Taking Aim e a Aldeia Global: A Apropriação Cultural e Política da Tecnologia de Vídeo pelos Índios Kayapós.
Mônica Frota

Em 1985, iniciamos o primeiro projeto de mídia indígena brasileira, intitulado Mekaron Opoi D'joi (1), através do qual alguns membros de grupos Kayapós, aprenderam a trabalhar com a tecnologia de vídeo. Ao longo desta experiência, os Kayapós compreenderam e exploraram as diversas possibilidades que o uso da câmera de vídeo poderia oferecer-lhes. Inicialmente, compreenderam a câmera como um instrumento de preservação de sua cultura tradicional, seus rituais, danças e cantos, para as gerações futuras. Em uma dentre as inúmeras conversas que viriam a definir as bases nas quais o projeto se desenvolveria, Kremoro, Chefe Metuktire-Kayapó, afirmou:

"No passado, fotógrafos vieram e tiraram fotografias nossas,
mas eles nunca nos deram nada em retorno.
Eles nunca tentaram nos ensinar nada.
Agora, nós, os Kayapós, estamos gravando
nossos rituais para nossas crianças."
Kremoro, Chefe Metuktire.

Muito embora o vídeo fosse então uma mídia bastante instável para fins arquiváveis, sobretudo se considerarmos a impossibilidade de digitalização das imagens e sons naquela época, a determinação dos Kayapós em usar a câmera para documentar atividades de sua própria cultura levou-os a performarem danças antigas, que muitos dentre eles desconheciam, assim fazendo com que o vídeo preenchesse, ainda que de forma limitada, sua função como instrumento de perpetuação cultural entre os Kayapós. Além disso, as possibilidades técnicas do vídeo permitia-nos(2) assistir diariamente ao material gravado, promovendo assim a ampliação de nossa própria compreensão sobre os Kayapós e da apropriação que estes faziam da mídia eletrônica.

Há muito tempo os Kayapós já vinham integrando em suas atividades cotidianas, elementos e práticas da sociedade moderna que os circunda, como por exemplo, o manuseio de instrumentos médicos para tratamentos básicos efetuados por jovens que, devidamente treinados, desempenhavam o papel de monitores de saúde, ou ainda, o uso do rádio para comunicação entre grupos Kayapós e grupos que habitam o Parque Indígena do Xingu, onde o grupo Metuktire-Kayapó também habita. Como definiu o líder Megaron:

"Nós estamos aprendendo a cultura brasileira, as coisas dos brasileiros,
para manter nossas terras e proteger nossa própria cultura."
Megaron, Líder Metuktire-Kayapó.

Megaron, que na ocasião ocupava o cargo de diretor do Parque Indígena do Xingu, posição conquistada por ocasião do episódio que ficou conhecido pelas mídias televisiva e impressa como a Guerra da Balsa (3), demonstrava com clareza o vínculo indissolúvel entre a terra e a cultura para membros de uma sociedade tradicional como os Kayapós e ainda, a importância e a necessidade de conhecer e aprender elementos da sociedade circundante, como uma forma de garantir sua própria existência territorial, cultural e política.

Nossa observação do uso que os Kayapós faziam do rádio levou-nos a sugerir que o projeto, que inicialmente limitava-se ao grupo Metuktire-Kayapó, fosse expandido entre outros grupos Kayapós que habitavam terras no sul do estado do Pará, estimulando-os na troca de mensagens gravadas em vídeo entre aldeias. Assim o projeto passou a incorporar os membros das aldeias Gorotire, A'ukrê e, mais tarde, Kubenkokre, permitindo o diálogo entre parentes que não se falavam há anos. Enquanto trocavam mensagens pessoais e solicitavam o envio de materias diversos para confecção de cocares e outros artefatos culturalmente relevantes entre eles, aos chefes e líderes cabiam a articulação de formas comuns de defesa e resistência às dominações externas, dividindo, entre as aldeias, mensagens como a que se segue:

"Meu nome é Noyremu.
Eu estou falando para todos os chefes.
Eu tenho uma visão de nossas terras como um único país.
Nós devemos proteger nossa floresta para nossas mulheres,
que seguram nossas crianças em seus braços.
Minhas palavras foram diretas e honestas.
Eu espero por sua resposta."
Noyremu, Chefe Metuktire-Kayapó da aldeia de Kubenkokre.

A dimensão política do projeto consolidou-se como uma extensão do uso que os Kayapós já faziam do rádio. A apropriação política da tecnologia de vídeo não limitou-se ao espaço interno das aldeias. Se internamente, o vídeo viria a fortalecer a identidade étnica e a unidade política Kayapó; externamente, os Kayapós, que há muito tinham demonstrado sua compreensão do poder da mídia, passaram a usar o vídeo na documentação dos acordos estabelecidos com representantes do governo, como por exemplo, quando cercaram o Palácio do Planalto. Em 1985, ao cercar o Palácio do Planalto e demandar reunião com as autoridades brasileiras, os Kayapós, serviram-se da exploração de sua imagem como "índios hi-tech" para ocupar a primeira página do Jornal do Brasil, e assim conseguir que suas reivindicações chegassem a nós, de forma mais abrangente. Eles, que sempre exibiram seu ethos guerreiro à mídia, aparecem agora como "índios hi-tech", ocupando, inclusive, mais tarde, a capa da revista Time, por ocasião do Encontro de Altamira, quando reivindicavam que uma hidro-elétrica que inundaria suas terras não fosse construída.

