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O negro no cinema brasileiro de ficção

Pouca gente sabe, mas o Brasil é, atualmente, o segundo país do mundo em população negra (49% de 170 milhões de habitantes), superado apenas pela Nigéria - e na frente da Ethiopia, do Congo (ex Zaire), dos Estados Unidos , da África do Sul e todos os outros.

 

por João Carlos Rodrigues*

Durante mais de 300 anos, cerca de 5 milhões de negros foram levados de África para o Brasil. A grande maioria veio da região de Angola, ou da Costa da Guiné ( atuais Nigéria e Benin ). Descendem, portanto, principalmente das etnias congo, ambundo, ovimbundo, lunda, iorubá, fon, haussá e ibo. Com o correr dos séculos, esses povos miscigenaram entre si, e também com brancos e índios, formando o negro brasileiro, já diferente do africano em estatura, tonalidade da pele, cultura, etc, etc.

Por terem chegado apenas no século passado, os iorubá (chamados nagô no Brasil, lucumi em Cuba ) conservaram melhor os costumes. E a estrutura da sua religião (candomblé, umbanda, santeria, macumba) absorveu a de outros povos (angolas e congos) mais numerosos, mas que por serem muito anteriores, já estavam sincretizados ao Catolicismo dominante. Os haussá muçulmanos, pouco numerosos, eram fundamentalistas da confraria Tijanyia, e tentaram várias revoltas na Bahia, como fizeram na África. Derrotados, foram expulsos do país em 1835. Como vemos, o relacionamento do Brasil com o continente africano, primeiro como colônia de Portugal, depois como Império independente, foi íntimo, mas pouco recomendável. Os mercadores de escravos portugueses de Angola, que abasteciam o mercado local, tentaram em 1822 ser incorporados ao novo govêrno do Rio de Janeiro. O mesmo pensou o branco Francisco Felix de Souza ( Xaxá de Souza ) que tinha um harem de mulheres africanas, e estabeleceu uma dinastia poderosa de traficantes de escravos no litoral do reino do Dahomey. Ainda hoje seus descendentes ( agora negros ) vivem lá. Werner Herzog inspirou-se nele para filmar Cobra Verde em 1988. A anexação só não aconteceu porque, para obter o reconhecimento da sua independência pelas grandes potências, os brasileiros tiveram de renunciar a qualquer pretensão africana. Poucos anos mais tarde, devido a perseguições na Bahia, muitos ex-escravos brasileiros retornaram à Costa da Guiné, formando importante comunidade nas cidades de Lagos, Whyddah, Nova Calabar, Abeokutá e Porto Novo. Há um romance famoso (A casa da água - 1969 de Antonio Olinto) sobre o assunto, traduzido em várias línguas. Quando o tráfico foi proibido em 1850, esse relacionamento interrompeu-se por mais de um século. Só foi restabelecido em 1960, quando os países africanos tornaram-se independentes.

Do ponto de vista racial, a sociedade brasileira teve uma formação contraditória , embora tolerante. Durante o Império ( 1821-1889 ) vigorava a escravidão desumana, mas muitos mulatos e mesmo alguns negros livres ocuparam cargos de destaque no govêrno, o que denota uma ausência do preconceito racial própriamente disso. O barão de Cotegipe, primeiro ministro pelo Partido Conservador, e opositor da Abolição da Escravatura, era mulato. Já o famoso engenheiro André Rebouças era negro e abolicionista, frequentava o palácio e dançava valsa com as princesas reais nos bailes da côrte, para escândalo dos racistas.

Paradoxalmente, foi durante a República, que se pretendia democrática, que foram divulgadas teorias racistas, segundo as quais o Brasil devia abrir-se para a imigração européia como uma forma de " branquear" sua população. Mesmo nunca aceita oficialmente, essa incômoda ideologia foi bastante influente em amplos setores da elite, até bem pouco tempo.

