Quero estabelecer aqui uma comparação entre dois filmes
- Como era gostoso o meu francês de Nelson Pereira dos Santos (1971)
e Hans Staden de Luís Alberto Pereira (1999), que partem de um
relato comum, o do artilheiro alemão, Hans Staden: prisioneiro
de índios antropófagos por nove meses, no Brasil do séc.
XVI, consegue escapar, e voltar para a Alemanha onde publica sua história.
O filme de Nelson, apesar de seguir bastante relato de Hans Staden, opta
por inserir alguns dados de outro viajante da mesma época, o francês
Jean de Léry, que veio juntar-se a comitiva do almirante Villegaignon
com o intuito de povoar a França Antártica - tentativa de
colonização francesa no Brasil.
A produção de Luís Alberto Pereira acompanha, como
diz o próprio diretor - 'literalmente', o diário deste viajante
alemão sobre sua estada no Brasil: de seu aprisionamento até
sua ardilosa escapada.
A diferença que chama mais a atenção entre as duas
produções é a que diz respeito ao destino final do
protagonista: na primeira versão ele é sacrificado de acordo
com o ritual antropofágico dos índios tupinambás,
na segunda, ele consegue enganar seus algozes escapando do ritual previsto.
O que está implícito em um e outro final é determinante
para entendermos as diferenças entre uma e outra adaptação.
A questão da adaptação:
O tipo de relação que Luís Alberto Pereira estabelece
com o diário do viajante alemão é totalmente diferente
do fixado por Nelson. Podemos dizer que o filme Hans Staden optou por
um tipo de adaptação onde o objetivo é conseguir
um campo de verossimilhança com a obra em questão, representar
literalmente o que está escrito; essa relação de
fidelidade com a obra é sempre muito relativa pela própria
diferença de amplitude entre os dois suportes: o cinema tem recursos
tão diferentes e explicitados- movimento de câmera, luz,
textura, ruídos, música, diálogos, etc., que fica
impossível reproduzir somente, exatamente, o relato escrito.
Mas, podemos dizer que, ao seguir 'à risca' a história do
artilheiro alemão, a produção de Hans Staden recusa
outros tipos de relação com o livro no qual se baseia; este,
já foi fonte de inspiração para todo um pensamento
sobre o ritual antropofágico dos índios brasileiros e tem
um longo percurso de estudos e indagações.
A história da antropofagia brasileira
Duas viagens ao Brasil, de Hans Staden, foi publicado no séc.XVI,
reeditado em fins do séc. XIX na Alemanha e traduzido no início
do séc. XX no Brasil. A questão da antropofagia sempre polêmica,
desde o séc. XVI ela já se destacava entre outras descrições
e histórias do Novo Mundo. Hans Staden descrevia, com a ênfase
de quem viveu na eminência de ser canibalizado, a experiência
da antropofagia: "... golpeiam o prisioneiro na nuca, de modo que
lhe saltam os miolos, e imediatamente levam-lhe as mulheres, o morto para
o fogo, raspam-lhe toda a pele, fazendo-o inteiramente branco, e tapando-lhe
o anus com um pau a fim de que nada dele se escape". O livro de Jean
de Léry (utilizado pelo filme de Nelson), fala das cenas de canibalismo
com mais distanciamento, (afinal ele não viveu a possibilidade
de ser devorado), em Viagem à terra do Brasil, chega a 'relativizar'
a violência deste ato ao dizer que: "... existem entre nós
(europeus) criaturas muito mais detestáveis do que os que só
investem contra nações inimigas de que têm vingança
a tomar. Não é preciso ir à América para ver
coisas extraordinárias e monstruosas. Temo-las cá em nosso
país." Montaigne, em Os Canibais, questiona a dimensão
de ato bárbaro do canibalismo ao comparar a antropofagia aos procedimentos
similares ou piores utilizados pela Europa do séc. XVI, diz ele:
" ...estimo que é mais bárbaro comer um homem vivo
do que o comer depois de morto; e é pior esquartejar um homem entre
suplícios e tormentos e o queimar aos poucos, a pretexto de devoção
e fé ... e isso é bem mais grave do que assar um homem previamente
executado." Além dos relatos, existiam outras formas de descrever
e representar os canibais: as ilustrações, as gravuras que
acompanhavam esses textos, (de Teodoro de Bry, por exemplo); estas, serviram,
de acordo com o historiador americano Thomas Skidmore, Uma história
do Brasil, para afirmar a existência de um barbarismo que, ao
longo dos séculos XVI e XVII, dava aos portugueses mais legitimidade
para dizerem que estavam levando a civilização aos selvagens.
