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Ana Key Andre Gatti Jose Inacio Maria Fernanda Curado

 

 

A Experiência Audiovisual nos espaços educativos: possíveis interseções entre Educação e Comunicação

Nosso sistema escolar construiu, durante um longo tempo, processos interacionais essencialmente baseados no relacionamento face-a-face e na palavra escrita. No entanto, o século XX ampliou, com as novas tecnologias, o leque de possibilidades de novas integrações direcionadas para diferentes objetivos e processos sociais, o que não poderia deixar de incidir sobre a Educação.

Em uma sociedade mediatizada, nos deparamos não apenas com diferentes “saberes”, mas com múltiplas formas de mediação e difusão desses saberes. Conseqüentemente, são modificados os modos de aprender relativos a esses saberes. Vale ressaltar que no atual momento civilizatório, a tecnologia não agrega somente novos artefatos e novos modos de fazer, introduz também outra dinâmica, em que o tempo e o espaço são reelaborados, produzindo outras formas de relacionamento entre as pessoas, que continuam buscando na comunicação um sentido para sua existência.

Todavia, na relação entre Educação e Comunicação é muito comum reduzir o campo da Comunicação à sua dimensão instrumental ou ao uso dos meios, deixando escapar algo que seria estratégico: a inserção da Educação nos complexos processos comunicacionais da sociedade atual, levando em conta um sistema difuso de informações, a interseção de linguagens e o descentramento de saberes em relação aos centros da escola e livros que organizam nosso sistema educativo. Para Martin-Barbero (2000, p.94-96) a difusão de conhecimento é uma das questões mais importantes que a Comunicação propõe hoje para a Educação. Para o autor, no nosso sistema escolar, constata-se que não só existe o preconceito com relação à oralidade cultural, como também com relação à cultura audiovisual: uma atitude defensiva diante do desafio de reconhecer um novo ecossistema comunicativo, no qual emerge outra cultura, com novos modos de ler, ver, pensar e aprender.

Por outro lado, ao relacionar os campos da Educação e da Comunicação, observamos que o educacional se coloca, inevitavelmente, como uma questão central para as novas interações da comunicação social. Pois, a cada invenção tecnológica, a sociedade atribui aos processos comunicacionais surgidos dos novos meios uma expectativa educacional, podendo-se afirmar que os dois campos se invadem, estão entrelaçados. José Luiz Braga e Regina Calazans afirmam que “[...] as preocupações comunicacionais da Educação, e as preocupações sobre aprendizagem na Comunicação, parecem de algum modo penetrar os dois campos originais na sua totalidade e fornecer-lhes novos ângulos e questões para observação” (2001, p.56).

Aqui, interessa-nos abordar os relacionamentos entre Comunicação e Educação a partir de uma reflexão sobre a experiência audiovisual nos espaços educativos, apontando a transversalidade das mídias audiovisuais como um desafio importante para a escola, pois, um processo de produção audiovisual no espaço escolar induz a interesses e a comportamentos que perturbam o seu quadro habitual conformado pelas velhas práticas que há muito tempo atuam com uma racionalização disciplinadora separando os saberes – idades, o pensar do sentir, o trabalho do ócio. Ao contrário, a cultura midiática não separa o sensível do inteligível; a atividade reflexiva do entretenimento. A produção audiovisual nos espaços escolares nos remete à dimensão emotiva, ao imaginário e às mitologias da nossa época, introduzindo elementos perturbadores às disciplinas clássicas. É preciso considerar que essa “turbulência” poderá gerar uma renovação. Cabe-nos indagar sobre os processos de apropriação e ressignificação dos códigos audiovisuais nas expressões e manifestações culturais dos espaços educativos; as novas leituras e escrituras daí advindas.

