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Pesquisa histórica e cinema: O cangaço inovador do filme "Baile Perfumado"

“Cada um tem um Lampião na cabeça”

A pesquisa histórica realizada para o filme Baile Perfumado (Paulo Caldas e Lírio Ferreira, 1996) atuou na definição de idéias que aparecem em várias dimensões da sua narrativa fílmica, desde personagens, figurinos, acessórios, cenário, música.

 

No âmbito da construção dos personagens, as idéias de Frederico Pernambucano de Mello, autor dos livros Guerreiros do sol, violência e banditismo no Nordeste do Brasil  e Quem foi Lampião, dentre outros, foram fundamentais, por exemplo, para o delineamento das características de Lampião e Benjamim Abraão.

Nesse artigo pretendo demonstrar como esse diálogo estabelecido entre diretores, roteirista e pesquisador foi importante para construir uma interpretação inovadora do cangaço presente no filme.
Em vários artigos, publicados na imprensa escrita ou artigos de análise, o filme Baile Perfumado é apresentado, ou anunciado, como uma inovação, seja estética, seja na maneira de tratar o tema do cangaço.
Artigos anteriores ao lançamento do filme, em 1996 apresentam a idéia da abordagem original do filme, a partir de declarações dos diretores:
Dos três filmes [O Cangaceiro, Corisco e Dadá], ‘Baile Perfumado’ se aproxima mais das teses sobre a estética do cangaço, principalmente as desenvolvidas por Frederico Pernambucano de Melo. ‘Lampião aparece bebendo uísque importado, tomando banho de perfume francês, dançando e costurando’, contam os diretores Lírio Ferreira e Paulo Caldas.  
Em outro artigo,
‘Baile Perfumado’, por sua vez, vira de cabeça para baixo a imagem tradicional do cangaço: acompanha a trajetória do mascate e cineasta libanês Benjamim Abrahão, que nos anos 30 filmou Lampião e seu bando em momentos de descontração. De acordo com Lírio Ferreira, co-diretor do filme (ao lado de Paulo Caldas), ‘Baile Perfumado’ revela um Lampião ‘já aburguesado, quase um gangster, que jogava baralho com coronéis e vivia de agiotagem e do comando de seqüestros’.

Esses dois artigos, escritos antes do lançamento do filme, apresentam algumas das idéias principais que nortearam a construção do filme: o aburguesamento do Lampião, que é demonstrado, além das roupas e modos de viver, pela utilização dos ícones “perfume francês” e “uísque escocês” e pela relação que estabelece com outros coronéis.
Depois do seu lançamento no Festival de Brasília (1996), do qual foi o vencedor, Inácio Araújo confirma a novidade:
Em certo sentido, ‘O Baile Perfumado’, dos estreantes Paulo Caldas e Lírio Ferreira, exige que a maior parte dos realizadores percebam que algo está mudando profundamente na produção brasileira. O filme é uma revisão do cangaço (...) Passa, e leva em conta, uma tradição que tem em seu currículo "O Cangaceiro" (1954) e "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964). Mas a visão é bem outra: ‘Nós pensamos em desenvolver uma temática regional, mas querendo enfatizar Lampião como um bandido mesmo, e sobretudo o cotidiano desse banditismo’. À moda de Howard Hawks – que apreciava essas revisões – o filme impressiona pela precisão e pela cerebralidade. E também pelo escrúpulo. "O Baile" começa pela busca (com o historiador Frederico Pernambucano) de uma idéia sobre Lampião e o cangaço. Prossegue com um insano trabalho fonético: o reencontro do falar pernambucano dos anos 30.

Depois de vencer o Festival, o filme teve repercussões positivas no meio cinematográfico. “Os garotos de Recife”, como eram chamados os diretores, viraram vedetes:
“‘Baile Perfumado’ dos jovens pernambucanos Lírio Ferreira e Paulo Caldas, encantou a crítica pela originalidade da abordagem” . “Os dois jovens diretores nordestinos conseguiram empolgar a platéia com Baile Perfumado, um entusiasmado filme de estréia, com trilha de Chico Science. Imprimindo novos ares ao velho tema do cangaço...”

