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Ana Key Andre Gatti Jose Inacio Maria Fernanda Curado

 

 

O Auto da Compadecida: representações do cotidiano e leituras do real

Este artigo se dispõe a conectar-se com todos os que questionam e refletem sobre o Nordeste, região com baixos indicadores socioeconômicos, apesar de possuir riquezas naturais e terras férteis.

Através do filme Auto da Compadecida dirigido por Guel Arraes, é possível analisar as estruturas sociais e econômicas nordestinas e observar os elementos que compõe uma das sociedades mais desiguais do Brasil, apesar de que o quadro político e econômico encontrado no Nordeste não é exclusivo daquela região, podendo ser vista em várias outras partes do país.

Ariano Suassuna, em uma atitude feliz e criativa, escreve a peça Auto da Compadecida em 1955 com conhecimento de causa e de uma forma absolutamente didática, fácil de ser assimilada, deglutida, tanto para a época como para os dias de hoje, pois com facilidade as pessoas podem observar o solo em que o filme se planta, as raízes que se desenvolvem nele e os frutos que podem ser degustados. E o solo em questão é o belo e injustiçado Nordeste, terra de muitas belezas e pouca distribuição de renda, muitas praias e péssimos índices de saneamento básico e altos índices de analfabetismo e desnutrição. Durante séculos os problemas brotavam como se fossem ervas daninhas. Algumas atitudes inovadoras, como a de Delmiro Gouveia, patrono da indústria no Nordeste, mostrou que as coisas podem ser diferentes e opções sempre existem.

Porem, várias mudanças estão em curso, pois o atraso não é destino, é conseqüência de anos de descaso e falta de visão, de excessivo egoísmo. Podemos constatar hoje (2011), que muitos problemas estão sendo combatidos com sucesso, como a desnutrição e a falta de investimentos em infra-estrutura. Para a região mais pobre, tudo o que resta é crescer (ou manter-se pobre) e novos empreendimentos estão surgindo, pois várias indústrias se instalaram na região e com isso há um significativo aumento na renda per capita.

O filme é rodado em uma pequena cidade, alias, onde fica Taperoá mesmo? Pernambuco? Ou Alagoas? Se você pesquisar no Google encontra-se Taperoá na Bahia e na Paraíba. Acredito que pouco importa onde a cidade está geograficamente localizada, pois a sua essência está em todas as cidades do mundo onde a fome, a desnutrição, a violência e as injustiças sociais se apresentam para os que mais têm dificuldade de combater estes males. O filme é cosmopolita, refere-se a muitos outros países, apesar de não parecer. O filme é riquíssimo em detalhes , é só perceber como os personagens se entrelaçam, convergem para as mazelas de nossa sociedade, eles são a soma das nossas muitas parcelas. Membros do clero, brancos pobres, latifundiários, militares, autoritarismo paterno e patrões. 

Uma ampla gama de nuances da vida publica e privada, do alto e do baixo, do claro e do escuro, todos ali estão dispostos a buscar o melhor pra si, custe o que custar, pois a vida não é fácil para ninguém (talvez menos difícil para alguns) e o dia seguinte deve ser garantido de alguma forma. E dá-lhe Igreja Católica! Reverência total, fé cega, acreditar sem questionar, pedir benção, assistir missa, pagar os dízimos, obediência inquestionável, pois o representante de Deus está ali (quem contesta o Padre ou o bispo?). A única arma, o único recurso, a única ferramenta que os pobres têm no caso de Chicó e João Grilo, é a astúcia, a inteligência. Este atributo que jaz dentro das pessoas, com maior ou menor intensidade, mas que sempre é útil quando precisamos para buscar nossa proteção ou nossa sobrevivência. E sendo assim, os dois tentam sobreviver naquela selva que é a pequena cidade onde vivem lutar pelo pão de cada dia, mas LUTAR mesmo, porque sem atitude concreta não se vence a fome. Ideologia não enche barriga. Apesar de minúscula a cidade possui problemas imensos, tais como a segurança publica. E lá vem Severino de Aracaju e seu bando! Severino matador, mas que Jesus perdoa, porque foi vítima da loucura dos homens, teve seus pais assassinados e enlouqueceu depois disso...