 

A linguagem audiovisual como um fato da cultura

 

Nos anos 1930, Walter Benjamin (1996) chamava atenção para os novos modos de percepção da realidade na sociedade moderna com a reprodutibilidade técnica da imagem. Em uma comparação, ele confronta o teatro e o cinema como duas experiências distintas de se vivenciar a realidade e de se relacionar com a imagem: o teatro oferece um campo visual que permite ao espectador preservar o caráter ilusionístico da cena, enquanto no cinema a natureza ilusionística está no resultado da montagem. O cinegrafista, segundo Benjamin (1996), penetra visceralmente a realidade, enquanto o pintor mantém certa distância da realidade dada e dele próprio. Surgem novos conhecimentos e novas formas de expressar os imaginários.

Nos dias atuais, um número cada vez maior de pessoas tem acesso a celulares e a máquinas fotográficas que filmam, produzem textos; brinquedos eletrônicos que tornam o homem comum uma unidade móvel produtora de informação, de textos, de imagens. O sujeito contemporâneo tornou-se espectador e produtor de suas próprias mensagens. Surgiram diferentes espaços e temporalidades a partir do uso da tecnologia do audiovisual nas novas produções de subjetividade, que emergem do uso dos novos meios no espaço doméstico, nas culturas juvenis, no cotidiano das escolas, nas associações comunitárias, etc.

A década de 1970, início de 1980, especialmente no Brasil, foi um momento importante para a exploração das imagens videográficas no âmbito da cultura popular. Nesse momento, as câmeras de vídeo começam a ser vendidas a preços populares, sinalizando a intenção dos fabricantes em transformá-las em eletrodomésticos. Havia também a intenção de recuperar o tempo perdido com a ditadura militar, buscando-se, nas populações de excluídos e entre os trabalhadores, novos atores para a construção de uma nova sociedade. São criadas associações, núcleos, centros culturais ou de estudos, que mais tarde iriam se transformar no que conhecemos hoje como organizações não governamentais – as ONGs. Muitas dessas organizações iniciaram produções em vídeo que refletiam uma questão fundamental relacionada a essa mídia: a linguagem e seus usos. A maioria dos movimentos populares que se utilizavam do vídeo foi influenciada pela Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire (1970). Nesses projetos, a comunicação popular buscava seus termos nos próprios sujeitos da ação, com a câmera aberta – intervenção feita após a exibição de um vídeo, em que o debate ou intervenção do público é realizado a partir das imagens mostradas ao vivo.

.Em 1984, em Olinda,Pernambuco, no Centro Luiz Freire, surge a TV Viva. Uma TV de rua que ia aos bairros da periferia levando programação de vídeo que muitas vezes contava com a participação da população. Em 1986, surge em Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, a TV Maxambomba, também um experimento de rua, inspirado na TV Viva e em experiências do Chile, investindo na idéia de propor aos moradores dos bairros onde era exibida que produzissem seus próprios programas.

Diferentes processos de comunicação popular surgem nos bairros, nas escolas e nos grupos organizados. Em 1996, é criada a TV Pinel – TV comunitária do Instituto Psiquiátrico Phillipe Pinel, Ministério da Saúde – em Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro. O educador baiano Valter Filé (2000) localiza nessas experiências algumas questões em comum: havia a perspectiva de criação de um espaço de audiência pública e coletiva que recuperasse o espaço da praça, das ruas, numa celebração do reencontro entre as pessoas e delas com questões relacionadas às suas vidas, às culturas e ao lazer. Outra questão seria o acesso das populações aos meios tecnológicos, experimentando sua linguagem e dando novos sentidos ao seu uso.

No campo da Educação essas questões nos remetem a uma discussão sobre os processos subjetivos nos quais osjovens não são apenas representados no “discurso/imagem” da mídia, mas tornam-se sujeitosde uma narrativa audiovisual atualizada no vídeo. Processos subjetivos ou produção desubjetividade não devem ser entendidos aqui do mesmo modo como propõe o discurso “psi” mas, emconsonância com o pensamento de Felix Guattari (1998), compreendemos os processos subjetivos não apenasna esfera de uma interioridade psíquica, em instâncias inconscientes ou egóicas, mas dentrode um contexto histórico-político-cultural.

Neste contexto, a evolução tecnológica, asrelações espaço-temporais e a produção de imagens; a cultura massificada e areprodutibilidade da arte, assim como a mídia hegemoneizada pela televisão são fatores fundamentais para oentendimento da produção da subjetividade contemporânea.

