à fábrica, aqui a analogia com Berlim, sinfonia... é inevitável, pois, o filme alemão contém uma seqüência praticamente idêntica a esta. Estes pés proletários adentram o portão de uma fábrica, (será mais uma referência aos filmes dos irmãos Lumière?) plano americano, pode-se ver o ritual de marcar o ponto, onde as mãos pegam os cartões e os inserem no relógio. O curioso nesta seqüência é que as cabeças estão fora do campo imagético, o proletariado aqui não tem face, é anônimo, trata-se de apenas uma engrenagem que integra a manutenção do moto perpétuo urbano paulistano.

Depois, aparece um intertítulo que completa a imagem acima, com estas palavras: "Fábrica, fundições, indústrias mil, ... começam a girar os seus volantes." Apresenta-se então uma seqüência que, em plano de detalhes, exibe painéis de controle, o início do trabalho fabril com o acionamento das chaves dos painéis de controle. Outra seqüência mostra um operário girando uma manivela, outro uma roda. A presença de signos circulares está presente nos três filmes, sendo que os húngaros reforçam o papel funcional do círculo, da roda na indústria. A sua utilidade. Enquanto nos outros dois filmes abordados (Berlim, sinfonia... e O homem da câmera) estes signos circulares funcionam mais como uma elaboração plástica, ou mesmo como uma metáfora da metrópole e da vida que nela habita.

Com a finalidade de mostrar um certo padrão industrial alcançado pela indústria paulistana do período, os diretores exibem um laticínio, onde se pode ver uma linha de produção com máquinas modernas operantes, onde garrafas vazias esterelizadas se perfilam e são manipuladas mecanicamente quando são preenchidas com o liquido branco. Percebe-se um operário dispondo as garrafas cheias dentro de uma caixa. Depois há um corte, para a rua, quando uma caminhonete de entrega de leite parte para entregar o produto aso consumidores. Aqui a câmera faz um longo travelling acompanhando o deslocamento da furgonete. Plano de detalhe, mão toca a campainha e o leiteiro coloca o produto no parapeito de uma janela. Outro plano de detalhe. Uma mão apanha o leite e o pão que lá já estavam. Esta seqüência mostra claramente o caráter expositivo e didático que apresenta-se durante quase toda a obra.

Até esta última seqüência, a câmera esteve concentrada sobre o centro histórico da cidade, quando percebe-se um deslocamento para uma zona periférica, que ainda está despertando. Trata-se de um bairro de alto padrão, fato perceptível devido às casas tipo mansão que constituem esta paisagem urbana. Por outro lado, pode se notar a presença dos empregados, devido à utilização de uniformes de funcionários domésticos, que estão varrendo as calçadas, enquanto que um funcionário da companhia de energia, com uma escada às costas, pára de luminária em luminária, com a finalidade de fazer algum tipo de manutenção. Vários planos de detalhes das calçadas, das fachadas dos casarões, etc. Novas tomadas, um carteiro entrega correspondência, carros rodeiam as mansões. Nestas seqüências, os realizadores exibem um contexto social sem nenhuma contradição, aparente, a placidez da vida abonada e burguesa. Nem parece que o modelo de desenvolvimento econômico deste momento carecesse destas contradições. Há uma imagem que tende para o ideal e não para o real do que de fato estava acontecendo. Os realizadores escamoteiam a São Paulo verdadeira, o tempo inteiro. Ideologicamente estão comprometidos com a burguesia industrial e financeira dominante no período. Aqui está presente mais uma característica importante do documentário expositivo, o seu caráter propagandístico, alinhado com os interesses seus possíveis patrocinadores ou financiadores.

Esta civilidade modelar pode ser notada por exemplo na seqüência em que mais um trabalhador, desta vez um guarda de trânsito caminha em direção à câmara. Ele que está muito bem vestido e ainda olha para a camêra que pensa tudo ver, no momento, em que está se dirigindo ao painel de controle manual de semáforos da avenida. Afinal, o trânsito e a circulação de veículos automotivos são signos inequívocos do progresso, de um mundo em transformação, pelo menos para os cineastas de São Paulo, sinfonia de uma metrópole.

