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O Historiador e o rádio: relações em questão

O rádio é, ainda hoje, um objeto pouco presente nos estudos acadêmicos, principalmente na área de ciências humanas e no campo da história, apesar de ter sua importância largamente reconhecida. Este trabalho tem como objetivo refletir sobre a presença e a ausência do rádio nos estudos realizados na área de ciências humanas e mais especificamente dentro de uma perspectiva histórica. Ao mesmo tempo pretende fornecer algumas pistas e indicações que contribuam para o crescimento do interesse nessa área de pesquisa.


Apresentação


Provavelmente se aqueles que nasceram na segunda metade do século XX fossem chamados para definir de forma sintética o momento vivido, dentre as possíveis respostas estariam as expressões “tempo de velocidade", de "rapidez das mudanças tecnológicas",de “alterações de ritmo de vida”. Cada vez mais, o espaço de tempo que separa o novo, do antigo, é reduzido. Rapidamente as coisas se tornam ultrapassadas, fora de uso. A primeira metade do século XX foi marcada pelas duas grandes guerras.

Terminada a Segunda Guerra Mundial, reordenado o cenário mundial, teve início o processo de retomada do crescimento da produção industrial. As próprias necessidades geradas pelos conflitos obrigaram aos países envolvidos a investir pesado nas pesquisas tecnológicas, no aperfeiçoamento contínuo das formas de produção e na ampliação da produtividade. Um dos setores considerados estratégicos para as nações envolvidas nasguerras foi o da informação e uma das armas mais potentes o rádio. Na "guerra das ondas", as emissoras de todo o mundo transmitiam programas em diversos tipos de ondas, a todos aqueles que pudessem captá-las - o combate ao inimigo também era realizado através de uma programação especialmente produzida em diversos idiomas. A capacidade do alcance das transmissões radiofônicas foi ampliada, vários países passaram a transmitir em ondas curtas a partir de antenas direcionadas para os diversos continentes. O Brasil, por exemplo, passou a irradiar programas para a América Latina, Estados Unidos, Inglaterra e França. Ressurgiram os tempos de paz. O rádio se transformou, então, em elemento fundamental da vida familiar. De veículo de difícil acesso, nos anos 1910, o rádio passou a ser presença indispensável na década de 1940.

“... o rádio transformava a vida dos pobres e, sobretudo das mulheres pobres presas ao lar, como nada fizera antes. Trazia o mundo à sua sala. Daí em diante, os mais solitários não precisavam mais ficar inteiramente sós. E toda a gama do que podia ser dito cantado, tocado ou de outro modo expresso em sons estava agora ao alcance deles. Surpreende, portanto, que um veículo desconhecido, quando a Primeira Guerra acabou, houvesse conquistado 10 milhões de lares nos EUA no ano da quebra da Bolsa, mais de 27 milhões em 1939 e mais de 40 milhões em 1950?”
 (Hobsbawm,194)


O rádio brasileiro começou a realizar suas primeiras experiências na década de 1920. Nos anos 1930, as emissoras de rádio transformam-se, de simples associações de amantes da atividade radiofônica, em empresas voltadas para a obtenção de lucros. Na década de 1940, as emissoras haviam se tornado empresas altamente lucrativas e o rádio passava a ocupar um lugar especial no cotidiano da sociedade brasileira. É neste último período que surgem programas e personagens que marcaram época e que ainda hoje servem de fonte de inspiração produção televisiva. É o tempo do Repórter Esso, dos concursos para Rainha do Rádio, dos programas de auditório e das famosas radionovelas. Os anos 1950 são considerados a "Época de Ouro" do rádio brasileiro. A partir da década de 1960, frente ao avanço da televisão, as emissoras radiofônicas se viram obrigadas a alterar continuamente o tipo de programação veiculada, fazendo surgir um novo rádio, distante do modelo que tanto sucesso obteve nos anos 1940 e 1950. O rádio é, ainda hoje, um objeto pouco presente nos estudos acadêmicos, principalmente na área de ciências humanas e no campo da história, apesar de ter sua importância largamente reconhecida.