Hoje, verifica-se uma crescente produção audiovisual de jovens veiculada na internet; é possível encontrar projetos de produção de vídeos nas escolas; proliferaram os cursos de cinema e audiovisual. Ao redimensionarem os valores de uma ordem já estabelecida em um mundo concreto, sensível, visível, dinâmico, numa fusão de valores e tradições, os jovens ampliam as possibilidades do olhar. Numa produção midiática criam representações de seu próprio grupo em suas histórias, como forma de definir identidades e de negociar amizades, o que evidentemente, envolve trabalho coletivo. A escola, inevitavelmente, torna-se um espaço para as negociações entre concepções de conhecimento e valores culturais.

Nas negociações entre professor e aluno os sujeitos aprendem a pensar o “eu” e o “outro”, num processo interativo, aproximando, justapondo os contrários, situando o olhar nas fronteiras. Nesse contexto, a produção audiovisual nos espaços escolares nos remete ao pensamento de que vivemos um momento histórico em que a mídia eletrônica deveria ser encarada – ao contrário daquilo que muitos discursos apocalípticos pregam – como um fato da cultura, que exprime nossa complexidade e nossas contradições.

 

Apropriação da linguagem audiovisual

 

As novas propostas curriculares apontam três formas de educação midiática: educar pela, para e com a mídia. Embora apresentadas separadamente, as três perspectivas estão relacionadas na reconfiguração dos espaços escolares e nas relações entre o conhecimento e os sujeitos do conhecimento, sendo o professor um importante mediador.

A perspectiva de educar pela mídia é mais conhecida no meio educacional como Educação a Distância (EAD). Nessa modalidade, torna-se possível a utilização de diferentes mídias (cursos por correspondência, aulas por rádio, teleaulas e educação on-line) na aproximação entre sujeitos e conhecimentos, proporcionando diferentes formas de organização do tempo-espaço do estudo.

A Educação com a mídia já ocorre em muitas escolas, apesar de se considerar a necessidade de uma exploração mais efetiva das variadas potencialidades dos meios. Tal modalidade pressupõe o conhecimento das diversas possibilidades desses meios para os processos de ensino e de constituição de novos conhecimentos, valores e atitudes. Trata-se da produção de jornais impressos, revistas, blogs, vídeos etc, tornando-se necessário adequar os meios ao tratamento de um determinado assunto, em uma situação específica.

A última perspectiva – educar para as mídias – é a que se apropria de forma crítica de diferentes meios, suas linguagens e estéticas, o que implica experiências voltadas para os seus modos de produção.

Todavia, autores como Buckingham (2005) advertem que a educação para as mídias – educar e aprender sobre a mídia – não deve ser confundida com ensinar através ou com a mídia, não se tratando, portanto, de tecnologia educacional ou mídia educativa. Pela importância social, cultural e econômica da mídia nas sociedades modernas, Buckingham considera essencial uma educação que possibilite aos jovens uma visão mais ampla do universo midiático, pois meios de comunicação fazem parte do nosso cotidiano, fornecendo-nos “recursos simbólicos” que usamos para conduzir e interpretar nossas relações e definir nossas identidades.

Para este educador, a mídia não é uma janela por onde podemos ver os acontecimentos do mundo, mas um espaço que fornece canais por meio dos quais representações e imagens do mundo são comunicadas indiretamente. O autor considera como “mídia” todos os modernos meios de comunicação – televisão, cinema, vídeo, fotografia, rádio, publicidade, jornal e revistas, CDs, jogos de computador e Internet, incluindo também o livro, por tratar-se de uma “mídia” que nos dá uma versão ou representação do mundo.

Assim como Gonnet (2004), tendo em vista uma combinação dos textos da mídia de diversas linguagens ou formas de comunicação – imagens visuais (paradas ou em movimento), áudio (som, música ou fala) e a linguagem escrita –, Buckingham (2005) concebe uma idéia de alfabetização midiática que envolve necessariamente a leitura e a escrita da mídia, desenvolvendo a compreensão crítica e a participação ativa dos jovens, que, além de fazerem seus próprios julgamentos como consumidores da mídia, deverão explorar a linguagem midiática em suas próprias produções.