Na construção do cangaço, e da vida de Lampião nos seus últimos anos, a pesquisa para o filme não poderia deixar de dialogar com as imagens anteriores e com os discursos construídos em torno de uma figura tão visitada. No entanto, esse diálogo foi estabelecido, no meu ponto de vista, a partir da diferença. Na sua abordagem “inovadora”, como foi classificado, ele não se aproxima nem do gênero Nordestern nem da idéia do cangaço revolucionário, como aparece em alguns filmes.
O cangaço rendeu muitos filmes, muitos textos, muitas críticas.  
Trabalhar com o tema do cangaço era complicado porque era um tema que era bastante caricato, como era feito até determinado momento. A observação que tinham desse fenômeno, e inclui essa observação exótica, não era só praticada pelas pessoas de fora, mas até as pessoas de dentro parece que gostavam de relevar esse certo folclorismo. E a gente ficava procurando, como é que essa história poderia ter acontecido?

Construir uma interpretação diferente das que existia não seria algo fácil pois o tema do cangaço é bastante recorrente no cinema. De acordo com o pesquisador Marcelo Dídimo
O cangaço foi retratado no cinema brasileiro em várias épocas e de diversas formas. Desde a década de 20 que esta temática fascina cineastas e espectadores, havendo cerca de 50 filmes sobre o assunto, incluindo curtas, médias e longas-metragens, ficções e documentários. Durante quase oito décadas de história deste gênero cinematográfico, foram realizados filmes de destaque nacional e internacional.

O mesmo autor, ressalta que
O gênero cangaço se constituiu de tal forma que dialogou com outros gêneros para se criar. Os filmes de aventura, o documentário, a comédia e o erótico se integraram a ele para resultar num gênero nacional que, creio, nunca deixará de existir, pois está passível de novas leituras e é sempre revisitado. É o nosso épico por excelência, um universo mitológico fundamental para a cultura brasileira .

De acordo com Alberto Silva , escrevendo em 1970, havia três tipos de filme de cangaço: os filmes comerciais de Carlos Coimbra e Aurélio Teixeira; o ‘novo’ cangaço de Glauber Rocha e o cangaço da boca-do-lixo de Oswaldo de Oliveira.
Em um dos tipos de filme, o cangaço é pano de fundo para o esquema dramático do herói, o bandido, a mocinha... Esses filmes, rodados em grande número, aproveitavam o que acreditavam ser um filão mercadológico e configuraram o que alguns chamam de nordestern .
Nesse tipo de filme, o cangaço é construído a partir de um esquema dramático analisado por Lucília Bernardet e Francisco Ramalho. Segundo eles, o personagem principal não é o cangaceiro, mas um homem que está no cangaço provisoriamente: “A problematicidade do personagem do herói vem justamente do fato dele não ser cangaceiro, vem do fato dele ser um homem de outro grupo, envolvido em circunstâncias de cangaceiro.”
A história dos filmes gira em torno desse personagem “não-cangaceiro” que encontra-se no cangaço, mas pretende se “redimir” . O oposto desse personagem é o “verdadeiro” cangaceiro, que, de acordo com esses autores, não é bandido nem herói: “Se o personagem do herói é totalmente ‘simpático’, nem por isso o do cangaceiro é totalmente antipático”  .
As principais características do cangaceiro “verdadeiro” são apresentadas, segundo os autores, como pré-estabelecidos, que são: a violência ameaçadora, a religiosidade e o justiçamento em relação aos “mais fracos”. Características que parecem suficientes para identificar as personagens que não são problematizadas na tela.
Na análise desses autores as personagens principais do filme de cangaço buscam desculpas por terem feito parte do movimento:
Assim, o cangaceiro-herói-de-filme-brasileiro-de-cangaço – dentro do enredo, com elemento dramático da maior importância – necessita sempre de uma ‘explicação’: há infalivelmente a explicação justificativa ‘de como e por que me tornei aparentemente cangaceiro, mas no fundo não sou’. O herói pode então ser ‘desculpado’ do cangaço.  

