QUANDO OS CINEASTAS SÃO ÍNDIOS
Sylvia Caiuby Novaes

Filmografia:
- Kasiripina Waiãpi: Jane Moraita (Nossas Festas). 32'. CTI. 1995.
- Caimi Waiassé: Tem que ser Curioso. 16'. CTI. 1996.
- Divino Tserewahu: Hepari Idub'rada - Obrigado Irmão. 17'. CTI. 1998.
- Bartolomeu Patira, Caimi Waiassé, Divino Tserewahu, Jorge Protodi e Winti Suyá: Wapte Mnhõnõ - Iniciação do jovem Xavante. 75'. CTI. 1999.
- Isaac, Valdete e Tsirotsi Ashaninka; Llullu Manchineri; Maru Kaxinawá; Nelson Kulina; Fernando Katuquina: No tempo das Chuvas. 38'. CTI. 2000.


São todos filmes realizados entre 1995 e 2000, por índios treinados pelo Projeto Vídeo nas Aldeias, do CTI - Centro de Trabalho Indigenista. De que modo é possível pensar estes filmes como elementos de representação e auto-imagem, já que são os próprios índios que captam a editam suas imagens?

Pensar esta questão implica, necessariamente, na consideração do contexto de que partem estas produções videográficas. O Projeto Vídeo nas Aldeias é uma iniciativa que tem início em 1987 no interior de uma ONG: o Centro de Trabalho Indigenista. Fundado em 1979 por antropólogos, educadores, e indigenistas interessados na auto-determinação de sociedades indígenas, numa época em que a chamada abertura da política brasileira ainda era apenas uma possibilidade vislumbrada, o Centro de Trabalho Indigenista, diferentemente de outras ONGs voltadas para a questão indígena, sempre atuou diretamente nas aldeias, a partir de relações de confiança e trabalho conjunto, estabelecidas com estas sociedades. Os antropólogos fundadores do CTI, que vinham realizando pesquisas em comunidades indígenas perceberam que teriam que abrir mão da chamada "neutralidade científica", assim como da "objetividade" da pesquisa. Só assim poderiam ter uma visão destas sociedades que não fosse marcada pela exterioridade. Neste sentido, era sim necessário tomar partido, observar a situação de contato estabelecida entre os índios e a sociedade nacional não como um processo natural, espontâneo e inexorável (como afirmavam vários antropólogos) e sim a partir de uma certa cumplicidade com as razões mais subjetivas dos índios neste processo.

Os projetos desenvolvidos pelo CTI sempre procuraram viabilizar atividades definidas pelas próprias comunidades que permitissem uma maior autonomia frente a sociedade nacional, sem deixar de levar em conta suas práticas culturais tradicionais. A viabilização de qualquer projeto envolvendo atividades econômicas - fosse a coleta da castanha pelos Gavião do Pará, o processamento do guaraná pelos Sateré Mawe na Amazônia, a exploração da borracha pelos Kaxinawá do Acre, o garimpagem desenvolvida pelos Waiãpi no Amapá, a fabricação de polpas de frutos do cerrado - enfim estas atividades não são nunca vistas como um fim em si mesmas. São como que estratégias a partir das quais um grupo se fortalece em termos sociais, políticos e culturais. Não são, neste sentido, projetos de ordem estritamente econômica.

O projeto Vídeo nas Aldeias se desenvolve a partir de 1987 com este mesmo espírito. A incorporação de uma tecnologia contemporânea de captação e manipulação da imagem foi uma iniciativa extremamente feliz e oportuna, principalmente quando se leva em conta o fato do CTI sempre ter trabalhado com sociedades de tradição oral, onde a escrita é uma atividade bastante marginal (embora tenha sua importância nas relações de contato).