Numa aventura com câmera e vídeo, os alunos descobrem a necessidade de elaborar roteiros, redigir um fio condutor, escolher lugares para a filmagem, assim como as funções necessárias à produção da obra (filmagem, montagem, sincronização). A respeito dessa descoberta, surgem algumas questões. O que suscitam essas ações? Sempre uma forte mobilização. Personalidades se descobrem por meio de uma outra maneira de conceber a escola. Algumas delas vêm à mente naturalmente: Como traduzir um sentimento em imagens? Como se colocar em face da câmera? Deve-se fazer como na televisão ou tentar inventar um outro estilo? (GONNET, 2004, p.80) É certo, porém, que os alunos também descobrem com as regras de trabalho produtivo, num contexto coletivo, as responsabilidades que isso implica.

No contexto da educação para as mídias, a produção não é um fim em si. Os jovens se apropriam da linguagem midiática para expressar suas idéias e sentimentos de forma criativa ou por meio da Arte, usam a mídia também para comunicação, sem reduzir esse fazer a um treinamento técnico. Há também a preocupação em compreender a linguagem audiovisual não como um sistema fechado, mas processual, por meio do qual são construídas as representações e onde acontecem interações. O aluno é visto como sujeito histórico, social e cultural, e não apenas como interlocutor, mas como sujeito criativo, transformador.

O conceito de “apropriação”, deve ser entendido aqui como formas diferenciadas de interpretação, intervenção criativa, apropriação cultural (CHARTIER, 1988), e não no sentido de uso de poder, ou confisco (FOUCAULT, 1979):

 

[...] a diversidade das leituras, que não forçam o texto. Distancia-se do sentido que Michel Foucault dava ao conceito quando considerava ‘a apropriação social dos discursos’ como um dos procedimentos mais importantes através dos quais esses  discursos  eram confiscados e submetidos, colocados fora do alcance de todos aqueles cuja competência ou posição impedia o acesso aos mesmos. [...] A apropriação, tal como a entendemos, tem por objetivo uma história social das interpretações, remetidas para suas determinações fundamentais (que são sociais, institucionais, culturais) e inscritas nas práticas específicas que as produzem (CHARTIER, 1988, p. 26).

 

 

Para Chartier, além da noção de “apropriação”, a noção de “representação” é fundamental dentro de um contexto sociocultural em que uma determinada realidade é construída, pensada, dada a ler, o que implica uma relação ambígua entre ausência e presença. No caso, a representação é a presentificação de um ausente, que é dado a ver segundo uma imagem, mental ou material, que se distancia do mimetismo puro e simples e trabalha com uma atribuição de sentido. Seria uma versão da realidade, não uma apresentação, mas representação. Todas as representações são simbolicamente mediadas, ou seja, todo conhecimento humano é constituído em todas as suas formas de representações, com suas linguagens, pelos seus processos de significações.

Nesse sentido, todo conhecimento humano é uma construção simbólica, com seu modelo próprio de articulação, pois cada comunidade estabelece sua socialidade, baseada nas próprias linguagens e leituras. Assim, as idéias e as representações figuram no cotidiano estruturando as percepções, as convivências sociais e os modos de estar no mundo, coletivo e individual.

Diferentes conceituações abrem caminhos analíticos, que oferecem diferentes olhares sobre o movimento das imagens no mundo. As representações, seja na sua dimensão simbólica, seja nas suas formas concretas de manifestação, – estão ligadas aos contextos histórico e social. Na sua natureza de produção humana e social, têm uma dimensão interna e externa aos indivíduos que percebem e são afetados pelas imagens.

Mas, se considerarmos, também o contexto cultural, além dos contextos social e histórico, encontraremos um ponto de convergência entre as representações e as apropriações. Martin-Barbero (2003) chama de “mediações” os lugares ou contextos culturais em que acontecem os processos de apropriação da imagem. Ao propor a análise das mediações, o autor não se limita apenas a analisar as imagens, mas a compreender a maneira como lidamos com elas. Assim, somos deslocados do terreno das representações, das imagens, dos produtos em si mesmos e conduzidos para o terreno da história, da cultura, da experiência, do cotidiano.