Comparando a representação do cangaço no filme Baile Perfumado com a classificação de Lucília Bernardet, percebemos algumas semelhanças, principalmente no que diz respeito à representação de uma religiosidade do cangaceiro e a excessiva violência. Mas, apesar disso, eles ganham uma conotação diferente que contribui para as idéias principais do filme.
De acordo com ela, nos filmes de cangaço, são três as principais características dos seus membros: a violência ameaçadora, a religiosidade e o justiçamento em relação aos “mais fracos”. Vimos que esse último item não aparece.
A violência ameaçadora, no entanto, permeia o bando no filme Baile Perfumado. No entanto, apresenta uma diferença importante.
Dialética de causa-e-efeito, o cangaceiro, contrariamente aos heróis do ‘grande cinema’ (o ‘cowboy’ e o samurai), não vislumbra a presumível distinção entre o Bem e o Mal: enquanto aqueles se batem pela (des) ordem estabelecida, ou têm uma atuação definida, pró ou contra, em cada episódio, o personagem brasileiro instaura o caos permanente tanto nas fileiras da lei quanto no lado do povo.

Essa idéia de instaurar o caos por todos os lados pode gerar uma interpretação de que se trata de um opositor de uma ordem social. No filme Baile, Lampião e seu bando têm ações bastante violentas. No entanto, diferente da referência acima, essa não parece ser uma violência gratuita, violência pela violência. No filme, ela é justificada. Sempre há um motivo para as suas ações violentas, não é geradora de “caos”.
Na cena de sangramento, por exemplo, Lampião explica o motivo do ato; na cena em que mutilam um homem, essa ação é justificada na narrativa; Lampião se recusa, por exemplo, a comandar atos de combate apenas para que sejam filmados. Ou seja, existe uma violência grande, mas não é sem motivo. Essa representação indica a inserção da violência do cangaço numa dinâmica social e não apenas como geradora de “caos”.
A religiosidade, a outra característica do personagem presente em outros filmes de cangaço, aparece de maneira forte no filme O Baile, seja através das cenas nas quais Lampião comanda uma prece, ou nas diversas inserções misteriosas de Lampião com Padre Cícero. Referência que, novamente, não indica apenas a religiosidade de Lampião mas as suas relações sociais e políticas.
Essas duas características do cangaço presente em alguns filmes (violência e religiosidade), aparecem em Baile Perfumado, no entanto, elas apontam para uma outra questão: a inserção de Lampião numa determinada dinâmica social.
Para compreender essa dinâmica social na qual Lampião está inserido, vejamos como a outra abordagem do tema do cangaço compõe um contraponto com Baile Perfumado.
Em outro tipo de abordagem do tema, o cangaço é interpretado como “problema social”. Maurice Capovilla faz uma crítica àqueles filmes que não problematizam o cangaço: “Os filmes simplificaram e ignoraram os verdadeiros dramas, transformaram os cangaceiros em protagonistas e a população em figurantes. Deslocaram o eixo do drama real e não foram capazes de equacionar as partes envolvidas.”  Ou seja, esses filmes não problematizam as “causas” do cangaço, que, de acordo com ele seriam:
...primeiro, por vingança  de atrocidades da Polícia Militar e da Volante – que na verdade era também um bando sob o comando de um típico cangaceiro, caso de Zé Rufino, e outros – como Bezerra – que traficava armas com os próprios cangaceiros. Os soldados também estupravam e matavam. E segundo: a situação agrária do país, mais grave do que hoje, com os coronéis mandando e desmandando em regiões sem lei. Quer dizer, o cinema de cangaço não conseguiu retratar a realidade social e política com informação capaz de dar conseqüência ao conflito. Em vez disso, só soube fazer um mero e simplista gênero de filme de aventura, sem começo, sem meio e sem fim .