A introdução do vídeo desencadeia nestas comunidades um processo de reflexão sobre a imagem em que os índios são, simultaneamente, sujeito e objeto desta reflexão, o que não era possível com o texto, que jamais despertou grande interesse entre eles. É, certamente, uma reflexão guiada e dirigida, onde se pode perceber as diretrizes dos coordenadores do projeto, assim como suas necessidades de obtenção de financiamento. Isto é bastante visível nos vídeos de Caimi Waiassé: Tem que ser Curioso (16'. CTI. 1996) e no de Divino Tserewahu: Hepari Idub'rada - Obrigado Irmão (17'. CTI. 1998). Ambos realizados por índios Xavante, têm uma mesma estrutura de roteiro: trata-se do depoimento de índios cinegrafistas, que narram como começaram a se interessar por gravar com a câmera de vídeo, como descobriram a importância da imagem tanto para os velhos como para as crianças, num tempo em que a memória é muito curta. A imagem é aqui vista como depositária da memória, num tempo de rápidas e intensas mudanças por que passam estas sociedades. Memória que é fundamental para grupos em que a mudança e a superação da situação presente não são valores em si, ao contrário do que ocorre em nossa sociedade, que parece apostar cada vez mais na obsolescência programada.

Os depoimentos são explícitos: a câmera grava, permite lembrar, não deixa esquecer, diz Divino. Aí está a importância da imagem gravada. A possibilidade de uma sociedade reproduzir-se e manter-se como uma sociedade diferenciada no interior de uma sociedade mais abrangente.

Outro dado importante é que a câmera abre a estes jovens um papel fundamental. Eles passam a ser mediadores de um processo de comunicação em que são vários os agentes envolvidos:
1. a comunicação que se estabelece através do vídeo entre diferentes aldeias de um mesmo grupo;

2. a comunicação entre as diferentes gerações, velhos, jovens e crianças e a segurança de que as tradições poderão ser mantidas;

3. a comunicação entre índios de diferentes sociedades (no Brasil e no exterior), que podem, através do vídeo, ter a percepção imediata de que, apesar das diferenças (e semelhanças que só com o vídeo são reconhecidas de fato), partilham das mesmas condições, o que pode fortalecê-los enquanto um segmento social;

4. a comunicação entre líderes e suas comunidades, já que o vídeo permite gravar as reuniões realizadas, por exemplo, com autoridades da FUNAI e mostrar o que pode ser cobrado do órgão.

O interessante nestes dois vídeos é que o reconhecimento do papel do cinegrafista ocorre, no interior da comunidade, quando os velhos anciãos percebem a câmera como recurso fundamental para que seus ensinamentos continuem (mesmo após a tão temida morte dos velhos). Trata-se, assim, de uma atividade absolutamente contemporânea, mas os fatores de legitimação são os tradicionais. A câmera é igualmente um importante elemento de revigoração cultural. As pessoas que participam de um ritual podem depois ser espectadoras, tendo assim uma melhor oportunidade de se auto-avaliarem. Do ponto de vista externo à comunidade o reconhecimento do papel do cinegrafista e das imagens por eles captadas se dá através de iniciativas como o Programa de Indio, iniciativa conjunta do CTI com a UFMT, onde os índios se encarregam da produção de programas que, se são elaborados a partir do modelo de reportagens e entrevistas típicas da TV, o objetivo é uma reconstrução da imagem do índio, em que estereótipos e acusações a estas sociedades são desmontados.

O vídeo de Kasiripiná, embora o mais antigo de todos estes (1995) aprofunda a questão da importância da imagem e não está preso à mesma fórmula dos outros dois. Jane Moraitá (Nossas Festas) apresenta o cinegrafista Kasiripiná Waiãpi narrando e explicando várias festas de sua sociedade na medida em que elas são apresentadas no vídeo que ele assiste na ilha de edição em São Paulo. É muito mais rico que os dois anteriores em termos de dados culturais sobre esta sociedade e igualmente enfático na importância da manutenção das tradições e do vídeo como o grande aliado neste processo.

Mas, mais do que isto, o vídeo traz o enorme prazer que Kasiripiná demonstra ao narrar as festas e mitos Waiãpi, prazer que vem também do fato de que a representação do monstro Tamoko, por exemplo, está sendo feita do mesmíssimo modo que os antigos faziam. E aqui são também os velhos que darão legitimidade ao cinegrafista, são eles que vão dizer se ele filmou bem ou não.

São comuns entre os Waiãpi as festas regadas com muita bebida fermentada. Kasiripiná explica que a bebida permite uma melhor sociabilidade, ninguém fica preocupado com trabalho, a caça, ou a roça.