Um intertítulo anuncia que: "A caminho da escola. Rumo ao saber. Mocidade e infância irmanam-se na mesma ânsia de instrução." O que se vê é um pequeno grupo de crianças caminhando para a escola. É possível se identificar o Colégio Caetano de Campos. Registra-se a presença dos vendedores ambulantes, percebe-se o frenesi das feiras livres. os bancos abrindo as portas para os clientes, na XV de Novembro. Não se pode esquecer, que neste período avizinhava-se uma crise externa que teria seus reflexos econômicos sentidos na vida cotidiana do brasileiro. No entanto, o filme parece estar alheio a este momento de crise.

São Paulo, sinfonia de uma metrópole trabalha no sentido de construir uma narrativa de apologia do desenvolvimentismo econômico. Seus intertítulos sugerem a que criação de uma imagem em movimento, através da sobreposição de textos ou imagens. Basta ver este: O ruído que empresta á cidade o ambientedas grandes metrópoles num "crescendo" Vertiginoso.

Outra seqüência anuncia: "Compra e venda. Atacado e varejo O comércio inicia a sua atividade." O comércio é visto com bons olhos, em nenhum momento fica perceptível que aquele comércio mostrado é direcionado a poucos. Trata-se das mais finas lojas com produtos importados, inclusive lembranças fotográficas e outras quinquilharias da época.

Uma panorâmica mostra fachadas dos bancos na Wall street brasileira, a rua XV de Novembro. Alguns dos estabelecimentos estão abrindo as portas para os seus clientes. Exibi-se tomadas de dentro dos próprios bancos, onde pode se presenciar a rotina que envolve a atividade bancária: um homem carimba um papel, uma secretária manipula uma máquina de escrever. Reina aparente calmaria. No entanto, o filme parece estar alheio a este momento de crise que se avizinha.

O desenvolvimento científico de São Paulo é mostrado através de uma visita ao Instituto Butantã e através de registros da Faculdade do largo São Francisco. Um intertítulo anuncia que a: "Escola de odontologia . Os seus alunos executam serviços gratuitos em pacientes eventuais." O que se vê é um amplo salão aonde professores e alunos estão praticando o seu ofício. Aparecem várias pessoas sentadas em poltronas odontológicas em posição de tratamento dentário e um movimento intenso em torno delas. As seqüências filmadas em interiores dos estabelecimentos variados obedecem ao modelo de composição documental griersoniana, com o sue tratamento criativo da realidade.

Os curiosos intertítulos em alguns momentos trazem ilustrações ao fundo como este: O jardim de infância. Aqui é possível se ver alguns desenhos, garatujas, e depois são mostradas crianças na sala de aula com brinquedos pedagógicos típicos da época. O filme faz um registro do cotidiano destas crianças que tomam lanche, fazem algazarra e chamam um a atenção do outro. Num determinado momento, nota-se algumas crianças conversando umas com as outras, trata-se do primeiro diálogo exibido no filme, ainda que inaudível, afinal o filme é silencioso.

O alinhamento ideológico do filme ficará mais explícito daqui para frente, fato que será bastante fácil de identificar através dos textos do filme. O próximo intertítulo tem seguinte texto: "Secretaria do Estado de Administração Pública. O governo do Estado dá começo aos seus trabalhos." O registro exposto é o de uma rotina burocrática de repartição pública, carimbos, papéis, pessoas que se movimentam de um lado e para o outro. Aqui o Estado está cuidando da ordem dos negócios públicos, zeloso do seu papel institucional, tudo funciona muito bem, pelo menos no reino das aparências.

Outros intertítulos filiam a obra à oligarquia paulista do café:O comércio do café. Sacas. Armazens. Ouro Verde.Força motriz. Alavanca do progresso. O tom ufanista destes textos e dos outros intertítulos. em nenhum momento, escamoteiam a fatura ideológica do filme. Estes deixam transparente o projeto de documentário expositivo, daquele tipo que não tem nenhuma má consciência em reforçar o status quo social dominante no período.

São Paulo, sinfonia de uma metrópole foi um filme caro para os padrões do seu período, quando os realizadores passaram um ano fazendo os registros cinematográficos que comporiam o filme. No entanto, pelo que foi visto até agora, pode-se subtender que o filme teve várias fontes de patrocínio, desde da indústria, passando por segmentos da produção agrícola e pelo Governo do Estado de São Paulo. Estes setores estavam interessados em difundir a cidade e o estado de São Paulo como locomotivas econômicas do Pais.