Essa explicação para o cangaço aparece em filmes como, por exemplo, Memórias do Cangaço (Paulo Gil Soares, 1965), no qual os cangaceiros são identificados com “heroísmo” e “bondade”, vítimas da violência das volantes. Ou, em Deus e o Diabo, no qual o cangaço, junto ao messianismo, são os dois caminhos seguidos contra a situação miserável do sertanejo.
O filme Memórias do Cangaço cria outra vertente de representação do cangaço que busca o cangaço “real” como problema social. O filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, marco do cinema brasileiro, constrói uma interpretação histórica para o fenômeno que não é apenas pano de fundo para o desenrolar de histórias vendáveis. O cangaço é, no filme, juntamente com o messianismo, um dos dois caminhos possíveis como resposta ao sistema social injusto. O cangaço é interpretado como uma forma de oposição ao sistema, de luta revolucionária, que, no entanto não traz resultados concretos.
Essa idéia é semelhante à apresentada por E.J. Hobsbawn. De acordo com ele, o banditismo social é um “fenômeno que apresenta afinidades com a revolução, por representar um protesto social” ;“...ainda que na prática o banditismo social nem sempre possa ser separado nitidamente de outros tipos de banditismo, isto não afeta a análise fundamental do bandido social como um tipo especial de protesto e rebelião camponesa.”   Apesar da sua característica de protesto, essa não é suficiente para desencadear uma revolução, pois os bandidos
...eram, politicamente, incapazes de oferecer uma alternativa real aos camponeses. Ademais, sua posição tradicionalmente ambígua entre os poderosos e pobres, como homens do povo que, contudo, desprezavam os fracos e os passivos, como uma força que em tempos normais atuava dentro da existente estrutura social e política ou em suas margens, e não em posição a ela, limitava seu potencial revolucionário. Podiam sonhar com uma sociedade livre em que todos fossem irmãos, mas a perspectiva mais óbvia para um revolucionário-bandido bem sucedido era tornar-se um proprietário de terras.

As suas análises influenciaram as leituras posteriores do cangaço que é caracterizado por ele como uma espécie de banditismo social . Há várias referências a esse autor em interpretações do cangaço no cinema. Às vezes citado diretamente e às vezes indiretamente.
“O cangaceiro, um pouco individualista, um pouco sociável, é o mais realista de todos [em relação ao cowboy ou o samurai]. Não aceitou a sociedade, não se vende, está fora, à margem, sempre caçado pelos ‘macacos’, desagravando os sofredores, vingando os oprimidos”  “Sabemos que o cangaceiro é um bandido social, na denominação do historiador inglês Eric Hobsbawn. Ele nasce na revolta diante da desigualdade social, mas não se constitui agente transformador. ...”

A visão do cangaceiro como um bandido revolucionário, ou um justiceiro, criado pelas “injustiças sociais”, é construída e, posteriormente retomada, também a partir de uma visão de “esquerda”. O cangaço foi interpretado como um movimento social revolucionário pelos comunistas na década de 1930. No relatório a Moscou sobre a situação pré-revolucionária em que vivia o Brasil, em 1934, Antônio Maciel Bonfim (codinome Miranda), caracteriza o cangaço como um movimento “revolucionário”:
Os guerrilheiros cangaceiros fazem chamamentos à luta, unificam os camponeses pobres e lutam pelo pão e pela vida. O governo já não está em condições de vencer este movimento. (...) Lampião e seus partidários são guerrilheiros cujo nome e façanha correm de boca em boca, com atos arrojados de defensores da liberdade, defensores da vida do camponês...