A importância da imagem neste vídeo não está simplesmente no fato de ser acervo de memória, como nos outros dois. A imagem é importante porque torna visível, e, sabemos o quanto a visibilidade é um dado fundamental para a identidade de povos ou segmentos populacionais que pertencem a uma minoria. O objetivo de Kasiripiná é filmar para mostrar a todos - nas aldeias, nas cidades, no estrangeiro - quem são os Waiãpi, assim como levar as imagens que captou em São Paulo para seus parentes na aldeia. Aproximar realidades distantes, tornar visível um povo que poderia ser ignorado no âmbito de uma sociedade mais ampla, são os primeiros objetivos do cinema e algo que continua presente quando a câmera é acionada pelos índios.

Os dois outros filmes mostram de modo nítido a importância da cultura e de sua vivência para a auto-imagem e a representação de um povo. Wapte Mnhõhõ, que trata de um ritual dos índios Xavante e No Tempo das Chuvas, em que os Ashaninka falam de suas atividades numa determinada época do ano são vídeos exemplares. Têm não só intimidade com a cultura - o que é mesmo o que se espera de índios que vivem esta cultura - como uma enorme sensibilidade e profundidade para transformar em imagens aspectos que marcam e diferenciam a vida de um povo.

Alguns elementos são recorrentes. A cultura é motivo de orgulho para os que falam dela. E o que aí vêm a tona é a ênfase na tradição, na importância daquilo que os mais velhos transmitem aos mais jovens, na valorização da possibilidade de se fazer algo como os antigos o faziam e, neste sentido, a responsabilidade dos adultos para com as crianças. Na auto-representação destas sociedades há como que um continuum entre os antigos e os jovens, continuum que faz com que eles sejam uma coisa só. No caso dos Waiãpi passado e presente unem-se através da figura do criador.

Wapté é, do meu ponto-de-vista, o vídeo que melhor elabora, neste conjunto de vídeos aqui analisados, como um estilo de vida se firma e se reproduz ao longo de gerações. Minha visão dos Xavante sempre foi muito impregnada pelo modo como os Bororo vêm seus vizinhos. Para os Bororo os Xavante são duros, bravios, corajosos. Têm também seus defeitos na visão Bororo. Mas pude entender melhor a origem deste estilo de vida, como um homem se torna Xavante, passando por rituais em que a coragem é o valor a ser assimilado.

Wapté é um vídeo "sem pressa", acompanha este longo ritual nos detalhes, tem intimidade, traz as brincadeiras jocosas dos Xavante, assim como dados muito específicos a esta cultura - a relação entre pai e filho, entre padrinhos e afilhados, entre homens de diferentes classes de idade. Os Xavante não expressam apenas orgulho por sua cultura, parecem ter a exata noção da importância do dado cultural não só para o contexto interno à aldeia, mas, principalmente, para as relações que estabelecem com o mundo de fora - a sociedade brasileira.

Na mostra apresentada no MIS, em que estes vídeos foram exibidos, Hipãridi Dzutisi wa Top'tiro, um jovem Xavante que se expressa em português muitíssimo bem articulado, falou das dificuldades de filmagem para um cinegrafista índio. No caso Xavante, a relação de evitação que deve ser respeitada entre sogro e genro, as dificuldades de se filmar um grupo que pertença a uma facção política que não a do cinegrafista, implicam numa visão muito específica daquela sociedade.

Mas também para Hipãridi o vídeo é um importante aliado para o reforço da história oral, para abrir espaços nas escolas, diminuir o preconceito. Além disso, filmar nas grandes cidades e levar as gravações para a aldeia pode ajudar a lidar com a sedução que a cidade ainda exerce, explicar, para quem aqui nunca esteve, o stress da cidade grande, assim como nossos aspectos mais sórdidos e exóticos: a prostituição, nossa miséria nas grandes favelas que circundam o espaço urbano, e até mesmo shows muito estranhos, como os apresentados pelas drag queens. Quando os cineastas são índios, índios somos nós.


Sylvia Caiuby Novaes é coordenadora do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia (LISA) do Depto. de Antropologia e chefe do Departamento de Antropologia da USP. Atua na área de etnologia e antropologia da imagem, tendo criado nos ano 90 o GRAVi (Grupo de Antropologia Visual).