É certo que alguns pioneiros já se aventuraram por este “território desconhecido", sendo que uns superficialmente, enquanto outros se deixaram absorver por esse universo encantador. Um dos "aventureiros" nesse novo território foi o historiador Alcir Lenharo que, ao reconstituir as trajetórias artísticas dos cantores Jorge Goulart e Nora Ney, resgatou o cotidiano do rádio e sua relação com a sociedade. Na apresentação do trabalho, Lenharo alerta para o fato de que “o país tem mudado muito rápido, e rapidamente novas gerações têm sido agraciadas com outras modalidades de consumo, acelerando também o envelhecimento e o esquecimento compulsório dos cantores de rádio” Lenharo continua sua análise chamando a atenção para a existência de um contínuo processo de rejeição, no campo de pesquisa acadêmica, a tudo que se origina da cultura massiva. O período áureo do rádio é também aquele associado ao da euforia das “macacas de auditório”, da baixa qualidade da produção musical, da vulgarização da linguagem, do apelo humorístico popularesco e dos folhetins melodramáticos. O rádio sobreviveu à televisão, mas com uma nova espécie de programação. As radionovelas, os programas de auditório, de calouros e os humorísticos, desapareceram do veículo e ganharam novos formatos na televisão. Esse é o caso as atuais telenovelas, dos programas de auditório e de humor, que garantem os maiores índices de audiência da televisão. Lenharo chama a atenção para o fato de que para o historiador, pela natureza de seu próprio trabalho:

É previsível que as curvas de qualidade de um determinado fenômeno cultural não se mantenham estáveis, ou apresentem descontinuidades. No entanto, exatamente essa constatação é a que atrai o seu olhar para a singularidade do que estuda. A desatenção de outros direciona as suas prospecções e o motiva para o desvendamento de suas curiosidades. É preciso levantar o véu que cobre os anos 50, na sua versão massiva e duvidar da rapidez com quem se fala dos cantores do rádio, assim como suas músicas são lançadas no esquecimento. (Lenharo, 8)

Este trabalho tem como objetivo refletir sobre a presença e a ausência do rádio nos estudos realizados na área de ciências humanas e mais especificamente dentro de uma perspectiva histórica. Ao mesmo tempo pretende fornecer algumas pistas e indicações que contribuam para o crescimento do interesse nessa área de pesquisa.

Possibilidades de estudos históricos do rádio

O rádio seguiu uma trajetória ascendente, atingindo enormes índices de audiência entre o final dos anos 1940 e um pouco depois da metade dos anos 1950. O marco final dessa era está relacionado ao fato de que, em fins década de 1950, a televisão passou a ocupar um papel destacado, absorvendo uma boa parcela das verbas publicitárias e dos ouvintes, o que de certa forma acelerou um processo, que já vinha ocorrendo, da mudança significativa do perfil do rádio, ou melhor, do conteúdo veiculado pelas emissoras. O rádio, aqui, é pensado enquanto um veículo de comunicação de massa que tanto constrói quanto explicita práticas culturais. Este meio criou/veiculou códigos de comportamento social.

Assim sendo, apresenta-se como um "espaço" especial de onde se pode partir para melhor entender a configuração da própria sociedade na qual este se encontrava inserido. É de fundamental importância o resgate do papel desempenhado pelo rádio na conformação de uma sociedade urbano-industrial, em contraposição a uma dita "tradição agrária", na consolidação de uma sociedade de consumo no Brasil, na segunda metade do século XX. O rádio acompanhava de perto os acontecimentos do dia-a-dia do país, transmitia informações de diversas partes do mundo, "levava a cidade ao campo", participava da formação de novas gerações. Para muitos ele significava o único elo, a única possibilidade de contato com as transformações que ocorriam para além das fronteiras de seu pequeno universo. Um exemplo da presença marcante desse media quanto a este último aspecto, pode ser encontrado no depoimento do fotógrafo Sebastião Salgado:

Nasci em uma cidade do interior de Minas chamada Aimorés, no Vale do Rio Doce, que ainda mantém a população de 10 mil habitantes daqueles tempos. Aimorés era uma cidade em que a comunicação com o resto do mundo era feita através do rádio. Fazíamos uma idéia do resto do mundo muito romântica. Isto dava liberdade à nossa imaginação.

