A IMAGEM DO ÍNDIO NO CINEMA BRASILEIRO*
Edgar Teodoro da Cunha


Desde o começo deste século, quando o cinema ainda buscava e explorava suas possibilidades e potenciais, filmes de temática indígena eram produzidos no Brasil e mesmo no exterior. Constituiu-se uma expressiva filmografia, que cobre um espaço de tempo relativamente amplo (da década de dez até a atualidade) focalizando o índio brasileiro de formas variadas e expressando um imaginário social, ou melhor, como a sociedade não indígena, urbana, dos centros produtores e consumidores de cinema, construiu e expressou um certo conjunto de imagens e valores em relação às sociedades indígenas. Nesse sentido, a análise de filmes de ficção é um instrumento importante para a compreensão não apenas dessas sociedades retratadas ou imaginadas no âmbito do cinema, mas principalmente para a compreensão de quem ou do meio no qual os filmes com essa temática foram produzidos.

No Brasil, temos a presença da imagem do índio no cinema desde o seu início, como por exemplo, toda a produção fotográfica e cinematográfica da Comissão Rondon, durante as primeiras expedições da "Comissão de Linhas Telegráficas e Estratégicas de Mato Grosso e Amazonas", através do trabalho do Major Luiz Thomas Reis, que realizou um conjunto notável de imagens sobre as sociedades indígenas contatadas na época através das atividades da Comissão. No interior dessa produção fílmica podemos destacar Os Sertões de Mato Grosso (1912) e Expedição Roosevelt (1914), ambos lançados comercialmente em 1915 e Rituais e Festas Bororo de 1916, seu filme mais conhecido, entre outros.

Essa produção apresenta um viés importante de documentação e divulgação de informações sobre essas populações até então pouco conhecidas, e mesmo dos trabalhos da Comissão, de seus objetivos e valores. Temos ainda o trabalho de Silvino Santos, pioneiro do cinema na Amazônia, que no início do século, financiado pelos coronéis da borracha, realiza filmes que focalizam vários elementos do mundo amazônico, incluindo os índios, como No país das amazonas (1921) e No rastro do Eldorado (1924-25).

Paralelamente a essa produção documental temos o nascente cinema de ficção que também se interessava pelo índio, mas com objetivos bem diversos, pois o tema era considerado adequado para utilização em filmes de aventura e romanescos. Assim, temos filmes como Iracema (1919) e as duas versões de O Guarani (1916 e 1920) realizados pelo imigrante italiano Vittorio Capelaro, Ubirajara (1919) de Luiz de Barros, e novamente outro O Guarani de 1920, por João de Deus, todos inseridos num contexto de constituição da cinematografia nacional.

Nos anos 30 temos duas adaptações importantes: O caçador de diamantes (1932) ainda de Capellaro, sobre a epopéia bandeirante no século XVII e o importante Descobrimento do Brasil (1937) de Humberto Mauro, inspirado na carta de Caminha. Temos ainda, agora nos anos 50, a chanchada Casei-me com um Xavante (1957) de Alfredo Palácios, com Pagano Sobrinho.

A temática indígena continua a ser focada no decorrer do tempo até a atualidade, como demonstram alguns filmes da década de 90, como Brincando nos campos do senhor (1991) de Hector Babenco, Capitalismo Selvagem (1993) de André Klotzel e versões mais recentes como O Guarani (1995) de Norma Bengel e mesmo Hans Staden (2000) de Luiz Alberto Pereira. Dentro desse contexto, pode-se afirmar que o cinema nacional desde a sua constituição têm no índio um de seus temas, sejam os grupos reais contatados por Rondon, seja o índio tomado da literatura romântica, nos filmes ficcionais.

UM ÍNDIO IMAGINÁRIO ?

O índio tem se constituído através do tempo como o lugar do outro, da alteridade, que historicamente mobilizou vários temas e que por contraste acabou por definir elementos do olhar de nossa própria sociedade. Em outros contextos, esse outro foi chamado de selvagem, bárbaro e seus costumes considerados estranhos e primitivos, em oposição ao mundo civilizado. Foi questionado até mesmo quanto ao estatuto de humanidade em contraposição à "humanidade" ocidental.

Nesse longo processo histórico, muitas foram as imagens produzidas sobre o índio, evoluindo para a constituição de um lugar, de um repositório de imagens e significados, que fez com que o índio tenha se tornado o que é, um índio imaginário, um campo semântico complexo que se exprime de maneiras variadas e tem implicações concretas ligadas à realidade histórica e sóciopolítica do momento em que são mobilizadas.