Nesse contexto, aquilo que o sujeito não sabe sobre si mesmo se revela na relação com o outro. A construção da consciência que o sujeito tem de si se constitui no modo como ele compartilha o seu olhar com o olhar do outro. Dessa forma, cria-se uma linguagem que permite a comunicação no contexto das relações socioculturais.

Em uma experiência com as câmeras, o olhar das pessoas se expande, buscando novas formas de interlocução e de revelação. Observa-se que a sensação de estranhamento é relatada por quase todas as pessoas que viram a própria imagem reproduzida na tela. A experiência da mediação da imagem técnica proporciona uma outra visibilidade ao sujeito em relação a si mesmo, desencadeando, paradoxalmente, o sentimento de estranhamento daquilo que lhe é familiar: a sua própria imagem. Ele percebe que há algo não reconhecível em relação a si próprio, podendo, posteriormente, incorporar essa nova imagem, assumindo-a como familiar. Neste momento, vivencia-se uma experiência de transformação da consciência de si.

A relação entre o sujeito e as possibilidades oferecidas pelas câmeras é também uma relação ambivalente, pois, se a sensação de perda de controle da própria imagem e do discurso representa uma ameaça, causando as inibições, a relação com a própria imagem é também algo que seduz.

Nas palavras de Souza, ser visto no vídeo “seduz porque no centro da consciência de sermos sujeitos efêmeros existe o desejo de permanência da nossa própria imagem, da nossa presença no mundo, experiência que agora é recriada pela técnica” (SOUZA, 2003, p.86). A autora afirma que, quando o sujeito se coloca em frente às câmeras, ele sabe que sua imagem irá se deslocar, ganhando uma existência própria, sendo, posteriormente, retomada por outras pessoas em infinitas interpretações.

Nos relatos de muitos jovens é possível perceber que, enquanto alguns se sentem mais à vontade filmando, outros preferem se expor como apresentadores, entrevistados, dançarinos ou contadores de histórias. No momento em que se apropriam dos códigos audiovisuais nas suas criações ou como forma de comunicação, torna-se importante o conhecimento da técnica e da linguagem. Com esse conhecimento, estabelecem diferentes formas de se relacionarem com as câmeras, com o mundo, com eles mesmos e com o outro. Nesse relacionar-se surge a sedução pela própria imagem, que, como disse Souza, é a expressão do desejo de permanência dessa imagem no mundo. Mas é também aquilo que Maffesoli (2004) considerou como o “perder-se no outro”, ao se referir a um reencantamento do mundo favorecido pela tecnologia, acentuado pelo renascimento da imagem como um importante elemento do vínculo social. Quando as pessoas se vêem no vídeo, essa imagem está situada fora e diante de si. Portanto, elas vêem a um outro, relacionam-se com a dimensão alteritária de si mesmas.

No espelho, as imagens são invertidas, vê-se a simultaneidade dos gestos e há uma confusão entre aquele que está na imagem e o próprio sujeito. Para Bakhtin (2003), nossa situação diante do espelho é sempre um pouco falsa, pois, como não dispomos de um enfoque de nós mesmos de fora, recorremos a um outro possível e indefinido, que nos ajudará a encontrar uma posição ou uma forma para nós mesmos. Nossa relação com a imagem externa, segundo Bakhtin, diz respeito, inicialmente, não à estética, mas ao seu eventual efeito sobre os outros. Assim, nos avaliamos não para nós mesmos, mas para os outros e através dos outros: posamos diante do espelho, procurando a expressão que nos parece ser a ideal, essencial e desejada. Trata-se da construção de diversas vozes sociais ou olhares, que costuram a nossa imagem externa. Os “outros” de que fala Bakhtin, aqueles com quem nos relacionamos, são constituintes do nosso imaginário, na representação que fazemos de nós mesmos. Nas telas audiovisuais a imagem é captada pela lente de uma câmera manipulada por alguém que, através do seu olhar, redimensiona o tempo e o espaço vividos, reproduzindo essa imagem em espelhos eletrônicos, que nos trazem informações novas, inusitadas e às vezes constrangedoras sobre nós mesmos. A escola adquire, nesse cenário, uma importância estratégica e decisiva dando voz aos novos sujeitos do discurso e potencializando a figura do educador, que de retransmissor de conteúdos converte-se em formulador de problemas, provocando interrogações e possibilitando o diálogo entre culturas e gerações.