Ao começar a se pensar na estrutura e presença radiofônica dos anos de 1945 a 1960, surgem perguntas do tipo: Como se estruturou o rádio da segunda metade dos anos 1940, do pós-guerra? Que tipo de programação tem o rádio que formou essa nova geração? Qual era o conteúdo veiculado? Qual o perfil de consumidor criado pelo rádio? Podemos detectar a penetração das multinacionais na economia e sociedade brasileiras através dos patrocínios radiofônicos? Como os produtos/empresas utilizam o rádio enquanto meio criador de demandas de consumo? Teria o rádio contribuído para a formação do ideal de um país industrial? Como o rádio se integra na política nacionalista de Vargas? Qual o papel do rádio na crise de meados dos anos 50? Como se comportou o rádio em meio as disputas político-partidárias? Qual a posição ocupada pela produção radiofônica no debate relativo às funções da cultura? Formavam as radionovelas uma espécie de trilogia popular junto às Chanchadas e ao Teatro de Revista? Como é o mundo ficcional dos "anos dourados"? Qual o perfil familiar construído pelo universo ficcional radiofônico nesses quase vinte anos? As demandas sociais também estão presentes no universo da produção radiofônica? Isso só para fazer um rápido apanhado das possíveis questões que podem nortear um trabalho investigativo sobre a “Era do rádio”.

Até a década de 1970, o surgimento, a expansão e as diversas formas de penetração dos meios de comunicação, não atraíram a atenção dos historiadores – nem como fonte, nem como objeto de estudo. Predominava no meio acadêmico, entre as correntes historiográficas, aquela que se voltava para o documento escrito e "oficial" como a única fonte confiável. Entretanto os alicerces desta imensa construção eram minados por novos movimentos. Sua posição era ameaçada pelo surgimento e consolidação de novas disciplinas concorrentes no campo das Ciências Sociais. O movimento dos Annales teve, nesse contexto, um papel fundamental. Segundo Peter Burke, numa primeira fase, entre os anos 1920 e 1940, tal movimento "caracterizou-se por ser pequeno, radical e subversivo, conduzindo uma guerra de guerrilhas contra a história tradicional, a históriapolítica e a história dos eventos".

Vai desenvolvendo-se uma história nova que, segundo Jacques Lê Goff, alargou o campo das fontes, transformando filmes, fotografias, depoimentos, estatísticas, vestígios arqueológicos, além dos escritos de toda espécie, em documentos históricos de maior valor. Desde então, o estudo dos diversos meios de comunicação vem sendo, gradativamente, incorporado ao universo dos historiadores. A imprensa escrita já ocupa um lugar privilegiado entre estes, seguida pelo cinema. Mais recentemente, a televisão também começou a ser objeto de alguns trabalhos.

Mapear o papel cumprido pelo rádio é de certa maneira uma tarefa complexa. No campo específico da produção cultural, segundo Hobsbawm, torna-se de certa forma, um pouco difícil reconhecer as inovações culturais trazidas pelo rádio, pois: "muito daquilo que ele iniciou tornou-se parte da vida diária". O rádio inovou ao mesmo tempo em que absorveu e adaptou outras formas de arte já existentes. Longe de pretender fazer do rádio um de seus principais objetos de pesquisa, o autor enumera várias das transformações impostas por este meio de comunicação, sinalizando para a abertura de novas frentes de estudo acerca do rádio e sua relação com as esferas públicas e privadas. Ao tratar da questão das artes na Era dos Extremos (como já o fez em outras partes de sua vasta obra), Hobsbawm sintoniza um dos “canais de pequena recepção” entre os historiadores, mas que graças à dedicação de alguns fiéis "ouvintes" vêm ganhando um maior espaço na "audiência historiográfica".

Como afirma Jean Tardieu em um estudo sobre as inúmeras potencialidades de trabalho oferecidas pelo rádio, a expressão rádio representa não uma realidade monolítica (uma arte ou uma técnica), mas uma incrível soma de operações científicas e culturais, individuais e coletivas, umas antigas, outras recentes, aglomeradas, fundidas em um todo dotado de vida e matéria. Tais operações entrelaçam aqueles que produzem com os que consomem, envolvendo, assim, uma parcela significativa da sociedade nesta complexarede. Segundo Tardieu, o estudo global do rádio deve ser dividido em alguns campos de pesquisa, ou melhor, observados a partir de quatro perspectivas.