Dessa forma, temos um repertório de imagens que compõem narrativas visuais e construções mentais que foram engendradas em momentos históricos específicos e são frutos de uma realidade social particular, mas que dentro de uma perspectiva de longa duração permanecem enquanto forma, transmutando seus significados, terminando por gozar de uma relativa autonomia em relação ao seu contexto original.

Quando se utiliza a palavra "índio", em nossa sociedade, existe a referência a uma entidade genérica que grande parte das vezes pouco tem a ver com as sociedades indígenas reais, pois, sob esse termo comum temos uma diversidade cultural, lingüistica e social enorme, que acabam por ficar encobertas aos olhos dos não especialistas, nas grandes cidades e centros urbanos.

A instância "índio" deve ser entendida, portanto, como algo construído historicamente e até mesmo jurídica e cientificamente, e que esse processo refere-se, na maior parte das vezes, à forma como a sociedade envolvente visualizou e compreendeu uma série de sociedades culturalmente diversas, homogeneizando grupos humanos que no limite não seriam em muitos casos aproximáveis.

No entanto, não nos enganemos, concluindo que o índio como invenção da "sociedade dos brancos" é apenas uma idéia, sem uma realidade correspondente. Não se deve esquecer que o processo histórico que originou essa construção envolveu relações de poder que permitiram a sua realização assim como, sua eficácia.

Mas, voltando ao nosso foco de interesse, que está fixado na outra ponta dessa perspectiva, temos que esse índio imaginado, e as imagens a ele associadas, expressam significados e referem-se ao modo como nossa sociedade constrói o que poderíamos chamar de cosmologias contemporâneas, através de metáforas e alegorias. É nesse sentido mais geral que estamos propondo uma abordagem do cinema e da imagem do índio por ele construído, que não é unívoca.

ALEGORIA, MELANCOLIA: A IMPORTÂNCIA DOS ANOS 70

Inúmeras são as questões possíveis em relação ao índio no cinema dos anos 70: De que índio estamos falando, afinal? Que índio é esse construído no cinema e nesse momento específico dos anos 70? Que significados são mobilizados nessas construções?

Em Iracema a virgem dos lábios de mel, é curiosa a ligação da imagem da índia ao desejo e à sensualidade. A escolha de Helena Ramos para o papel principal nesse sentido pode ser entendido como reflexo de um desejo de construção de algo que faz sentido na sociedade da época e mesmo hoje é possível pensar em personagens de ficção "índios" calcados no desejo e na sensualidade. Curiosa alteridade construída no desejo e na sedução, face a um passado que a constituiu ligada a antropofagia, radicalizando a distância entre os dois pólos.

Mesmo no filme Como era gostoso o meu francês, que mobiliza o canibalismo como elemento chave na narrativa, e onde o caráter alegórico é mais extenso, temos uma aproximação do canibalismo de uma aura de sensualidade e sedução, pois na relação entre os personagens Jean e Seboipep, a quem o pescoço do primeiro estava prometido, temos um tratamento de intenso lirismo, matizando o canibalismo através dessa perspectiva.

Nesse contexto em que a iconografia sobre o índio constrói a alteridade por elementos iminentemente físicos (por exemplo, nas pinturas corporais, tatuagens, furações em lábios e orelhas, botoques, etc.), poderíamos nos questionar se ela reside apenas nos corpos, se não haveria também a idealização de uma alma indígena. Creio que podemos pensar que sim, evocando um problema mais atual, da crítica às sociedades indígenas por não corresponderem a uma idealização que as associa à ecologia e integração à natureza. Afinal, muito do discurso construído para a manutenção de áreas indígenas e mesmo para a construção social da necessidade de manutenção e reconhecimento de identidades diferenciadas foi justificada nessa associação que vem sendo posta em questão pela forma como alguns grupos indígenas têm atuado mais recentemente.

Em Ubirajara, a associação de um passado mítico e guerreiro face a um momento de imobilidade e sujeição levadas a cabo pelo poder instituído é evocatório também da questão indígena em sua configuração nos anos 70, além da questão propriamente do momento político daquele período. Já Iracema, uma transa amazônica, conjugando documental e ficcional, explicita claramente e criticamente o processo de ocupação da Amazônia e seus resultados funestos, mas também alegoriza se pensarmos em termos de uma discussão sobre identidade.

