Em 1992, dentro das comemorações dos 500 anos da América,
o Memorial da América Latina promovia uma instigante discussão
através da mostra " O índio: ontem, hoje e amanhã".
Era um momento em que alguns grupos indígenas se apropriavam
do vídeo e faziam desta forma de registro um instrumento
para a preservação da sua cultura. Na outra ponta
estavam os antropólogos e todos aqueles que há muito
se dedicam ao estudo das culturas indígenas, para os quais
começava a ficar claro que o vídeo era um meio poderoso
para expressar a diversidade dos povos indígenas. Contrariamente
às expectativas negativas que diziam que as populações
indígenas no Brasil caminhavam para o seu fim, os filmes
das últimas décadas mostram que eles estão
aí para ficar. Embora enfrentem toda a sorte de preconceito
por parte de grande parcela da sociedade brasileira e descaso ou
ignorância em todo mundo, continuam brigando por um espaço
no território nacional. Trata-se de um processo continuamente
marcado por histórias de luta, injustiças e extermínio.
Parte disto foi documentado, parte foi idealizado, imaginado ou
recriado. Olhares diversos em épocas distintas nos deixam
um vasto legado fílmico. São imagens que ao tratar
dos índios não somente falam desta cultura mas também
e, acima de tudo, falam de quem as registrou e traduzem os dilemas
de um Brasil plural.
A mostra Os Brasis Indígenas retrata esse imaginário
e coincide com a emergência de uma filmografia indígena
própria. Não apenas os índios continuam a inspirar
cineastas e antropólogos na produção de documentários
e filmes de ficção, mas começam eles próprios
a dirigir seus próprios filmes. Se, até há
pouco tempo, o que lhes faltava era o controle de edição,
isto não é mais verdade. Nesta mostra, temos a chance
de conferir alguns trabalhos onde a edição é
fruto de um trabalho de parceria com quem antes dominava este processo,
videomakers, cineastas ou antropólogos.
Os filmes aqui reunidos foram selecionados com a intenção
de contemplar três programas:
Programa "Visões": destaca os filmes que marcaram
o nosso século, desde a década de 10 até os
dias de hoje, desde os filmes do Major Thomaz Reis, cinegrafista
de Rondon até os filmes mais recentes que apontam para sensibilidades
e preocupações distintas. Dois blocos temáticos
compõem este programa: Visões sobre o índio
e Personagens (vide programação)
Programa "Encontros": destaca os filmes produzidos nas
últimas décadas do século XX. Neste programa
estão incluídos trabalhos de europeus, norte-americanos
e brasileiros que resultam de projetos em parceria com sociedades
indígenas ou que mostram como se dá a relação
entre o mundo indígena e o mundo do branco.
Programa "Olhares Indígenas": filmes realizados
por representantes indígenas que filmaram, editaram ou dirigiram
aspectos da sua própria cultura. Aqui escolhemos quatro trabalhos
feitos pelos índios Waiãpi (Amapá), Xavante
(Mato Grosso) e Ashaninka (Acre).A Mostra Os Brasis Indígenas,
como muitos outros projetos deste ano 2000, emerge no contexto das
reflexões dos 500 Anos do Brasil. Nada mais oportuno do que
partir da produção fílmica acumulada sobre
as populações indígenas. Aqui são os
filmes que cumprem o papel de delinear o mundo das idéias
construído ao longo do século XX. Infelizmente muitas
das primeiras produções, entre as décadas de
10 e 30, ou se perderam ou há somente cópias de preservação,
sem que o público tenha acesso a elas. Filmes como O Guarani
(1916), Iracema (1919) e O Guarani (1919), de Vitorio Capelaro,
Ubirajara (1919), de Luiz Barros, O Guarani (1920) de João
de Deus, entre outros, traduzem um olhar de uma época, reduzido
hoje a documentos escritos e sem memória.
Cientes deste vácuo incômodo mas lugar comum no Brasil,
o que primeiro norteia esta mostra é oferecer um balanço
desta heteróclita produção, passando por filmes
institucionais, de denúncia, poéticos, engajados,
alguns comprometidos com a pesquisa, outros em prol da causa indígena,
outros feitos para sensibilizar um amplo público e assim
por diante. São filmes que espelham uma multiplicidade de
olhares, onde alguns acabaram se transformando em clássicos
no Brasil, enquanto outros permaneceram no anonimato. Já
é o momento de se tentar entender o porquê e avaliar
tais olhares. Este é um dos desafios deste encontro. No entanto,
é preciso deixar claro que os 43 filmes aqui selecionados
não têm a pretensão, mesmo que de forma representativa,
de esgotar os programas acima mas somente de espelhar um panorama
desta produção.
De outro lado, embora hoje seja vasta a filmografia sobre a temática
indígena, pouco sabemos sobre a percepção e
consciência visual destes povos tão filmados. Mesmo
os filmes dos jovens realizadores indígenas desvelam mais
sobre a consciência de seu processo histórico do que
propriamente desta consciência estética.