A primeira, do ponto de vista da criação e da organização, onde tanto o rádio como a televisão, por serem meios de "massa", não se restringe ao papel de instrumento de informação e diversão, mas exercem influência e pressão moral e social.

A segunda, a partir da ótica do consumidor, que vê o rádio como um fornecedor de "alimento intelectual", como um meio superficial de impregnação mental.

A terceira, através do olhar do observador ou do historiador do futuro, pois os meios audiovisuais, como o rádio, integram uma estrutura que é o resultado da reunião de um grande número de técnicas artísticas e científicas. Dentro de suas mensagens encontram-se sintetizadas toda a civilização e a cultura da qual fazem parte. E, em quarto lugar, do ponto de vista do próprio meio, de sua ambigüidade, complexidade e diversidade de elementos, principalmente os aspectos criativos (ou criadores) que produzem sempre coisas novas que se tornarão, rapidamente, ultrapassadas. Os pontos acima levantados demonstram a multiplicidade de abordagens que o estudo do rádio possibilita.

A questão da metodologia utilizada no tratamento dos mass media está presente em um pequeno artigo do professor e pesquisador Douglas Gomery12 onde, além de mapear as tendências metodológicas, o autor apresenta um pequeno balanço dos estudos sobre a história do rádio, da televisão e da comunicação de massa nos Estados Unidos. Apesar de sintético, o artigo permite verificar o surgimento de novas preocupações nas pesquisas sobre os meios de comunicação e, conseqüentemente, da incorporação de diferentes abordagens (como a política e a social).

Sem descartar a importância e a contribuição dos trabalhos que utilizaram os métodos de pesquisa de amostragem, o puramente biográfico ou o econômico, Gomery chama a atenção para a crescente utilização do método cultural (que segue os modelos estabelecidos pela história de arte e pela crítica literária) e principalmente daquele por ele denomina social. Segundo o autor, o método social "eclipsa" a importância dos outros por fornecer uma série complexa de elementos que nos permite montar um panorama das mudanças sociais, do papel e do poder dos meios de comunicação dentro deste contexto de mudanças. Ou seja, o autor trabalha articulando a relação rádio-sociedade todo o tempo. A certeza da influência dos meios de comunicação sobre as pessoas no século XX tem levado os historiadores a se perguntar sobre o poder dos mesmos e a tentar responder as perguntas utilizando uma abordagem social.


O rádio e os anos 1940 e 1950

Segundo os estudos de Néstor Canclini, Martin-Barbero e Carlos Monsiváis “o rádio e o cinema contribuíram, na primeira metade deste século com a organização dos relatos da identidade e do sentido de cidadania nas sociedades nacionais”. Para esses estudiosos os programas de rádio em especial “contribuíram para que grupos de diversas regiões de um mesmo país, antes afastados e desconectados, se reconhecessem como parte de uma totalidade”. Em um país de dimensões continentais como o Brasil a função de integração social do rádio era ainda maior. As transmissões em ondas curtas aliadas à retransmissão de programas dos grandes centros para as cidades do interior criava referências culturais comuns a todo o país.

No Brasil dos anos 1940 e 1950, o rádio ocupava um papel social destacado. Esta "caixa maravilhosa" levava lazer e notícias a uma população que possuía altos índices de analfabetismo - segundo dados oficiais, em 1960, o Brasil possuía um índice de 46,84% de analfabetos, sendo que nas zonas rurais este índice subia para 61,98% da população. Integrando localidades isoladas, criava uma sensação de proximidade, de identidade entre as pessoas das diversas regiões do país.

Para o historiador Nelson Werneck Sodré, o rádio foi um importante elemento de divulgação das diversas artes. A base inicial do rádio foi o futebol e a música popular, pois “desde que colocado em associação e a serviço dessas duas extraordinárias forças, o rádio cresceu e se expandiu depressa, cobrindo todo o território nacional e tornando-se instrumento especial para a universalização do gosto, dos costumes e até das paixões.” O rádio permitiu ainda, segundo o mesmo autor, “notoriedade e enriquecimento a elementos oriundos de camadas populares, muitos deles provindo mesmo do proletariado”17. Primeiro a partir do futebol e da música, depois das radionovelas, o rádio criou ídolos de dimensão nacional e também mercado consumidor para produtos diversos.