Embora desde o século XIX tenham contribuído para a cultura brasileira com alguns dos seus expoentes mais ilustres - os escritores Tobias Barreto (1839 - 1889), Machado de Assis (1839 - 1908) e Lima Barreto (1881 - 1922); o poeta simbolista Cruz e Souza ( 1861 - 1898 ) ; os músicos José Maurício Nunes Garcia (1787 - 1830), erudito, e Patápio Silva (1881-1907), Pixinguinha (1898 - 1973) e outros tantos populares - os afro-brasileiros e seus descendentes, por muito tempo depois do fim da escravidão, ocuparam apenas uma posição subalterna na sociedade. Só recentemente, nos últimos 10 anos, foram eleitos políticos negros para cargos importantes, como senadores, prefeitos e governadores de estado. O Brasil democratiza-se, ao que parece, mesmo que num ritmo muito lento, como é a sua infeliz tradição.

A representação dos negros nas artes brasileiras em geral ( literatura, pintura, teatro, cinema, música popular, etc ) deixa muito a desejar. Um dos questionamentos mais frequentes feitos pelos afro-brasileiros é que não são representados como personagens individualizados e profundos, mas apenas como arquétipos, estereótipos ou caricaturas. Mas o tema é mais complexo. Artur Ramos (O folclore negro no Brasil - 1935) notou como os orixás do candomblé e da umbanda "passaram ao folclore brasileiro e mantem o contato estreito com o imaginário popular" e "sobrevivem como símbolos de complexos individuais ". Esses símbolos são muito bem analisados pelo mais importante pesquisador, o francês Pierre Fatumbi Verger, no seu livro Orixás - 1981, cuja classificação das qualidades e defeitos das divindades afro-brasileiras revela cerca de uma dezena de personalidades arquetipais. Outra família de tipos provém da imaginação do branco, forjada ou pelo mêdo pânico e pelo ódio racista, ou pela solidariedade liberal, ou pelo complexo de culpa a posteriori . Muitos são oriundos do tempo da escravidão, outros estão ainda em formação na sociedade moderna. Ao contrário do que disse o pseudo-historiador Fukuyama, a História não tem fim. E o tempo não para, já nos dizia o filósofo pre-socrático Heráclito de Ephesus há mais de 2500 anos.

No meu livro O negro brasileiro e o cinema - 1988, até o momento a única obra publicada na língua portuguesa sobre o tema, enumerei 12 desses arquétipos, e estão surgindo mais outros. Os mais importantes são o Preto Velho ( que transmite a tradição ancestral africana ), o Mártir da escravidão, o Nobre Selvagem, o Negro Revoltado, o Negro da Alma Branca ( trágico elo entre oprimidos e opressores ), o Crioulo Doido ( equivalente assexuado e cômico do Arlequim da Commedia dell’Arte ), a Musa Negra. Há dois com uma nítida conotação sexual exacerbada : o ameaçador Macho Negro ( Negão ) que povoa os sonhos racistas com estupros e violências ; e a Mulata Sedutora ( Mulata Boa ), uma espécie de mulher-objeto cor de chocolate, desejada por todas as raças. Todos os personagens negros e mulatos da ficção brasileira se enquadram em uma dessas categorias, quando não em mais de uma.

Toda essa complexidade acabou se refletindo no cinema, introduzido no Brasil em 1898 pelo italiano Affonso Segretto. Um historiador chamou o período silencioso de "a bela época do cinema brasileiro", dada a quantidade e diversidade da produção. Infelizmente quase nada restou (menos de 5%), tudo destruido por incêndios, mas do ponto de vista do negro brasileiro, isso conta muito pouco. O cinema mudo coincide exatamente com o período áureo das teorias racistas, quando as religiões afro-brasileiras eram perseguidas pela polícia, e os mulatos claros usavam pan-cake para parecer brancos. Houve portanto poucos registros de negros em documentários. Mas o primeiro filme proibido no Brasil por motivo político foi A vida de João Cândido, o marinheiro, realizado em 1912, sobre a revolta dos marinheiros negros da Marinha de Guerra contra os castigos corporais ( Revolta da Chibata ), dois anos antes. Episódio heróico, aliás muito semelhante ao levante de Odessa de 1906, que posteriormente veio inspirar Eisenstein a filmar o clássico Potenkin. Quanto aos filmes de ficção, nos poucos que sobreviveram, encontramos quase sempre personagens estereotipados, abobalhados, supersticiosos e covardes. A um passo da debilidade mental. Em um deles, o perfil de uma criança negra é intercalado na montagem com as fuças de um sapo, animal associado à feiúra, à feitiçaria e ao mal.