De acordo com Marly Vianna, Prestes absorveu acriticamente as idéias dos comunistas brasileiros, dentre elas, essa visão do cangaço revolucionário:
Na absorção acrítica das idéias dos comunistas brasileiros, Prestes adotou uma posição que traria trágicos resultados em 1935: a visão do cangaço como um movimento de camponeses revolucionários. Em sua carta aberta, mencionava já o combate a Lampião como prova do reacionarismo do governo de Vargas.  

Na década de 1930, o cangaço era considerado um movimento guerrilheiro e contestatório, que apoiaria o movimento revolucionário dos comunistas, o que não ocorreu no Levante de 1935. Na década de 1950, essa idéia parece ser retomada:
Até fins dos anos 1950, mal se falava do cangaço, mas a partir de então sua figura ressurge num novo contexto quando o mundo rural volta a ser objeto de interesse e surge, com a consciência política camponesa, uma identidade regional nordestina que se cristaliza em torno de Lampião, que assume uma dimensão política, como um herói da luta contra a grande propriedade”, nota Élise. A ponto de, em 1959, Francisco Julião declarar, em entrevista, que “Lampião foi o primeiro homem do Nordeste oprimido pela injustiça dos poderosos a batalhar contra o latifúndio e a arbitrariedade. É um símbolo de resistência.

Baile Perfumado não se adequa às estruturas do nordesten, também não possui essa característica do “banditismo social”, nem na sua versão “pré-revolucionária”, a idéia do banditismo social não aparece no filme. E essa ausência faz um contraponto com uma das suas idéias principais a respeito do cangaço: Lampião não é um bandido social, não é revolucionário e não está preocupado em transformar a sociedade, mas sobreviver no esquema do qual faz parte. Isso pode ser percebido, por exemplo, na relação que estabelece com os “coronéis”.
De acordo com Hobsbawn, o fato do cangaceiro estabelecer relações com os coronéis e estar inserido nos esquemas dessa sociedade não significa que faça parte dela, mas que precisa escoar as suas mercadorias e continuar sobrevivendo. Assim, para ele, a inserção nessa dinâmica não é uma participação ativa, mas como uma necessidade de sobrevivência. E isso não faz dos cangaceiros participantes dessa sociedade. Diferente da imagem representada pelo filme. Para Hobsbawn,
... o que existe de fundamental na situação social do bandido é a sua ambigüidade. Ele é um marginal e um rebelde, um homem pobre que se recusa a aceitar os papéis normais da pobreza, e que firma sua liberdade através dos únicos recursos ao alcance dos pobres – a força, a bravura, a astúcia e a determinação. Isto o aproxima dos pobres: ele é um deles também. Coloca-o em oposição à hierarquia de poder riqueza e influência; ele não é um dos que possuem isto. Nada transformará um salteador rural em ‘fidalgo’, pois nas sociedades em que floresce o banditismo, a nobreza e a fidalgia não são recrutados entre a plebe. Ao mesmo tempo, porém, o bandido é inevitavelmente arrastado à trama da riqueza e do poder, porque, ao contrário dos outros camponeses, ele adquire a primeira e exerce o segundo. Ele é ‘um de nós’, constantemente envolvido no processo de associar-se a ‘eles’. Quanto mais bem sucedido é um bandido, tanto mais ele é ao mesmo tempo um representante e campeão dos pobres e parte integrante do sistema dos ricos.  