Já no final da década de 1930, a presença do rádio no cotidiano da sociedade brasileira vai sendo ampliada e se tornando mais evidente. Uma crônica publicada pela revista Carioca, explica como é escolhido lugar preferido de uma casa:

“Atualmente, porém, o centro de uma residência é determinado pelo rádio. É este que indica qual o ponto de reunião. Se o rádio estiver na sala de visitas, ali também estarão os habitantes da casa. Mude-se o aparelho para a sala de jantar e tantos os moradores como as próprias visitas aí estarão ao seu redor. Sem o rádio ninguém mais passa. É por isso que todos se reúnem ao seu redor, pois é por causa dele que a sala em que ele se acha é o lugar preferido.”
 (18 Carioca. 28/08/1937. P.46)


A presença do rádio passou a ser associada, cada vez mais, à alegria da casa. O aparelho transformou-se me uma presença quase que obrigatória no dia-a-dia das famílias, integrando a representação imagética do lar. No anúncio de um medicamento regularizador do intestino, o Jubol, publicado em dezembro de 1941, no jornal O Globo, em forma de desenho em quadrinhos, depois de utilizar o medicamento e resolver o problema de saúde a protagonista exclama: “a minha enxaqueca foi-se para sempre! O meu intestino está de fato jubolisado – que alegria.” E ordena à empregada: “Liga o rádio!”, recurso utilizado para reforçar o sentimento de alívio e de felicidade. A alegria e a distração das casas passam a ser trazidas pelas ondas do rádio e essa presença era reforçada no imaginário pela publicidade mesmo quando o produto à venda não era o próprio aparelho. Outro exemplo interessante dessa interferência do rádio na vida das pessoas em geral pode ser encontrado no protesto de um cronista que critica a "Influência dos microfones na vida ingênua das províncias".

“Pois foi o rádio que operou a singularíssima revolução. Sob a sua influência quotidiana, permanente insidioso, a fisionomia local, formada através dos tempos, marcando seus traços a custa de tantas tradições, (...) foi decompondo-se aos poucos, até descaracterizar-se por completo. Em Laranjeiras já se fala mais de Orlando Silva do que de Fausto Cardoso. Em Propriá e em Marrom as canções de reisado foram substituídas pelos sambas de Odete Amaral. As histórias que se contam nos alpendres do Ranchão deixaram de ser as do Zé do Vale e as de Nicolau Tolentino: são agora histórias do "Teatro pelos ares",enredos de novela...”.
 (Revista Diretrizes, 11/11/43. p.23.)


O rádio desempenhou diferentes papéis, em momentos históricos diversos, servindo desde como veículo de puro entretenimento (como comumente é utilizado) e até como lugar de resistência e de embates políticos. No Brasil, no campo da política, esteve presente na Revolução Constitucionalista de 32, na crise do governo Vargas de 1954 e na Campanha da Legalidade empreendida por Leonel Brizola em 1961. Durante as décadas de 1930 e 1940, em diversos países, verifica-se a sua presença marcante. São bem conhecidas as Conversas ao pé do fogo (programa de rádio) do presidente norte-americano Franklin Roosevelt, através das quais este informava à população dos Estados Unidos suas realizações; a utilização do rádio pelo ministro da propaganda alemão, Josef Goebels, para difundir, de forma eficiente, os ideais nazistas, ou ainda, a atuação do governo inglês através da British Broadcasting Corporation (BBC), irradiando, diariamente, para a Alemanha, programas de propaganda antinazista (em alemão) que tinham sua captação expressamente proibida pelo governo de Hitler. É ainda conhecido o fato de que Hitler se espelhou na experiência da URSS que utilizou largamente os meios de comunicação para a consolidação da Revolução de 1917. Em Sacralização da Política, Alcir Lenharo, ao analisar as estratégias utilizadas pelo governo para se aproximar das classes trabalhadoras, destaca a importância do rádio.