À partir do séc. XX, a antropofagia, deslocada dessa visão
dos cronistas do séc. XVI, vai se transformar em metáfora,
através da apropriação do termo por Oswald e Mário
de Andrade, ou em análise histórica e antropológica
por Alfred Métraux (A religião dos tupinambás,
1928), Florestan Fernandes (A função social da guerra
na sociedade dos tupinambás, 1948), Lévi-Strauss (Tristes
trópicos) etc. É interessante lembrar que essa noção
de antropofagia, recorrente para Oswald e para esses historiadores, é
apoiada na literatura dos viajantes, (a qual o livro de Hans Staden se
destaca), se refere sempre ao canibalismo ritualístico dos índios
tupinambás (existem outros tipos de antropofagia ritual, como a
dos índios Tapuias, que comiam seus mortos).
Na década de 60 vai haver uma reutilização da noção
de antropofagia em movimentos culturais como o Tropicalismo (1968), peças
como O Rei da Vela (1967) de Oswald - ambos inspirados pelo filme
Terra em transe (1967). Vários outros filmes foram influenciados
por essa estética tropicalista-antropofágica - O anjo
nasceu, de Júlio Bressane, O bandido das luz vermelha
(1968), de Rogério Sganzerla, etc. Mas é com a adaptação
de Joaquim Pedro de Andrade do livro Macunaíma (1969), de
Mário de Andrade, que aparece pela primeira vez a imagem do canibalismo
como devoração cultural no cinema brasileiro.
A inserção da história de Léry
Como já foi mencionado, ambos os filmes, partem de uma fonte comum
- o diário do artilheiro alemão e Nelson Pereira dos Santos,
acrescenta descrições do viajante Jean de Léry (primeiro
nome e nacionalidade de seu protagonista) que são reproduzidas
nas cenas iniciais de Como era gostoso. Trata-se da leitura da
carta do almirante Villegaignon, governador da a França Antártica,
para Calvino, (carta citada pelo livro de Léry), descrevendo uma
rebelião dos próprios franceses, que aqui habitavam contra
a tirania desse almirante. Nelson insere seu personagem nesse conflito,
do qual ao fugir, é pego por índios tupiniquins, aliados
dos portugueses, inimigos dos franceses, e depois pelos tupinambás.
Estes, apesar de serem amigos de seu país, o confundem com um português
e por isso o aprisionam - essa última parte e as cenas que se seguem
reproduzem o relato de Hans Staden. Nelson nos lança dentro de
um emaranhado de conflitos e é dentro dele, dessa confusão
de nacionalidades em guerra, que vai estar inserido o tema da antropofagia.
A inserção da história de Léry em Como
era gostoso o meu francês demonstra a preocupação
do diretor com o relato histórico (ele poderia ter inventado aqueles
fatos iniciais), mas, além disso, ao contextualizar o aprisionamento
de Jean pelos tupinambás em meio a uma série de conflitos
entre nações, o filme valoriza a unidade dos tupinambás.
Afinal, o país, que em Hans Staden é representado
como a 'grande família' - a Alemanha, para a qual ele consegue
voltar, no filme de Nelson - a França, é responsável
por sua expulsão e mais adiante, na figura de um comerciante francês,
o trai vilmente, ao desmentir, só de safadeza, a sua nacionalidade.
A cena em que um conterrâneo tem a chance de ajudar o outro a ser
salvo da canibalização, também aparece no filme de
Luís Alberto Pereira; só que, no caso, o personagem de Hans
estava falseando sua nacionalidade, tentando se passar por francês
sendo alemão; de qualquer forma, o francês que nega ajudá-lo
volta atrás e tenta salvá-lo. As nações européias
aparecem aí unidas e com senso de moral. O outro comerciante francês,
representado pelo ator Sérgio Mamberti, estaria fazendo o papel
do colonizador sacana, sem nenhuma relação de patriotismo;
mas, ele tem um tipo tão estereotipado e cômico que não
chega a abalar a figura daquele comerciante correto.
Identificando o estrangeiro com o espectador
Com finalidades completamente diferentes, os dois filmes têm alguns
pontos em comum, como, por exemplo, a maneira como ambos nos identificam
com a figura do estrangeiro, do colonizador. Luís Alberto Pereira
cria, logo de cara, uma empatia entre o protagonista e o espectador, seja
pela voz do próprio Hans Staden, em off, relatando, de forma
intimista, o momento de seu aprisionamento, seja pela maneira vulnerável
com a qual seu corpo 'branquíssimo', de estrangeiro alemão,
nos é apresentado.