Os cineastas são atraídos pelos movimentos mecânicos, fato que pode ser facilmente percebido na seqüência que exibe uma loja de brinquedos, onde algumas peças executam movimentos típicos destes artefatos, normalmente, são movimentos circulares, mais uma vez. Daí se segue um plano da roda de um automóvel em movimento que faz uma fusão e depois uma sobreposição de imagens, aqui percebe-se a intenção de se criar texturas abstratas.

Outro intertítulo mostra que a cidade não é só movimento e trabalho. O mesmo anuncia: "Hora do Almoço. Syncope. Os cérebros descansam. Os nervos dormitam. É o momento de se fazer uma pausa e mostrar que a cidade é humana. O trabalho é o epicentro da sinfonia paulistana.

Ainda que pese a qualidade técnica, em nenhum momento, São Paulo, sinfonia da metrópole parece estar interessado em emocionar o seu espectador. O filme está mais preocupado em mostrar conquistas materiais. Em nenhum momento, a câmera consegue mostrar as crispações internas próprias de um mundo em transformação. São Paulo, sinfonia de uma metrópole oculta a pobreza cinzenta da cidade, escamoteia as suas tradições culturais populares, projeta-se apenas no domínio da técnica em detrimento da arte e da poesia.

São Paulo, sinfonia de uma metrópole não tem aquela atração do descobrimento que se propõe no texto de abertura, o que o filme mostra é o óbvio.

Talvez, a maior contribuição de São Paulo, sinfonia de uma metrópole esteja na questão do fazer cinematográfico propriamente dito. Aqui pode ser encontrado um projeto autoral que o filme traz consigo, fazendo com que o filme rompa com uma certa tradição do documentário tradicional brasileiro de então.

De forma caleidoscópica, o filme mistura algumas cenas de ficção ou de recriação documental como a "reprodução" do grito de Independência que fora dado por D.Pedro I, claramente inspirado no quadro de Pedro Américo, às margens do Ipiranga. Trata-se de uma inserção docu-dramática. Onde se recupera a memória de alguns personagens participantes deste importante momento da história do Brasil.

Como se pode notar, as referências cinematográfica embutidas no projeto estético de Kemeny e Lustig não são desprezíveis, isto na medida em que trata-se de todo um repertório básico para a construção de um filme de não ficção empenhado em se legitimar como um produto sólido e embasado numa importante tradição cinematográfica.

A posição ingênua dos diretores Kemeny e Lustig, ainda que esta não seja forte o suficiente para tirar os méritos de qualidade de realização e de padrões estéticos que o filme comporta, por outro lado, a mesma não têm força suficiente para anular os seus defeitos. Na realidade, o que está sendo vislumbrado aqui é a histórica dificuldade que a produção cinematográfica brasileira e os seus realizadores encontram em se colocar no campo cultural de forma autonomizada.

São Paulo sinfonia da metrópole tateia quase todas as variantes de filmes sinfônicos, isto sem se definir de forma objetiva por uma delas. Este fator contribui para que o filme tenha altos e baixos na sua recepção. Esta indefinição estética pode ser atribuída à falta de uma dimensão teórica, intelectual mesmo, ao que tudo indica, os cineastas "brasileiros" não apresentavam. No que se refere à dupla Kemeny e Lustig não há referências de que eles tenham mantido uma aproximação cultural e teórica com o movimento modernista paulistano, que também nunca demonstrou interesse relevante pelo cinema, talvez a exceção seja Mário de Andrade.

Contudo, o principal ponto de referência está no assunto e na proposta de caracterizar a cidade como elemento sinfônico e não monotemático.


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* André P. Gatti, é mestre em Ciências da Comunicação ECA/USP e Doutor no Departamento de Multimeios do Instituto de Artes da Unicamp, ex-cineclubista, foi programador do Oscarito e Elétrico, além de ter sido Administrador da Dinafilme e do Conselho Nacional de Cineclubes.


Data de publicação: 10/12/2000