O cinema sonoro surge pouco antes de 1930, possibilitando a nacionalização da Sétima Arte, que antes utilizava uma línguagem internacional sem palavras, a pantomima. Agora, cada um falaria seu próprio idioma, e danem-se os outros ! Não é coincidência que seja a mesma época dos govêrnos nacionalistas autoritários - o fascismo, o nazismo, o stalinismo - que terminaram por provocar a Segunda Guerra Mundial. O Brasil não escapou dessa tendência. Derrotado nas eleições de 1930, Getúlio Vargas comandou uma revolta e chegou ao poder como chefe de um govêrno provisório, posteriormente presidente da república, e finalmente ditador do Estado Novo, simpatizante de Mussolini e Salazar. Ficou 15 anos no poder.

Embora tenha criado o Dia da Raça (onde eram louvadas as tres etnias formadoras da nação : Branca, Negra e India), Vargas colocou na ilegalidade todos os partidos políticos. Inclusive a legendária Frente Negra Brasileira, organizada em São Paulo, mas com ramificações por todo país. Havia uma preocupação oficial em fingir que o Brasil era habitado majoritáriamente por brancos, quase sem negros e mestiços. Isso levou o Departamento de Propaganda da ditadura a pressionar e obter o cancelamento do documentário que Orson Welles realizava no Brasil ( It’s all true ) em 1942. O grande cineasta só se interessou pelo samba e pela cultura afro-brasileira, irritando as autoridades.

O cinema brasileiro do período 1930-1945 é ainda muito influenciado pelo teatro e pelo rádio. Excesso de diálogo e quase nenhum movimento de câmera. Poucos filmes possuem a fluência das produções mexicanas, ou mesmo argentinas, do mesmo período. Há também o problema da censura, que se torna cada vez mais rigorosa. A abordagem do negro torna-se então paternalista. O média metragem O despertar da redentora, produzido em 1942 pelo Instituto Nacional do Cinema Educativo, um orgão governamental, conta um episódio da juventude da princesa Isabel, filha do segundo e último imperador brasileiro. Afrontada por não poder proteger uma jovem escrava contra a violência de sua proprietária, a jovem princesa jura libertar todos os escravos do Brasil, o que fará, exatamente 26 anos depois. Depois de mostrar, no meio da narrativa, cenas dantescas do sofrimento dos negros , sob os toques solenes de uma mórbida sinfonia, o filme se encerra com o sorriso agradecido de um escravo, libertado das correntes. Nenhuma menção das fugas em massa das fazendas, das centenas de mortos, nem da campanha dos abolicionistas, que durou quase 70 anos e empolgou negros e brancos de todo país. A liberdade foi apenas uma dádiva de uma princesa branca, nos insinua êsse pequeno filme, realizado por um importante pioneiro ( Humberto Mauro ), e que nos informa mais sobre o tratamento do negro no Estado Novo do que muito tratado de sociologia política.