Sem esse mergulho, tão imediato, no universo do protagonista,
proporcionado pela entrada de sua voz em off, Como era gostoso
também constrói uma empatia entre o protagonista, o Jean
e o espectador. Nos primeiros minutos do filme Jean aparece em uma situação
de tal abandono - expulso por seus próprios compatriotas, aprisionado
pelos índios tupiniquins e os portugueses, novamente preso pelos
índios tupinambás, que ficamos necessariamente solidários
a ele. Também temos a voz de Jean em off quando este descreve
o cotidiano dos índios com os quais está convivendo. Sua
voz em off causa a sensação de intimidade e domínio
sobre aquela gente.
Além da voz off ou da situação de fragilidade
do protagonista, a empatia inicial com a figura do colonizador-civilizador,
também é criada através do impacto causado pelo encontro
deste com os índios que, em ambas produções, nos
são apresentados como temíveis antropófagos. Em Hans
Staden todo realismo da cena, é trabalhado no sentido de mostrar
o medo, o horror, a solidão do protagonista, que tem a perna machucada
no ato do aprisionamento e vai sendo arrastado, mesmo assim, por seus
algozes. Em Como era gostoso também há choque nesse
primeiro encontro quando alguns prisioneiros são abatidos, no ato,
com um único golpe do 'tacape' (nome do pedaço de pau utilizado
pelos índios com o fim de abater o inimigo).
Ambos filmes também substituem essa primeira imagem do índio-hostil-antropófago
por uma figura de ser humano mais amena: aquele que organiza seu cotidiano
construtivamente, plantando, pescando, fazendo adereços.
Tanto Jean quanto Hans se adaptam ao cotidiano indígena, pois,
afinal, eles não vão ser devorados no dia seguinte. E é
aí que começam as primeiras diferenças entre a interpretação
dada por um e por outro filme.
A vivência de Jean junto à comunidade indígena (onde
lhe é oferecido a possibilidade de caçar, plantar, e até
ter uma mulher só para ele), durante os oito meses que antecedem
seu sacrifício, não é casual, nem fruto da habilidade
de Jean/Staden para adiar seu sacrifício (como nos é mostrado
no filme de Luís Alberto). De acordo com o estudo de Florestan
Fernandes, A função social da guerra na sociedade tupinambá,"
... os inimigos capturados passam por um processo de integração
à sociedade dos captores para depois serem destruídos".
A conversão do cativo em vítima promovia sua integração
à comunidade. É previsto pelas regras indígenas um
período de convivência harmônica entre o prisioneiro
e a comunidade. É quando, em ambos os filmes, os protagonistas
tentam se fazer de poderosos para os índios, mostrando seus poderes
de comunicação com os deuses - conseguem prever a chuva
ou a morte de um de seus membros.
Só que todas as tentativas do Jean, de Como era gostoso,
de interação com a tribo, vão servir para mostrar
como a crença indígena é forte - se ela não
pode ser abalada, ele vai ser devorado. Já na versão atual,
Hans consegue inserir-se no cotidiano sagrado dos índios de tal
forma que estes abrem uma exceção dentro de sua cultura
e deixam-no escapar.
Ao fazer cumprir o ritual indígena optando pela morte de Jean,
o filme de Nelson alinha-se a uma tradição, de compreensão
da cultura indígena e crítica ao europeu, que começa
no séc. XVI, passa por Montaigne, e chega até o séc.
XX com estudo de Florestan Fernandes e a invenção cultural
de Oswald de Andrade.
A cena de guerra entre os tupinambás e os tupiniquins (que antecede
a canibalização do francês) destaca, no filme de Nelson,
que o conflito entre as tribos é anterior a chegada dos europeus
e nos explica a tradição do ritual antropofágico
como diretamente ligada à guerra. Montaigne (Os canibais) já
dizia que " ... esses povos não entram em conflito a fim de
conquistar novos territórios, porquanto gozam ainda de uma uberdade
natural que, sem trabalhos nem fadigas, lhes fornece tudo o que necessitam
e em tal abundância que não têm motivo para desejar
ampliar suas terras" e Florestan Fernandes completa afirmando ser
em torno da noção de vingança que se objetivavam
culturalmente os motivos que os conduziam à guerra, "... eles
viam nos ritos de 'destruição' dos inimigos uma forma perfeita
de consumação de vingança",(é importante
salientar que Florestan refere-se aí a um sentimento de vingança
mais complexo do que o corriqueiro).
O índio no filme de Nelson e no filme de Luís Alberto:
implicações
A conseqüência mais imediata da opção por um
ou outro final (deixar ou não Hans escapar do ritual antropofágico)
está na expressão de melancolia e dor que, na primeira versão,
aparece na figura do colonizador e na segunda na figura do índio.
O final de Hans Staden coloca os índios como uns ingênuos
ou melancólicos. Um pouco antes da partida de Hans, eles são
atraídos para o interior de uma embarcação francesa,
com a promessa, que os satisfaz plenamente, de um baú cheio de
especiarias. Em Como era gostoso temos uma cena onde o negociante
francês tenta entregar um baú com presentes para os índios,
este é veemente recusado por seu chefe - Cunhambebe que, nomeando
os objetos de 'quinquilharias', afirma, a seguir, seu interesse pela pólvora.