Este projeto de mídia indígena nos permitiu compreender como os Kayapós reconstroem sua identidade cultural combinando elementos da sua tradição à apropriações da cultura moderna. A câmera de vídeo soma-se à pintura corporal e, enquanto as mídias televisa e impressa exibem a modernidade Kayapó, eles, senhores de sua própria história e criadores de sua própria representação, indicando-nos, uma política de representação áudio-visual pluricultural, marcada pela diversidade de vozes que se expressam. De acordo com Megaron:


"Nossos filhos e netos poderão assistir a estas imagens.
Até mesmo os brancos podem ver estas imagens de nossa cultura,
pois assim, permaneceremos Kayapós."
Megaron, Líder Metuktire.

O controle dos Kayapós sobre a forma com que são representados como "índios hi-tech" é também uma afirmação culturalmente relevante da identidade Kayapó, visto que eles concebem sua cultura tanto do ponto de vista da permanência quanto do ponto de vista da transformação, em consonância com Stuart Hall que observou que:

"Identidade cultural não é uma essência fixa, que se mantém imutável em relação a história e a cultura. ... Ê sempre construída através da memória, fantasia, narrativa e mito. Identidades culturais são pontos de identificação, os instáveis pontos de identificação ou sutura, que constituem-se dentro dos discursos da história e da cultura."(4) (Hall, 1989)

Assim, ao invés de aparecerem como mero sujeitos de nossos filmes, os Kayapós compreenderam o uso da tecnologia de vídeo enquanto "praxis", isto é, como uma ferramenta que podem fazer uso para transformar sua realidade socio-política. A apropriação do vídeo pelos Kayapós reafirma a noção de que são as pessoas que fazem sua própria história e que, na era da "aldeia global", fazem a história aqueles que detém o controle de sua própria representação através da mídia.

A partir do material gravado ao longo dos dois anos que envolveram três viagens às terras Kayapós, realizei o vídeo Taking Aim(5) apresentando imagens originais do projeto Mekaron Opoi D'joi, imagens de arquivo, fotografias e animação por computador. Taking Aim, não limita-se a documentação do processo de apropriação que os Kayapós fazem da tecnologia de vídeo enquanto instrumento de intervenção cultural e político, busca também, questionar e subverter formas convencionais de representação de sociedades tradicionais, sendo irônico e provocativo na sua abordagem sobre poder e representação.


(1) Mekaron Opoi D'joi significa "ele, que cria imagens" na lingua Gê, falada pelos grupos Kayapós.
(2) A equipe do projeto era formada pelos antropólogos-videomakers Mônica Frota, Renato Pereira e Luiz Henrique Rios. O projeto foi desenvolvido entre 1985 e 1987, período no qual foram realizadas três viagens às terras Kayapós.
(3) A Guerra da Balsa, em 1984, culminou com a tomada da balsa, que fazia a travessia dos carros e caminhões no ponto em que a estrada BR-080 cortava o Parque Indígena do Xingu, pelos Metuktire-Kayapós. Eles reclamavam a demarcação das terras ao norte da estrada. Nesta ocasião, durante todo o mês os guerreiros Kayapós apareciam no horário nobre dos grandes telejornais e nas primeiras páginas dos jornais diários. Os Metukire obtiveram a retomada e demarcação das terras reclamadas e a nomeação de Megaron para a administração do Parque do Xingu.
(4) Hall, Stuart, "Culture, Identity and Cinematic Representation," in Framework, nº 36, London: Sankofa Film & Video, 1989 (pg. 71-72).
(5) Taking Aim foi exibido em 16 países e premiado em diversos festivais internacionais, destacando-se o Grande Prêmio no Festival Internacional de Vídeo de Hiroshima, 1995, e o Prêmio Hugo de Prata no 30º Festival Internacional de Filmes de Chicago, 1994.


Mônica Frota, 39 anos, é antropóloga visual, fotógrafa e videomaker. Professora do Departamento de Artes & Design da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Mônica é graduada em Cinema pela Universidade Federal Fluminense, e em 1992 concluiu seu Mestrado de Artes em Antropologia Visual pelo The Center for Visual Anthropolopgy - University of Southern California. Seu trabalho é uma afirmação de seu compromisso com a exploração dos usos da tecnologia de vídeo enquanto meio transformador das relações de poder existentes nos processos de representação áudio-visual.