Embora desde o século passado o teatro brasileiro já apresentasse personagens negros como protagonistas ( O demônio familiar - 1857 e Mãe - 1860, ambas de José de Alencar ), os atores ainda eram brancos pintados, como os minstrels americanos. Esse costume persistiu até bem mais tarde. No cinema, o verismo exige negros verdadeiros, e assim surgiram os primeiros atores profissionais, vindos dos palcos : Grande Otelo, Pérola Negra, Chocolate - os pseudônimos já ostentam a etnia, informando antes mesmo da própria imagem do intérprete. Mas seus personagens não cresceram de importância. Analisemos os dois maiores sucessos de bilheteria do período, dois melodramas musicados. Favela dos meus amores - 1935, direção de Humberto Mauro, foi um dos primeiros filmes de ficção feito fora dos estúdios, numa favela de verdade no Rio de Janeiro. Os personagens são compositores e sambistas, mas interpretados por atores brancos ou mulatos claros. O negro surge mais como figurante. Mesmo assim o filme chegou a ser censurado, "porque mostrava muito pobre e muito prêto", mas acabou liberado. O ébrio - 1945, direção de Gilda de Abreu, um dramalhão sobre as desgraças de um cantor alcoolatra, enganado pelos próprios parentes, tem protagonistas brancos. Há apenas tres negros no filme : todos são criados domésticos devotados aos patrões, ingênuos e quase inverossímeis de tão bondosos.

A redemocratização de 1945 deu um novo alento ao cinema brasileiro. A censura afrouxou, foram suspensas as restrições à importação de negativos, a produção explodiu. Em quantidade e popularidade, dominam as comédias, intercaladas com números musicais, onde um ou dois cômicos auxiliam o par romântico contra os vilões - as famosas chanchadas. Havia chanchadas urbanas, semelhantes às comédias do italiano Totó. E chanchadas rurais, que lembram os filmes indianos de Raj Kapoor. É no entanto um gênero bem brasileiro, dirigido a um público de analfabetos. Nele eram criticados todos os setores da sociedade, inclusive as etnias. Encontramos personagens satirizando portugueses, italianos, libaneses, judeus, americanos, franceses - e também os negros. Numa chanchada de 1949, dirigida pelo italiano Ricardo Fredda ( O caçula do barulho ), um comediante ( branco ) reluta em seduzir uma criada negra e gorda porque a acha parecida com uma macaca chimpanzé. Em outra do mesmo ano ( E o mundo se diverte ), o ator negro, baixo e feio, atende ao telefone, onde uma sedutora voz feminina pede que descreva a si próprio. E êle responde : " - Sou louro, alto, olhos azuis, etc... " Como vemos, as chanchadas eram ingênuas mesmo nas suas pequenas maldades.. Mas em uma pelo menos ( A dupla do barulho - 1953, direção de Carlos Manga), o problema racial aparece nítidamente. Numa dupla de atores ( um negro e um branco ) a harmonia se rompe quando o negro se julga preterido, abandona tudo, torna-se alcoolatra e sofre muito, antes do inevitável happy-end. Mesmo numa produção comercial de rotina como essa, podemos encontrar uma evidente metáfora social, sem dúvida uma grande evolução frente às décadas anteriores.

O gênero chanchada revelou grandes talentos negros. Um deles foi Cajado Filho ( 1912 - 1966 ), cenógrafo e roteirista de dezenas de filmes de sucesso. Dirigiu cinco longametragens entre 1949 e 1958, todos infelizmente desaparecidos. Foi quase certamente o primeiro diretor negro do cinema brasileiro. Outro, ainda maior, foi Grande Otelo ( 1915 - 1993 ), ator de grande comunicabilidade, que estrelou , na década de 50 e início da de 60, dezenas de comédias em dupla com um comediante branco (primeiro Oscarito, depois Ankito). Grande Otelo era também insuperável como ator dramático, e, nessa condição, participou de dois outros filmes decisivos na história do negro no cinema brasileiro. Também somos irmãos - 1949, direção de José Carlos Burle, trata abertamente do preconceito racial na história de dois irmãos negros, um advogado, o outro marginal, e como a sociedade reage diferentemente a um e outro. Premiado pela crítica como o melhor filme brasileiro do ano, foi por muitas décadas dado como perdido. A recente descoberta de uma cópia em boas condições, revelou no entanto muitas qualidades inesperadas no aprofundamento psicológico dos dois protagonistas. Já Rio, Zona Norte - 1957, direção de Nelson Pereira dos Santos, muito influenciado pelo neorealismo italiano, conta a vida de Espírito da Luz, negro, favelado, compositor de sambas, que morre ao cair de um trem, no exato momento em que sua música alcança o sucesso nas rádios. É talvez a sua melhor interpretação.

