Apresentação


Paula Morgado, Curadora

Junho/2000
 
"Eu filmo pra mostrar na aldeia, nas cidades, no estrangeiro, na América, para que todos nos conheçam. Eu também filmo aldeias de outros índios. Na floresta tem muitos grupos que nós queremos conhecer. Depois mandamos nossas imagens para que eles nos conheçam". (Kasiripina, índio Waiãpi – filme Jane Moraita, nossas festas, 1995")

Em 1992, dentro das comemorações dos 500 anos da América, o Memorial da América Latina promovia uma instigante discussão através da mostra " O índio: ontem, hoje e amanhã". Era um momento em que alguns grupos indígenas se apropriavam do vídeo e faziam desta forma de registro um instrumento para a preservação da sua cultura. Na outra ponta estavam os antropólogos e todos aqueles que há muito se dedicam ao estudo das culturas indígenas, para os quais começava a ficar claro que o vídeo era um meio poderoso para expressar a diversidade dos povos indígenas. Contrariamente às expectativas negativas que diziam que as populações indígenas no Brasil caminhavam para o seu fim, os filmes das últimas décadas mostram que eles estão aí para ficar. Embora enfrentem toda a sorte de preconceito por parte de grande parcela da sociedade brasileira e descaso ou ignorância em todo mundo, continuam brigando por um espaço no território nacional. Trata-se de um processo continuamente marcado por histórias de luta, injustiças e extermínio. Parte disto foi documentado, parte foi idealizado, imaginado ou recriado. Olhares diversos em épocas distintas nos deixam um vasto legado fílmico. São imagens que ao tratar dos índios não somente falam desta cultura mas também e, acima de tudo, falam de quem as registrou e traduzem os dilemas de um Brasil plural.

A mostra ‘Os Brasis Indígenas’ retrata esse imaginário e coincide com a emergência de uma filmografia indígena própria. Não apenas os índios continuam a inspirar cineastas e antropólogos na produção de documentários e filmes de ficção, mas começam eles próprios a dirigir seus próprios filmes. Se, até há pouco tempo, o que lhes faltava era o controle de edição, isto não é mais verdade. Nesta mostra, temos a chance de conferir alguns trabalhos onde a edição é fruto de um trabalho de parceria com quem antes dominava este processo, videomakers, cineastas ou antropólogos.

Os filmes aqui reunidos foram selecionados com a intenção de contemplar três programas:

Programa "Visões": destaca os filmes que marcaram o nosso século, desde a década de 10 até os dias de hoje, desde os filmes do Major Thomaz Reis, cinegrafista de Rondon até os filmes mais recentes que apontam para sensibilidades e preocupações distintas. Dois blocos temáticos compõem este programa: ‘Visões sobre o índio’ e ‘Personagens’ (vide programação)

Programa "Encontros": destaca os filmes produzidos nas últimas décadas do século XX. Neste programa estão incluídos trabalhos de europeus, norte-americanos e brasileiros que resultam de projetos em parceria com sociedades indígenas ou que mostram como se dá a relação entre o mundo indígena e o mundo do branco.

Programa "Olhares Indígenas": filmes realizados por representantes indígenas que filmaram, editaram ou dirigiram aspectos da sua própria cultura. Aqui escolhemos quatro trabalhos feitos pelos índios Waiãpi (Amapá), Xavante (Mato Grosso) e Ashaninka (Acre).A Mostra Os Brasis Indígenas, como muitos outros projetos deste ano 2000, emerge no contexto das reflexões dos 500 Anos do Brasil. Nada mais oportuno do que partir da produção fílmica acumulada sobre as populações indígenas. Aqui são os filmes que cumprem o papel de delinear o mundo das idéias construído ao longo do século XX. Infelizmente muitas das primeiras produções, entre as décadas de 10 e 30, ou se perderam ou há somente cópias de preservação, sem que o público tenha acesso a elas. Filmes como O Guarani (1916), Iracema (1919) e O Guarani (1919), de Vitorio Capelaro, Ubirajara (1919), de Luiz Barros, O Guarani (1920) de João de Deus, entre outros, traduzem um olhar de uma época, reduzido hoje a documentos escritos e sem memória.

Cientes deste vácuo incômodo mas lugar comum no Brasil, o que primeiro norteia esta mostra é oferecer um balanço desta heteróclita produção, passando por filmes institucionais, de denúncia, poéticos, engajados, alguns comprometidos com a pesquisa, outros em prol da causa indígena, outros feitos para sensibilizar um amplo público e assim por diante. São filmes que espelham uma multiplicidade de olhares, onde alguns acabaram se transformando em clássicos no Brasil, enquanto outros permaneceram no anonimato. Já é o momento de se tentar entender o porquê e avaliar tais olhares. Este é um dos desafios deste encontro. No entanto, é preciso deixar claro que os 43 filmes aqui selecionados não têm a pretensão, mesmo que de forma representativa, de esgotar os programas acima mas somente de espelhar um panorama desta produção.
De outro lado, embora hoje seja vasta a filmografia sobre a temática indígena, pouco sabemos sobre a percepção e consciência visual destes povos tão filmados. Mesmo os filmes dos jovens realizadores indígenas desvelam mais sobre a consciência de seu processo histórico do que propriamente desta consciência estética.