O autor deixa claro essa separação entre os mundos: “eles” e “nós”. E é justamente o contrário do que o filme tenta mostrar em vários sentidos. Em uma cena do filme Baile Perfumado aparece Lampião, e alguns cangaceiros jogando cartas com um coronel . No diálogo entre eles as referências ao jogo são confundidas com um “problema” a ser resolvido. A cena é de um jogo de carta: um jogo do qual fazem parte o coronel e o cangaceiro. A câmera faz um movimento circular: um círculo dentro do qual estão cangaceiros e coronéis. Não há plano e contra-plano. Mas um longo plano circular em torno dos personagens. Os personagens não estão opostos, mas fazem parte da mesma trama, da mesma rede de relações, do mesmo círculo. A dinâmica das imagens, nessa cena, indica essa relação entre ambos.
Essa simbiose entre cangaceiros e coronéis é defendida por Mello. Na sua interpretação, ambos não estão opostos por interesses diversos, mas unidos numa teia de interesses.
Ao contrário do que teimam em afirmar certos intérpretes, não é possível surpreender uma relação de antagonismo necessária entre cangaceiro e coronel, tendo prosperado – isto sim – uma tradição de simbiose entre essas duas figuras, representada por gestos de constante auxílio recíproco, porque assim lhes apontava a conveniência. Ambos se fortaleciam com a celebração de alianças de apoio mútuo, surgidas de forma espontânea por não representarem requisito de sobrevivência nem para uma nem para outra das partes, e, sim, condição de maior poder.

No filme, ao contrário de um revolucionário, Lampião tem anseios “burgueses”; ao contrário de um movimento conservador, o cangaço dialoga com a modernidade tecnológica, com o mundo contemporâneo, mesmo tendo sido destruído por esse mundo. No Baile, Lampião, e seu bando, não são vítimas do sistema, não são o resultado de uma sociedade injusta, a qual se opõem, mas fazem parte dela. São um poder na disputa social: “governador do sertão”.
Mello, ao criticar a abordagem heroicizante de, por exemplo, Frederico Maciel, deixa clara a sua visão:
...as mentes intelectualizadas vivem a procurar com medo de se verem arrastadas a essa conclusão a um só tempo dura e verdadeira, e que certamente lhes repugna os espíritos tão delicadamente humanitários quanto revisionistas da matéria histórica: há aventureiros sem proposta social. Sem nenhuma plataforma em benefício da gente com que vivem. Despreocupados de todo dessas coisas que fazem os heróis. É este o caso de Lampião que, no dizer do seu colega e comandado por nove anos, Balão, ‘não queria mudar nada’.

A oposição apresentada no filme está entre cangaceiros e policiais. No entanto, mesmo essa oposição é inserida numa dinâmica social no qual não se apresenta uma oposição de classes. Ao observar, o embate entre cangaceiros e a polícia, há vários elementos que indicam uma certa similaridade entre eles. O oponente do cangaceiro no filme não é um representante do Estado na sua força repressiva, nem o representante da “classe dominante”. Ele se parece mais com um “vingador” que usa os mesmos métodos de combate.
No início do filme, na fala nervosa de Tenente Lindalvo, é indicado que existe ali uma relação passional de guerra. Na sua ameaça ao cangaceiro, apela para seu nome de família: “Promessa de um Rosa é dívida de cemitério”. Nos seus métodos, Lindalvo Rosa demonstra uma violência similar à imputada aos cangaceiros. Parece que ambos são igualados nesse sentido. Lindalvo molesta um morador e sua mulher, decepa a cabeça de um cangaceiro, ameaça os policiais. Ao longo do filme, o tenente empreende uma “caça” que não consegue realizar. Ao final, os cangaceiros são mortos, mas por um outro tipo de poder, esse sim, Estatal. O que mata Lampião é um elemento externo àquela dinâmica social e não o seu oponente interno.
As interpretações “inovadoras” presentes no filme Baile Perfumado não estão dissociadas das pesquisas históricas empreendidas pelo “consultor” do filme, Frederico Pernambucano. E é interessante perceber como no filme esse diálogo estabelecido entre cineastas e pesquisador resultou em uma obra, ao mesmo tempo cinematograficamente genial e historicamente interessante.

Referências
  Este artigo é um desdobramento da minha tese de doutorado. Cf. FONSECA, Vitória Azevedo. O cinema na história e história no cinema: pesquisa e criação em três experiências cinematográficas dos anos 1990. 2008. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal Fluminense, sob orientação da professora Dra. Ana Maria Mauad.