Bahia de todos os santos - 1960, direção de Trigueirinho Neto, também na linha do melhor cinema italiano, é ambientado entre os adolescentes marginalizados de Salvador. São negros, brancos e mulatos - mas a sua maior ou menor aceitação pela sociedade é inversamente proporcional à escuridão da sua pele. O filme se passa nos anos 30, e já nas primeiras sequências, assistimos à invasão de um candomblé pela polícia.

Outro sinal de evolução surge nos filmes históricos sobre o período da escravidão, agora bem distantes do paternalismo anterior. Vejamos Sinhá Moça - 1953, direção de Tom Payne e Osvaldo Sampaio, realizado em São Paulo com orçamento de super-produção, e premiado no Festival de Veneza. Há duas narrativas distintas. Uma se passa entre os personagens brancos, divididos entre escravocratas conservadores e abolicionistas liberais. A outra se desenvolve entre os escravos, que, revoltados pelos maus tratos, planejam uma fuga em massa. As duas convergem no final, quando o branco abolicionista defende no tribunal o líder negro aprisionado, cuja absolvição se dá no exato momento em que a escravidão é abolida em todo país. Apesar da narrativa tradicional hollywoodiana, o filme ainda hoje mantém o interesse, pricipalmente na segunda parte, da fuga dos escravos em diante. Quase uma década depois, em pleno movimento do Cinema Novo, Carlos Diegues realizou Ganga Zumba em 1964. Passa-se no Nordeste, nos canaviais de Alagoas, no século XVII, entre um grupo de escravos que foge para reunir-se ao Quilombo dos Palmares, refúgio que sobreviveu quase um século antes da sua destruição pelos brancos. As analogias com as guerrilhas do Terceiro Mundo e a construção de uma nova sociedade, slogan da extrema esquerda, são diretas. Barravento - 1962, o primeiro filme de Glauber Rocha, levou esses intuitos revolucionários ao extremo : condena os cultos afro-brasileiros como perpetuadores do subdesenvolvimento. E apresenta de modo claro a verdadeira questão : é possível modernizar-se sem perder as raízes ?

Em 1964 o Brasil sofreu um golpe militar, que se institucionalizou num regime de extrema direita, autoritário e nacionalista, que durou até 1983. Paradoxalmente, houve pela primeira vez investimentos estatais maciços na produção e distribuição de filmes, e foi assegurada liberdade temática. Surgiram assim obras importantes sobre o negro brasileiro e sua cultura. Compasso de espera, direção de Antunes Filho, conta o drama de um intelectual negro na megalópolis São Paulo, tentando integrar-se na sociedade branca. Filmado em 1969, só extreou nos cinemas quatro anos depois. O amuleto de Ogum - 1974 ( policial que se passa nos bastidores do culto da umbanda ) e A tenda dos milagres - 1977 ( adaptação de um famoso romance de Jorge Amado sobre a miscigenação na Bahia ), foram dirigidos por Nelson Pereira dos Santos. Xica da Silva - 1976, direção de Carlos Diegues, é a história verídica da escrava que tornou-se amante de uma alta autoridade portuguesa no século XVIII, conseguindo assim liberdade e ascenção social. O filme, uma sátira bem humorada, foi um grande sucesso de bilheteria. A saga de Palmares voltou a ser narrada por esse mesmo diretor, em Quilombo, de 1984, dessa vez como super-produção. Chico Rei - 1985, direção de Walter Lima Junior, conta a lenda de um rei africano que, vendido como escravo para o Brasil, reconquista a sua liberdade (e a de sua tribo) com o fruto do seu trabalho nas minas de ouro. Até um cineasta africano, o nigeriano Ola Balogun dirigiu no Brasil em 1979 A deusa negra. O argumento é sobre um intelectual africano que vem ao Brasil à procura do amuleto de um antigo antepassado escravizado, conhecendo assim as comunidades negras do Rio de Janeiro e Bahia.