A melancolia, em Hans Staden, é colocada como um sentimento
'próprio' do índio, na expressão de tristeza da índia
na canoa, vendo seu amante Hans Staden se afastar na grande embarcação.
Em Como era gostoso o meu francês esse sentimento parece
estar localizado na figura de Jean, que perde sua única oportunidade
de escapar, por querer levar Seboipepe junto: estava em uma canoa já
próximo a uma embarcação francesa, ao ouvir a voz
da índia chamando-o para a praia, volta para buscá-la.
A impossibilidade de uma relação de afeto entre o colonizador
e o colonizado em Hans Staden é determinada pela figura
do colonizador, que consegue retornar a sua verdadeira "família"-
a Alemanha; em Como era gostoso, trata-se da impossibilidade de
existência do próprio sentimento em si, em função
das normas e hábitos rígidos que regem a sociedade dos tupinambás:
uma índia não se apaixonaria pelo inimigo que irá
devorar.
A não concessão dos índios de Como era gostoso
o meu francês em relação a vida de Jean nos remete
à regra preconizada por Oswald, presente na Revista Antropofágica
de 1928: "só o civilizado faz concessões, transige
e assina o Tratado de Versalhes ... o acordo (do índio) era no
moquém com o corpo do inimigo fritando na brasa". A influência
de Oswald no filme, pode ser responsável pelas interpretações
carnavalizadas, (que confirmam seu lema de devoração da
cultura estrangeira): o close sobre o rosto de Seboipep comendo
com prazer o 'pescocinho' de Jean ou imagem de Cunhambebe correndo com
os canhões (que pertenceram a Jean) apoiados nos ombros - vale
lembrar também da provocação presente no próprio
título: Como era gostoso o meu francês. Mas a maneira
como o cotidiano indígena nos é mostrado recebe o mesmo
tratamento e precisão histórica do filme Hans Staden:
os rituais, os diálogos em tupy ( realizados pelo cineasta Humberto
Mauro), a descrição dos hábitos e história
dos tupinambás. E pelo viés de uma interpretação
histórica, a canibalização do francês representa
uma visão positiva da crença indígena de que, ao
comer o inimigo, estariam assimilando para si a sua força, ponto
de vista que nos leva, como já foi dito, aos estudos de Florestan
Fernandes.
A antropofagia no filme Hans Staden é vista de maneira semelhante
à descrita pelo livro do viajante europeu, trás a imagem
de terror e de medo que circundavam o imaginário do civilizado
em relação ao nativo, justificativa para a catequização,
para o ensinamento que os europeus deveriam dar ao Novo Mundo. Na produção
de Luís Alberto, o domínio de Hans em relação
à tribo aumenta fazendo com que ele consiga, em nome de seu Deus,
não só salvar a si próprio, como às pessoas
a sua volta: o negro, que é encontrado na floresta - ele convence
os índios a deixá-lo fugir, o mesmo ocorre com seus amigos
portugueses. O índio de Hans Staden é, no fundo,
bom, puro, é "catequizável".
O ponto de vista do filme Hans Staden é o da estranheza
do europeu em relação aos costumes nativos, a apresentação
detalhada dos rituais indígenas, onde a música de Marluí
Miranda colabora para uma visão extremamente convincente desse
cotidiano, coloca o espectador como um observador privilegiado de uma
experiência exótica, onde podemos ir embora com o viajante
alemão relatar as estranhas sensações do convívio
entre índios canibais. É a recusa da leitura de Oswald,
expressa neste trecho do Manifesto Antropófago que confirma
a vitória do Brasil primitivo: "Antes dos portugueses descobrirem
o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade ... mas não foram
cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização
que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jaboty ...Peste
dos chamados povos cultos e christianisados, é contra ella que
estamos agindo.... Antropófagos"(Revista de Antropofagia,
1928-1929).
A morte de Jean, em Como era gostoso, inverte as relações
vencedor-vencido, colonizador-colonizado, civilizado-selvagem, presentes
dentro da narrativa original. Passamos por um 'tratamento de choque':
aquele com o qual nos identificáramos é devorado e suas
últimas palavras são as mesmas de um guerreiro tupinambá
para seus inimigos: "Quando eu estiver morto meus amigos virão
vingar-me e não restará um de vós nesta terra".
Nesse caso, a sensação não é de conforto,
já que o filme nos causa uma certa confusão de identidade:
quem eram nossos 'amigos'? os franceses, os portugueses, os índios?
Guiomar Ramos é doutoranda do Departamento de Cinema da ECA
|