CALDAS, P. Rio de Janeiro, 25/02/2005, 80 minutos. Entrevista em fase de disponibilização. LABHOI/UFF
MELLO, Frederico Pernambucano. Guerreiros do sol – violência e banditismo no nordeste do Brasil. São Paulo: A Girafa Editora, 2004
MOTTA, P.,GUIBU, F. Filmes reconstituem paixão e moda agreste. Folha de S. Paulo, 13.06.95, Ilustrada p. 4
COUTO, J.G. “Filmes revelam imagens desconhecidas do NE”. Folha de S. Paulo, Ilustrada, 30/12/95, p.5-10
ARAÚJO, Inácio. “Pernambuco reencontra beleza do cangaço”. Folha de S. Paulo, Ilustrada, 05/11/96, p.4-5
COUTO, José Geraldo. “Cangaço volta em 3 versões”. Folha de S. Paulo, Ilustrada, 27/12/96, p.4-10
LOPEZ, Nayse e BUTCHER, Pedro. “Nova fornada nas telas”. Jornal do Brasil, Caderno B. 07/01/1997,p.30
LACERDA, H. São Paulo, 26/07/2004, 40 minutos. Entrevista em fase de disponibilização. LABHOI/UFF
DÍDIMO, Marcelo. “Baile Perfumado: o cangaço revisitado” in: CAETANO, M. Rosário. Cangaço – o nordestern no cinema brasileiro. P.61
______________apud HAAG, Carlos. “Sem idéia na cabeça e uma arma na mão” Revista Fapesp , edição impressa 137, julho de 2007. versão on line Disponível em: http://www.revistapesquisa.fapesp.br /?art=3278&bd=1&pg=1&lg= Acesso em: novembro de 2007.
SILVA, Alberto. “O filme de cangaço”. In: Filme Cultura , nº.17, nov/dez 1970, pp. 42-49
BERNARDET, Lucília e RAMALHO, Francisco. “Cangaço – da vontade de se sentir enquadrado” in: CAETANO, Maria do R. Cangaço – O Nordestern no Cinema Brasileiro. Brasília: Avatar, 2005. pp.33-49 p.33
BERNARDET, Lucília e RAMALHO, Francisco. Op.cit., p.34
CAETANO, Maria do R. “O Cangaço nos documentários da Blimp Filmes” (Entrevista com Maurice Capovilla) in: CAETANO, Maria do R. op.cit., p.58
HOBSBAWM, E.J. Bandidos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1969. p.96
Cf. “Os vingadores” (capítulo dedicado à análise do cangaço) in: HOBSBAWM, E.J. op.cit., p.54-66
SILVA, Alberto. Op.cit., p.46
ORICCHIO, Luiz Zanin. “O Cangaceiro Paradoxal – Corisco em ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol” in: CAETANO, M. R. Cangaço – O Nordestern no Cinema Brasileiro. Brasília: Avatar, 2005. PP.51-54,  p.52
QUEIRÓS (pseudônimo de Miranda) “Em vésperas da Revolução no Brasil”. Informe apresentado à III Conferência dos PCs da América Latina, conforme tradução do PCB (publicada em separata) de La Internacional Comunista, nº.5, abril de 1935, pp.426-444 apud VIANNA, Marly A. G. Revolucionários de 35: sonho e realidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.114
VIANNA, M.A.G. Revolucionários de 35: sonho e realidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.91
HAAG, Carlos.op.cit
MELLO, Frederico Pernambucano. Guerreiros do sol – violência e banditismo no nordeste do Brasil. São Paulo: A Girafa Editora, 2004. p.87-88

 

 

Vitória Azevedo da Fonseca é Doutora em História pela UFF, mestre em História pela Unicamp. Atualmente é professora na Unimep (Universidade Metodista de Piracicaba).