Índio de Caserna
Sylvio Back


Como o acaso é a matriz de tantas idéias, o projeto do documentário Yndio do Brasil não escapou à regra e ao risco. Ainda que o tópico "índio" eu já tivesse freqüentado nos anos 70/80 com o documentário de longa-metragem, República Guarani (1982), nele a pegada significou recapturar a polêmica de uma conquista espiritual de há trezentos e cinqüenta anos.

Com Yndio do Brasil o diálogo também é com a história, mas uma história contemporânea à revolução do século XX, o cinema. Se naquele filme a iconografia dá visibilidade à infância e adolescência da América do Sul e do Brasil, neste o imaginário coincide é com o próprio cinema ainda "teen".

São presumivelmente de Os Sertões de Mato Grosso (1912), do major Luiz Thomaz Reis (1) - que acompanhava as expedições geo-políticas de Rondon, cujo objetivo era não só (também) estender linhas telegráficas mas demarcar fronteiras e "civilizar os sertões" (2) - as imagens inaugurais do nosso indígena.

Depois dessas o cinema não parou mais de extrair de seu corpo e mitologia fotogramas ora de puro estranhamento, ora de indisfarçável preconceito, e muitas vezes um "mix" de idílio e usurpação etnocêntrica de uma cultura "perdida" pela civilização. Nas pesquisas em arquivos públicos e privados dos Estados Unidos em 1989, na pista de cenas inéditas sobre a presença da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Itália durante a II Guerra Mundial, que deram no documentário Rádio Auriverde (1991), o acaso despertou sua melhor vocação.

Consultando fichários, prospectando coleções de cine-jornais, falando com pesquisadores americanos, cruzando autores, assuntos, datas e filmes restaurados sobre o Brasil - que uma inesperada "cinemateca indígena" foi se esgueirando com notável nitidez. Diante da imponderabilidade que é fazer cinemaa neste país, quando o próximo filme é sempre uma incógnita, após o lançamento de Rádio Auriverde me surpreendi refém dessa sensação recorrente. Mas aquele poderoso e quase clandestino manancial ficara indelével na mente: volta e meia ele retornava como que pedindo "socorro": uma forma organizada de resgate do limbo a que fora relegado.

Leitor contumaz de toda e qualquer literatura sobre o cinema brasileiro, "rato" de arquivos fílmicos desde 1978 quando me "batizei" com o longa Revolução de 30 (1980), o índio entrevisto nos EUA e o que eu coletei na memória cinematográfica nacional se corporificaram numa espécie de pré-mote inicialmente tão vago quanto ambicioso. No início cheguei até a pensar numa minisérie tendo por temática abrangente de como o cinema vê e ouve o índio (de todos os países que ainda convivem com ele) através da reinserção de filmes "antigos" para uma fruição das platéias de hoje. Logo percebi: além de o projeto soar inviável para os padrões brasileiros de produção, pois demandaria inclusive capitais estrangeiros e investigação em inúmeros países, a filmografia sobre índio é planetária e incomensurável. Depois, convenhamos, o índio brasileiro é de longe o "primitivo" mais desfrutável mundo afora exatamente por ser o único cuja sobrevivência e cultura simbolizam uma resistência pertinaz à agressão da sociedade branca - fautora de seu sumiço ou integração, faces perversas da mesma moeda.

Dessa constatação nasceu o espectro imagético de Yndio do Brasil: como o cinema tem se aproximado e fixado o nosso índio, do seu cotidiano, rituais, idiossincrasias e cosmogonia - seja pelo veio jornalístico e "científico", seja ele mediatizado por um discurso ficcional. Foram quase quatro anos na miragem de dezenas de títulos, um vôo tateante atrás de filmes mudos e sonoros, documentários e ficção, desconhecidos e "clássicos", em preto-e-branco e a cores - nos mais diversos estados de conservação e possibilidades de acesso. Balizado pelo estimulante "insight" garimpei todos os acervos possíveis, o que naturalmente me levou de volta aos Estados Unidos, fonte indispensável para esta futura colagem até então apenas intuída. Quando logrei discernir o todo reunido, não deu outra: fui trombando com uma história audiovisual do Brasil velada e subterrânea, uma história não oficial e anti-acadêmica e, por isso, quase nunca levada a sério pela "intelligentsia" e pela mídia.

Quem tem alguma intimidade com a matéria sabe, com as exceções de praxe localizadas nas escolas de comunicação, que a Universidade brasileira é infensa ao cinema mesmo quanto a películas estritamente antropológicas e etnográficas, imagine registros leigos ou artísticos ainda mais voltados para os povos indígenas. Mas é impossível revisitar o passado recente do país sem estabelecer uma interação com os seus arquivos cinematográficos - por mais que esse patrimônio seja comprometido política e ideologicamente, seja de estética medíocre, seja assimétrico, disperso, precário e até virtual.

É de lá, do ventre desses fotogramas irrepetíveis que vem o molde do inconsciente coletivo das últimas três gerações, todas de corte cinéfilo - sobre nossos fundadores. Deve-se, e isso é inelutável, à empatia do cinema a reprodução impune e aliciadora de um espelho destorcido do índio onde os faroestes de Hollywood certamente influíram para cicatrizar essa aura de menoridade e marginalidade que medeia entre o "selvagem " e o "bom selvagem ".