 

Educação midiática e cidadania

 

O vídeo constitui uma ferramenta e um dispositivo pedagógico importante para os adolescentes por sua capacidade de visualizar os próprios conflitos e o dos outros, por sua ludicidade e tecnicidade e por permitir a participação de todos, ainda que alguns se situem atrás da câmera, protegidos da emoção ou do choque de um confronto direto com o outro e/ou com a sua cultura. Por mais paradoxal que isto possa parecer, uma negociação permanente de produção de linguagem torna-se possível com a mediação da câmera.

Em uma reflexão ampliada, podemos perceber que o cenário em que se constituem e se movimentam os sujeitos sociais é um espaço midiatizado, em que as relações, os valores e a consciência se deparam com uma nova ordem cultural, na qual as mídias eletrônicas constituem, segundo Sodré (2002), um novo bios, um novo modo de presença do homem no mundo. A cultura, resultante de um complexo ecossistema comunicativo, atua na construção da realidade social.  A mídia é, então, estruturadora de percepções e cognições, atuando sobre as identidades culturais, a educação, o mundo do trabalho, o exercício de cidadania e a percepção do tempo.

Fala-se muito em cidadania. Com frases feitas que saem quase que automaticamente no discurso dos educadores, os jovens “aprendem” o que devem fazer para serem “cidadãos”. Mas será que, em algum momento, a escola desperta neles uma consciência cidadã ou o desejo de serem cidadãos? Os alunos imaginam a escola como um espaço seu?

Ser cidadão na contemporaneidade é pertencer a uma coletividade organizada. A diversidade e a pluralidade marcam a condição de pertencimento e a reflexibilidade do indivíduo contemporâneo. A construção da cidadania como processo social mais amplo implica, entre outras coisas, considerar as comunidades e as esferas mais privadas como espaços sociais dos indivíduos, de construção de identidades, acolhendo as diferenças sociais e culturais pelo que elas representam, por seu dinamismo e riqueza social.

A emergência de um novo paradigma para a educação dentro de um ambiente midiatizado pode ser detectado no pensamento de educadores e pesquisadores que, contrariamente à idéia do jovem como simples vítima passiva das influências da mídia, acreditam que a educação pode ser um processo instigante de descoberta de novas atuações e de participação cidadã. Longe de ser uma forma de proteção, a educação midiática é uma forma de preparação, que desenvolve nos jovens a compreensão e a consciência social de pertencimento dentro de um determinado universo cultural.

 

Algumas considerações

 

Entendendo os valores culturais como construtos de diferentes linguagens, os modos como nos apropriamos das linguagens definem nossa relação com as tecnologias e com os meios de comunicação, que podem ser pensados não apenas na sua dimensão instrumental, utilitária – para ampliar as comunicações –, mas também como suportes para as experimentações artísticas, como formas de entretenimento, enfim, na expressão de sentimentos e saberes.

Os deslocamentos, as contradições e a heterogeneidade temporal e espacial das sociedades nos tempos atuais nos remetem a novos parâmetros para compreender a cultura e a comunicação. Não são os meios de comunicação que direcionam a sociedade, mas esta quem os determina. A ordem tecnológica da civilização é determinada pela ordem cultural dos significados e valores; evidenciando a importância dos valores culturais de nossas sociedades para uma relação mais humanizada com a tecnologia e, da mesma forma, com os meios de comunicação.