Com o fim do govêrno militar e a chegada da crise econômica, a ajuda estatal foi suspensa no início dos anos 90, provocando o colapso da produção, que caiu de uma média de 70 longa-metragens anuais, para apenas quatro. Atualmente, com investimentos privados e das redes de televisão, o cinema brasileiro, mais uma vez, tenta renascer.

Um fato importantíssimo deve no entanto ser lembrado. Esse renascimento pouco ou nada tem a ver com o negro brasileiro. Todos os cineastas citados até o momento, mesmo os que fizeram bons filmes sobre o tema, são brancos. A mesma coisa podemos afirmar dos roteiristas. As únicas exceções são Cajado Filho e Ola Balogun, sendo esse último estrangeiro.

Isso não significa que não tenham existido outros diretores negros no Brasil, mas sim que as suas carreiras não tiveram continuidade. Pista de grama / Um desconhecido bate à porta - 1958 de Haroldo Costa é uma comédia sofisticada com atores brancos, e personagens negros coadjuvantes. Um é pouco, dois é bom - 1970 de Odilon Lopez, é outra comédia, desta vez popular e dividida em dois episódios, o primeiro dos quais com personagens brancos. O segundo episódio trata da paixão impossível de um pickpocket negro e uma loura da classe alta. O filme e o diretor são do Rio Grande do Sul, estado fronteiriço ao Uruguai e Argentina, onde há poucos negros, e a maioria da população descende de imigrantes italianos e alemães. As aventuras amorosas de um padeiro - 1976 de Waldyr Onofre, é uma sátira à população da periferia do Rio, mas o diretor preferiu abordar brancos, negros e mulatos a enfocar apenas sua própria etnia. O filme apresenta dois personagens negros, alvos sexuais de uma mulher branca. É interessante assistir ao tema sob o ponto de vista de um cineasta afro-brasileiro. Na boca do mundo - 1979 de Antonio Pitanga, ao contrário dos anteriores, é um drama sobre miscigenação, com final infeliz. O protagonista negro acaba perdendo a vida, ao envolver-se com uma branca rica e uma mulata ambiciosa. O resultado final exprime misoginia em alto grau, e um ponto de vista negativo sobre miscigenação, que me parece oposto ao da maioria absoluta da população brasileira. Já Afrânio Vital conseguiu dirigir três filmes dentro do sistema comercial do cinema erótico. Um deles (A longa noite do prazer - 1984) tem implicações raciais: dois marginais urbanos (um negro e um branco) envolvem-se num roubo de pedras preciosas e são perseguidos pela polícia. Interessante são os motivos que os levam ao crime: o branco é rico e rouba por tédio; o negro é pobre e rouba para pagar a operação de um sobrinho. Até o momento, este foi o último longa-metragem de ficção dirigido por um negro brasileiro. Outro diretor, Zózimo Bulbul, tem tido atividade mais constante no documentário (um longa e tres curtas), mas o seu trabalho escapa ao tema desse artigo.

Vimos como o cinema brasileiro evoluiu no tratamento ficcional dos personagens negros, desde as omissões e preconceitos do período silencioso, passando pelo paternalismo dos anos 30 e 40, as sátiras raciais das chanchadas dos anos 50, os filmes políticamente engajados a partir do Cinema Novo ( anos 60 ), e o cinema industrial desde então. O próximo passo deverá ser dado pelos próprios negros, passando da frente para detrás das câmeras.

O diretor afro-brasileiro ideal surgirá no Rio, na Bahia ou em São Paulo, quando menos se esperar. Lembremos que nos Estados Unidos foi preciso quase um século de indústria cinematográfica para que surgisse um Spike Lee, que, se não é cronológicamente o mais antigo (esse lugar pertence a Oscar Micheaux nos anos 20), foi sem dúvida o primeiro a ter continuidade fora do gueto, e ultrapassar um nível mínimo de competência técnica e criativa.

Até lá, só nos resta aguardar.


* João Carlos Rodrigues nasceu no Rio de Janeiro em julho de 1949. Exerce as funções de jornalista, crítico de cinema, pesquisador, roteirista e diretor de videos

Data de publicação: 28/08/2000