O roteiro de um documentário via de regra é fulminado pela realidade bruta apreendida pela câmara - fato que se agrava quando o seu corpo narrativo compõe-se de material de arquivo captado por terceiros. Ao contrário da ficção em que o roteiro norteia filmagem e edição, e o improviso se auto-limita, no documentário a liberdade é aparentemente ciclópica, o que amplia o horizonte do acaso e também o do risco.

Foi à conta dessas águas que a idéia original de Yndio do Brasil extravasou suas margens, invadindo um território impensado durante as pesquisas e na arregimentação dos filmes. Na montagem, o que parecia mera justaposição das inúmeras contradições hauridas nas películas, o índio brasileiro enquadrado por nós e por estrangeiros acabou detonando uma leitura político-ideológica e moral impressionantes.

Um pelo outro, cine-jornal, documentário etnográfico ou de divulgação, fitas de enredo, encenações, músicas, filmetes institucionais ou de propaganda - o cinema "indígena" faturado pelo branco é o "continuum" de uma concepção pedagógico-paternal que remonta à catequese cristã da época colonial. A filmografia dos últimos oitenta anos, vista e revista à distância e desossada das paixões e interesses coevos, denuncia esse quadro tão sintomático quanto constrangedor. De como o índio romantizado ou demonizado pela Igreja e pelos historiadores, pela literatura e as artes plásticas, quando decodificado em celulóide é vitima do mesmo viés discriminatório que cristaliza sua efígie desde o assim chamado "Descobrimento".

Soa como um "remake", para ficarmos com o jargão do cinema: os filmes todos "atualizam", agora em movimento e sonoros pós-1930, as achegas militarizantes com que o Estado, a Igreja e a sociedade de um modo geral (financiando expedições de bugreiros para fins de "limpeza étnica" nos Estados do sul, por exemplo) protagonizaram até fins do século XIX a doma (e a mortandade) das comunidades indígenas. Tanto é que, sem coincidência nenhuma, coube à Comissão Rondon, de inspiração e logística castrenses, formatar toda uma estratégia "civilizatória" nas frentes de atração e pacificação, nas tentativas de integração já a partir do século nascente. Eram autênticas operações de guerra à moda de suas congêneres agenciadas por bandeirantes e missionários. Assim a estrutura do documentário "Yndio do Brasil" - ao defrontar-se com essas inesperadas evidências - otimiza sua meta inicial que era tão-somente esmiuçar a tensão estética e ética entre a câmara e o índio. E termina o filme por testemunhar que a tragédia do nosso índio é uma espécie de premeditado moto perpétuo de sua morte física e mítica - à qual os mil olhos do cinema sempre estiveram arregalados - a ponto de identificar uma vetusta cultura de caserna a presidira a sua submissão ao longo deste século.

Como as imagens não mentem jamais, mesmo as da história do vencedor quando recenseadas anos, décadas depois, e munido o espectador de nova mentalidade, critérios de avaliação e desideologizado - seu avesso é sempre um libelo, 1995.

(1) Pereira, Nelie Sá, Major Luiz Thomaz Reis - o cinegrafista de Rondon (pesquisa e filmografia). Departamento de Documentação e Divulgação da Embrafilme, Rio de Janeiro, 1982.
(2) Lima, Antonio Carlos de Souza, "O Governo dos Índios sob a Gestão do SPI" in História dos Índios do Brasil, Manuela Carneiro da Cunha, org. Fapesp, SMC, Companhia das Letras, São Paulo, 1992.


Sylvio Back, 62, é cineasta, escritor e poeta. Filho de imigrantes húngaro e alemã, é natural de Blumenau (SC). Autodidata, inicia-se na direção cinematográfica em 1962, tendo realizado até
hoje 35 filmes - entre curtas, médias e nove longas-metragens: "Lance Maior" (1968), "A Guerra dos Pelados" (1971), "Aleluia,Gretchen" (1976), "Revolução de 30" (1980), "República Guarani" (1982), "Guerra do Brasil" (1987), "Rádio Auriverde" (1991), "Yndio do Brasil" (1995) e "Cruz e Sousa - O Poeta do Desterro" (1999).
Tem editados dezessete livros - entre poesia, ensaios e os argumentos/roteiros dos filmes
"Lance Maior", "Aleluia, Gretchen", "República Guarani", "Sete Quedas", "Vida e Sangue de
Polaco", "O Auto-Retrato de Bakun", "Guerra do Brasil", "Rádio Auriverde", "Yndio do Brasil"
e "Zweig: A Morte em Cena".
Em 1986 é publicado o seu primeiro livro de poemas, "O Caderno Erótico de Sylvio Back"; em 88 lança "Moedas de Luz"; em 94, retomando a vertente erótico-satírica, sai "A Vinha do Desejo"; em 95, "Yndio do Brasil" (Poemas de Filme); e em 1999 tem editado "boudoir", novos poemas eróticos.
Nos anos '60, jornalista profissional e crítico de cinema, é um dos fundadores do Clube de Cinema do Paraná. além de dirigir o suplemento literário "Letras & Artes" do jornal "Diário do Paraná", colabora na imprensa do eixo Rio-São Paulo como ensaísta. Em 1968 publica a primeira história do cinema no Paraná, "Cinema Paranaense?" e estréia no longa-metragem com "Lance Maior".Com 58 láureas nacionais e internacionais, Sylvio Back é um dos mais premiados cineastas do Brasil.