Martin-Barbero ressalta a importância de um novo paradigma do pensamento para estabelecer uma nova relação entre o discurso (a lógica) e o visível (a forma). Na atualidade, o sistema midiático se configura como um conjunto de processos de mediações que vem ampliando e diversificando os modos de interação entre variados “eus” e alteridades com diferentes procedimentos e tecnologias, formando, junto ao livro e ao jornal – já seculares –, um conjunto complexo e diversificado, campo para novas poéticas e para as interações sociais, contextualizadas não apenas dentro de uma relação mídia e usuário, mas também entre setores da sociedade e entre pessoas.

A relação dos jovens com as novas tecnologias é, para Martin-Barbero, uma relação de cumplicidade cognitiva e expressiva, pois  nos sons, na velocidade, nas imagens e fragmentações, é que os jovens encontram o seu ritmo e o seu idioma. Assistem, hoje, à configuração de uma espacialidade que não se baseia mais nas diferenças entre interior e exterior – espacialidade própria das telas da TV e do computador.

Das representações e práticas sociais, em especial as juvenis, emerge uma nova subjetividade, abrindo espaço para um pensamento que não opõe escola e televisão, Educação e Comunicação (MAFFESOLI, 2004).

Se, nos anos 1930, W. Benjamin associava as modificações do aparato perceptivo do transeunte no tráfego da grande urbe com a experiência do espectador de cinema, hoje, as transformações que atravessam o sensorium urbano são experienciadas no espaço doméstico por meio da televisão e do computador. Diferentemente das culturas letradas, nos relatos fragmentados do vídeo, do cinema e das culturas eletrônicas audiovisuais, encontramos uma flexibilidade que permite a articulação de elementos de variados mundos culturais, coexistindo lado a lado com diferentes temporalidades.

Estamos vivenciando um momento marcado por mudanças conceituais e metodológicas que a todo instante nos desafiam a compreender nosso papel enquanto educadores e enquanto seres humanos criadores de si próprios e do mundo, numa sociedade permeada por tecnologias, denominada às vezes de sociedade da informação, sociedade do conhecimento ou pós-moderna. Na contemporaneidade, os espaços educativos se deparam com a possibilidade de se apropriarem da cultura midiática para criar novos espaços de interação, nos quais alunos e professores tornam-se co-autores na construção de conhecimentos, e de estéticas que implicam o reconhecimento do outro – num acontecimento ético.

Nesse contexto, à Educação atribui-se o desafio não só de explorar as possibilidades que as novas tecnologias criaram, mas, parafraseando Paulo Freire, de reconhecer, no universo cultural dos jovens e nas telas audiovisuais que fazem parte do seu cotidiano, novos modos de ler (conhecer) o mundo e de escrevê-lo (transformá-lo). Assim, localiza-se a escola como uma importante mediadora sociocultural nos processos de apropriação da linguagem audiovisual e usos de diferentes suportes para a criação, expressão e comunicação.

 

Referências bibliográficas

 

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

 

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996.

 

BRAGA, José Luiz; CALAZANS, Regina. Comunicação e educação: questões delicadas na interface. São Paulo: Hacker, 2001.

 

BUCKINGHAM, David. Media education: Literacy, learning and contemporaryculture.Cambridge – UK, 2005.

 

CHARTIER, Roger.  A história cultural: Entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1988.

 

FILÉ, Walter (org.). Batuques, fragmentos e fluxos. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2000.

 

GONNET, Jacques. Educação para as mídias. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

 

MAFFESOLI, Michel. Notas sobre a pós-modernidade: o lugar faz o elo. Rio de Janeiro: Atlântica Editora, 2004.

 

MARTIN-BARBERO, Jesus. Novos regimes de visibilidade e descentramentos culturais.In: FILÉ, Walter. Batuques, fragmentações e fluxos. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

 

______________. Dos meios às mediações. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2003.

 

SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho. Petrópolis RJ: Vozes, 2002.

SOUZA, Solange Jobin e. Dialogismo e alteridade na utilização da imagem técnica em pesquisa acadêmica: questões éticas e metodológicas.In: FREITAS, Maria Teresa; SOUZA, Solange Jobin; KRAMER, Sônia (orgs.). Ciências humanas e pesquisa: leituras de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Editora Cortez, 2003.