Em Como era gostoso o meu francês a alegoria é completa, mas talvez não tão eficaz. É curioso o comentário feito pelo próprio Nelson Pereira dos Santos em entrevista a respeito da recepção do filme na época: sua intenção era de que o público se identificasse com o índio que, através da antropofagia, come o francês e seus conhecimentos para vencer seus inimigos. Sentido coerente com a matriz a que recorre o realizador, mobilizando a estratégia antropofágica do modernismo e o clima tropicalista da época. No entanto, para sua surpresa, a identificação de boa parte do público foi com o francês, com muitos espectadores manifestando sua insatisfação com a morte do mesmo no final. Torcia-se para que o francês escapasse como afinal aconteceu com Hans Staden, escritor da crônica de base utilizada por Nelson. Assim, apesar da evidente vertente alegórica do filme, nem sempre sua interpretação nesse registro era concretizada.

Se em Como era gostoso o meu francês temos uma alegoria da relação colonizado/colonizador dentro de uma idéia de construção de uma estratégia cultural de resistência e portanto um diagnóstico da nação, em Uirá temos uma alegoria construída na busca individual do personagem num contexto que impõe limitações de vida e de sentido para a vida, sendo dessa forma um diagnóstico existencial.

Em Uirá, a alegoria é um pouco mais sutil. Temos a trajetória do personagem e os elementos de base que levam a uma identificação com o mesmo através da sua dor, sua desesperança e sua busca pela possibilidade de superação de tais sentimentos, que para o personagem era o encontro com Maíra. Os sofrimentos e agruras passados por Uirá são compreendidos e o sentimento de incomunicabilidade é compartilhado. Os personagens indígenas não falam português, e diferentemente de outros filmes que utilizaram a língua nativa, esse filme não é legendado. No entanto, compreende-se perfeitamente as dificuldades de Uirá não somente em termos do conteúdo literal de suas falas, mas pelo sentido indireto obtido através da emoção.

Então, voltemos a questão inicial: qual a especificidade dessa apropriação da imagem do índio nos anos 70? Qual o sentido de se pensar "o espectador na pele do índio"? Qual o significado de se evocar imagens como do índio vítima do milagre, ou da antropofagia como estratégia cultural, ou de se evocar o índio enquanto um passado mítico perdido, ou ainda identificar-se com a viagem mítica de Uirá em busca de si mesmo em um contexto de extrema hostilidade e incomunicabilidade? Porque é possível uma identificação com a trajetória espiritual de Uirá e seu sentimento de melancolia face a um mundo que não lhe reserva mais lugar. Essas questões fazem sentido se pensarmos em como a questão indígena era encarada na época, para então realizarmos o desdobramento alegórico, que permitiu a identificação do espectador com os vários personagens e situações envolvendo índios.

As imagens dos filmes propostos criam distancias e proximidades em relação ao espectador e, por extensão, criam imagens de nós mesmos. Se o índio teve um significado especial nos anos 70 e no cinema produzido na época, temos que em parte aquelas questões ainda são atuais e outras pensadas noutros termos, pois, por exemplo, as adaptações mais recentes envolvendo índios não tem um caráter alegórico ou alusivo como nos filmes comentados. Nas recentes comemorações para os 500 anos do "descobrimento" tivemos inúmeras festividades, mostras, cerimônias, conflitos e dissonâncias em que novamente atualizamos e fixamos novas formas de ver o passado e, por conseqüência, novos significado agregados à idéia de índio. O estado atual sobre a questão indígena é muito diverso do que encontrávamos nos anos 70, mas algumas especificidades ainda são atuais.

A grande novidade nesse contexto mais contemporâneo da produção de imagens sobre o índio é a emergência de trabalhos de realizadores indígenas, que vem permitindo uma modificação da visibilidade do índio, através de vídeos captados e editados por índios de diferentes etnias. Através da produção de sua própria imagem contrastando com a material visual até então existente, a consolidação dessa produção expressa a complexidade que esse tema pode apresentar na atualidade.


* Este artigo é um desdobramento de questões desenvolvidas na dissertação de mestrado "Cinema e Imaginação: a imagem do índio no cinema brasileiro dos anos 70", USP/SP, 2000, financiada pela FAPESP.

Edgar Teodoro da Cunha. Antropólogo, Doutorando do programa de Pós-graduação em Antropologia Social da USP e pesquisador do Grupo de Antropologia Visual/USP.