Quando um Xavante fala para a câmera que "nasceu para
ser cinegrafista", tal afirmação só é
entendida através do momento político vivido por esta
sociedade. Antigamente aquele que falava bem e dominava a palavra
do Branco, certamente tinha garantido um sucesso na vida política.
Hoje aqueles que fazem vídeos passam a se destacar em sua
comunidade e continuam a ser aqueles que reúnem qualidades
que seu grupo reconhece como sendo importantes. Mas o vídeo
encerra uma qualidade fundamental na troca necessária entre
a sociedade indígena e a sociedade ocidental: o fato de propiciar
a comunicação entre os dois mundos, o mundo indígena
e o mundo de fora. Os realizadores indígenas transformam-se
em mensageiros de seu povo, mostrando imagens de sua
cultura para fora e de fora para dentro das aldeias, uns mais do
que outros controlados pelo poder tradicional. Deste modo, os filmes,
veiculam mensagens culturais a serviço daqueles que até
recentemente se colocavam apenas na frente das câmeras.
A nova safra de realizadores indígenas vem concentrando esforços
no sentido de transformar a imagem gravada em vídeo num acervo
de memórias, daí o largo interesse pelo foco nos rituais.
No segundo encontro nacional de realizadores indígenas, ocorrido
no início deste ano , a frase de um jovem Waimiri-Atroari,
resume esta idéia de forma muito feliz: " trabalhar
com a câmera é importante para não esquecer
o futuro". A importância da "comunidade" impregna
todas as falas, orientando grande parte dos projetos de vídeo
que desenvolvem-se nas aldeias. O realizador assume o papel de tradutor
da sua comunidade. Mas o que captar? Para que captar? Como nos fala
outro jovem realizador Xavante no mesmo encontro: "se isto
nunca aconteceu assim porque devemos gravar?" A dúvida
se instaura entre os novos conhecimentos apreendidos e o que os
mais velhos dizem que é tradição. São
os mais velhos que dão legitimidade ao trabalho destes jovens
cinegrafistas enquanto lentes jovens se esforçam para traduzir
realidades que prescindem de um tempo vivido. E ambos, velhos e
moços se unem num mesmo projeto: através do vídeo
manter acesa a memória de seu povo o que significa afirmar
a sua identidade. E não mais os antropólogos têm
o privilégio de ser os porta vozes deste desejo. O cotidiano
e os rituais passam a ser captados de uma nova forma que traduz
uma intimidade que somente os próprios índios seriam
capazes de exprimir. Este é o legado desta primeira geração
de realizadores indígenas.
A premiação em festivais nacionais recentes do filme
Wapté Mnõhnõ, iniciação do jovem
Xavante , dirigido por quatro índios Xavante e um Suyá
que integra esta mostra, demonstra que os realizadores indígenas
começam a competir em pé de igualdade com outros profissionais,
oriundos de etnias distintas. Mas o que leva os índios a
se sentirem tão a vontade atrás e na frente das câmeras?
O que os motiva a se tornarem realizadores? Os intercâmbios
culturais motivados pela introdução do vídeo
evidenciam que a interação entre os grupos se processa
menos em função de uma demanda de resgate
de tradições que de uma política de enfrentamento
mais eficiente com relação ao mundos dos brancos
.? Mas serão os filmes apenas instrumentos culturais e políticos?
Um século de imagens em torno da questão indígena
e continuamos a saber tão pouco sobre a percepção
visual destes que continuam ocupando tanto o imaginário e
as indagações do mundo ocidental moderno. Como os
índios se vêem na TV? O que a comunidade espera do
vídeo quando este passa a ser reconhecido como um instrumento
legítimo de registro da sua cultura? O que esperam dessas
imagens e o que esperam dos nossos filmes? Este é o outro
desafio que a mostra Os Brasis Indígenas nos convida a pensar.
Além disso, tentar entender os projetos e concepções
que estão atrás das câmeras, isto é,
avaliar nossos desejos, projeções e concepções
do mundo e dos outros. Isto vale para quem assiste e quem produz,
para quem vive no Brasil ou não, para quem é estrangeiro,
brasileiro ou índio.
Este projeto nasceu de um convite feito pelo Instituto Goethe de
São Paulo no contexto das reflexões sobre os 500 anos
do Brasil. Como antropóloga, ligada ao Laboratório
de Imagem e Som em Antropologia (LISA), só foi possível
concretizar esta idéia junto com outros parceiros, sensíveis
e críticos ao tema. Agradeço em especial a Bruno Fischli
e Marina Ludemann do Instituto Goethe de São Paulo, aos professores
da Universidade de São Paulo Maria Dora Mourão, coordenadora
do Cinusp, Sylvia Caiuby Novaes, coordenadora do LISA e Francis
H. Aubert, diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, a Adhemar Oliveira e Humberto Neiva, do Espaço Unibanco
de Cinema, aos colegas do Grupo de Antropologia Visual da USP, Edgar
Teodoro da Cunha, Francisco S. Paes e Lucas Fretin e a todos os
realizadores e instituições detentoras dos direitos
e da distribuição dos filmes desta mostra que tornaram
possível tal encontro.
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