Horrível ver a sua cidade invadida de repente, por um bando armado e atirando para todos os lados, saber que a policia correu e as pessoas estão desesperadas, buscando refugio aos gritos, outras mortas e outras morrendo. No Nordeste , aproximadamente de 1860 a 1930 pessoas que se sentiam profundamente revoltadas com a estrutura social buscam fazer justiça com as próprias mãos e saem pelo sertão afora roubando, saqueando, matando e tudo o mais, muitas vezes contratadas por fazendeiros latifundiários visando manter no poder e eliminar concorrentes. Severino de Aracaju demonstra isso, exemplifica este fato e expõe outro problema, que acaba por gerar outros mais, alimentando uma ma corrente de violência e de sentimentos de vingança, quando a união de forças seria a única arma realimente eficaz para poder contestar a estrutura, a união e o voto, depois que este foi concedido aos pobres.

Cabo 70 e subordinados pouco podem fazer. Seu contingente é pequeno e seus recursos limitados, o soldo não deve ser dos melhores. Ele tenta realizar seu trabalho, manter a ordem, garantir de alguma forma a presença do Estado naquela localidade, e dentro do seu possível, ele consegue, mas não exija muito, pois uma invasão de cangaceiros para ele deve ser um verdadeiro inferno. Sobretudo pelo fato de correr o risco de perder credibilidade e se desmoralizar diante deste fato. Assim como outros, apaixonou-se pela filha do latifundiário da cidade. A filha de um senhor de terras que ele não alcança em poder financeiro e influência política. Filha esta que tem a triste sina de ser ordenada pelo pai autoritário, antidemocrático, injusto, que decide que ela deve se casar porque ele quer, e não porque ela tem o desejo, ou a vontade de mudar sua vida. 

A vida de muitos está aprisionada nas mãos de poucos, os poucos que mandam, os poucos que exercem o domínio. Não há contestação em uma sociedade patriarcal, o pai manda e pronto, está mandado. Manda quem pode obedece quem tem juízo. Este ditado popular é muito mais antigo do que as pessoas imaginam.No filme, alguns personagens morrem e são levados para uma espécie de julgamento fundamentado na doutrina católica, no Cristianismo que regeu as vidas das pessoas e que agora se mostra diante deles. Eles são submetidos à Lei que temeram, e que será aplicada a todos os que a infligiram. 

O purgatório é uma chance, o perdão uma esperança, e o inferno uma realidade extremamente dolorida. Nossa Senhora se compadece de todos, busca um denominador de paz, de amor, de entendimento. O diálogo da salvação, o remédio geral, a anistia para os frágeis. Tudo isso é oferecido de forma ampla, geral e irrestrita, pois todos estão sujeitos ao erro e as faltas são apenas a resultante de almas imperfeitas que, no futuro, encontrarão o melhor de si dentro de si mesmos e expressarão toda a luz que contem.E as pessoas então são perdoadas, novas chances, novos horizontes, um novo amanhecer surge e o passado se torna orvalho que se dissolve com o sol. O pecado se dissolve, o mal perde a força e o diabo volta para o inferno de repente. Com a mesma velocidade e intensidade que surgiu, desaparece.

O filme é magnífico no aspecto socioeconômico, pois revela as mazelas do nosso Brasil de forma ampla e escancarada. Só não vê quem não quer. Os problemas da colonização estão lá, os latifúndios, a monocultura, as imensas desigualdades. Ponto de partida para reflexão, Guel Arraes , assim como Ariano, foi feliz e criativo, pois muitos alunos, do Ensino Fundamental ao Superior, inclusive de Pós Graduação, podem assistir e analisar as faces do grande poliedro que é a História do Brasil. Pesquisar os vários Brasis que temos é nosso dever, e, acredito uma via de acesso a nossa própria dignidade e soberania.

 

*Oswaldo Henrique Nicolielo Maia é Graduado em História pela Universidade do Sagrado Coração, Especialista em Didática e Metodologia do Ensino Superior, e leciona no Centro Paula Souza, na ETEC Rodrigues de Abreu, em Bauru, e atualmente cursa Pedagogia na Uninove.