Quando um Xavante fala para a câmera que "nasceu para ser cinegrafista", tal afirmação só é entendida através do momento político vivido por esta sociedade. Antigamente aquele que falava bem e dominava a ‘palavra do Branco’, certamente tinha garantido um sucesso na vida política. Hoje aqueles que fazem vídeos passam a se destacar em sua comunidade e continuam a ser aqueles que reúnem qualidades que seu grupo reconhece como sendo importantes. Mas o vídeo encerra uma qualidade fundamental na troca necessária entre a sociedade indígena e a sociedade ocidental: o fato de propiciar a comunicação entre os dois mundos, o mundo indígena e o mundo de fora. Os realizadores indígenas transformam-se em ‘mensageiros’ de seu povo, mostrando imagens de sua cultura para fora e de fora para dentro das aldeias, uns mais do que outros controlados pelo poder tradicional. Deste modo, os filmes, veiculam mensagens culturais a serviço daqueles que até recentemente se colocavam apenas na frente das câmeras.

A nova safra de realizadores indígenas vem concentrando esforços no sentido de transformar a imagem gravada em vídeo num acervo de memórias, daí o largo interesse pelo foco nos rituais. No segundo encontro nacional de realizadores indígenas, ocorrido no início deste ano , a frase de um jovem Waimiri-Atroari, resume esta idéia de forma muito feliz: " trabalhar com a câmera é importante para não esquecer o futuro". A importância da "comunidade" impregna todas as falas, orientando grande parte dos projetos de vídeo que desenvolvem-se nas aldeias. O realizador assume o papel de tradutor da sua comunidade. Mas o que captar? Para que captar? Como nos fala outro jovem realizador Xavante no mesmo encontro: "se isto nunca aconteceu assim porque devemos gravar?" A dúvida se instaura entre os novos conhecimentos apreendidos e o que os mais velhos dizem que é tradição. São os mais velhos que dão legitimidade ao trabalho destes jovens cinegrafistas enquanto lentes jovens se esforçam para traduzir realidades que prescindem de um tempo vivido. E ambos, velhos e moços se unem num mesmo projeto: através do vídeo manter acesa a memória de seu povo o que significa afirmar a sua identidade. E não mais os antropólogos têm o privilégio de ser os porta vozes deste desejo. O cotidiano e os rituais passam a ser captados de uma nova forma que traduz uma intimidade que somente os próprios índios seriam capazes de exprimir. Este é o legado desta primeira geração de realizadores indígenas.

A premiação em festivais nacionais recentes do filme Wapté Mnõhnõ, iniciação do jovem Xavante , dirigido por quatro índios Xavante e um Suyá que integra esta mostra, demonstra que os realizadores indígenas começam a competir em pé de igualdade com outros profissionais, oriundos de etnias distintas. Mas o que leva os índios a se sentirem tão a vontade atrás e na frente das câmeras? O que os motiva a se tornarem realizadores? Os intercâmbios culturais motivados pela introdução do vídeo evidenciam que a interação entre os grupos se processa menos em função de uma demanda de ‘resgate’ de tradições que de uma política de enfrentamento mais eficiente com relação ao mundos dos ‘brancos’ .? Mas serão os filmes apenas instrumentos culturais e políticos?

Um século de imagens em torno da questão indígena e continuamos a saber tão pouco sobre a percepção visual destes que continuam ocupando tanto o imaginário e as indagações do mundo ocidental moderno. Como os índios se vêem na TV? O que a comunidade espera do vídeo quando este passa a ser reconhecido como um instrumento legítimo de registro da sua cultura? O que esperam dessas imagens e o que esperam dos nossos filmes? Este é o outro desafio que a mostra Os Brasis Indígenas nos convida a pensar. Além disso, tentar entender os projetos e concepções que estão atrás das câmeras, isto é, avaliar nossos desejos, projeções e concepções do mundo e dos outros. Isto vale para quem assiste e quem produz, para quem vive no Brasil ou não, para quem é estrangeiro, brasileiro ou índio.

Este projeto nasceu de um convite feito pelo Instituto Goethe de São Paulo no contexto das reflexões sobre os 500 anos do Brasil. Como antropóloga, ligada ao Laboratório de Imagem e Som em Antropologia (LISA), só foi possível concretizar esta idéia junto com outros parceiros, sensíveis e críticos ao tema. Agradeço em especial a Bruno Fischli e Marina Ludemann do Instituto Goethe de São Paulo, aos professores da Universidade de São Paulo Maria Dora Mourão, coordenadora do Cinusp, Sylvia Caiuby Novaes, coordenadora do LISA e Francis H. Aubert, diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, a Adhemar Oliveira e Humberto Neiva, do Espaço Unibanco de Cinema, aos colegas do Grupo de Antropologia Visual da USP, Edgar Teodoro da Cunha, Francisco S. Paes e Lucas Fretin e a todos os realizadores e instituições detentoras dos direitos e da distribuição dos filmes desta mostra que tornaram possível tal encontro.