Dos dispositivos utilizados em larga escala, o rádio foi o principal deles pelo clima e pelo teor simbólico que alcançava entre emissores e receptores. (...) O rádiopermitia uma encenação de caráter simbólico e envolvente, estratagemas de ilusão participativa e de criação de um imaginário homogêneo de comunidade nacional. (...) Efeitos sonoros de massa podiam atingir e estimular a imaginação os rádio-receptores, permitindo a integração, em variados tons entre emissor e ouvinte, para se atingir determinadas finalidades de participação política.
 (Lenharo, 40 e 41)

O potencial do rádio como meio eficaz de comunicação à distância passou a ser plenamente reconhecido. Genolino Amado, radialista e crítico de rádio, em um projeto destinado ao Presidente da República, enviado em setembro de 1942, chamava a atenção do governo para as diferenças dos potenciais do rádio e da imprensa escrita. Quanto ao problema da extensão geográfica do país, Genolino argumentava que:

“Muito raramente um homem do interior do Amazonas ou de Goiás poderá ler um número do ‘Correio da Manhã’ ou de ‘A Noite’, que lhe chega atrasadíssimo e sem interesse. No entanto, esse mesmo homem pode ouvir em sua casa, sem perda de um minuto, o que é irradiado no Rio. Concentrado em sessenta e poucas estações, o rádio conquistou um público talvez maior que o da imprensa, espalhada em mais de dois mil periódicos, devendo se notar que ainda em 1938 o número de aparelhos receptores já ia além de um milhão.”
(Carta de Genolino Amado dirigida ao Presidente da República. Rio de Janeiro, 02/09/1942.)


O rádio ditava a moda, especialmente a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, que durante grande parte da década de 50 se manteve como campeã de audiência, tanto na cidade do Rio de Janeiro como em outras partes do país.

“Conta-se que, certa vez, o major Menescal, que mais tarde se tornaria superintendente da Rádio Nacional, encontrou, numa fazenda de cacau do interior da Bahia, uma moça muito interessante e falante, com sotaque carioca. Perguntou: - Faz quanto tempo que a senhorita não vai ao Rio? Ela respondeu: - Nunca fui lá. - Não é possível, a senhorita fala como uma carioca! - Claro, a Rádio Nacional nos ensina a falar direitinho!”
 (Nosso século, vol 1. p.70)


Sempre houve uma espécie de relação de cumplicidade entre as emissoras de rádio e o público ouvinte na escolha da programação que deveria ser irradiada. Muitas emissoras estimulavam seus ouvintes para telefonar ou escrever para a rádio dando sua opinião sobre os programas apresentados. A Rádio Nacional do Rio de Janeiro era uma delas. A emissora possuía um setor específico para computar a correspondência recebida. Segundo o publicado o Boletim de Programação, no ano de 1944, de janeiro a novembro, a emissora recebeu 184.288 cartas. A popularidade do rádio junto às camadas menos favorecidas chama a atenção dos cronistas da época. Nelson Rodrigues, em um artigo publicado na revista Diretrizes classificou o rádio como a “poesia do subúrbio”. Segundo o cronista, no subúrbio:

“A mulher, as filhas, que têm em casa uma permanência obrigatória de quase 24 horas por dia, são intransigentes. Ligam o aparelho às 6h, logo que irrompem as aulas de ginástica que ninguém faz. Assim no lar suburbano o rádio representa alguma coisa de sério, alguma coisa de tremenda e de insubstituível. O mundo doméstico já não pode prescindir das músicas, das peças, das vozes e, até, dos anúncios que circulam implacavelmente pelo éter. A poesia da vida vem às seis horas da manhã.”
 (Diretrizes. 11/12/1941. P. 19)


Reflexões finais

Os exemplos da interferência do rádio no cotidiano são inúmeros, o que foi aqui apresentado teve como objetivo reforçar a idéia da necessidade de se conhecer com mais detalhes, de delimitar melhor a participação desse poderoso meio de comunicação de massa na formação da sociedade brasileira na segunda metade do século XX. Nos últimos dez anos vêm surgindo alguns trabalhos sobre as rádios regionais, sobre a presença e história dessas emissoras, realizado por pesquisadores de diversas áreas e amantes de rádio. Também tem crescido dentro do campo dos estudos histórico a compreensão de que os estudos sobre o mundo contemporâneo não podem prescindir das questões ligadas a presença dos meios de comunicação de massa.