Filmar e ser filmado
Hiparidi D.Top'tiro

Normalmente somos filmados pelos waradzu (não índio) que vão até a aldeia como pesquisadores ou com o objetivo de estar documentando sobre a nossa cultura. Depois eles voltam para a cidade, editam o material, e concorrem a prêmios em festivais de cinema. Muitas vezes, eles ganham fama com isso enquanto os indígenas não participam em nada, nem do processo, nem dos ganhos, nem se destacam por isso. Principalmente agora, com esta "comemoração" (nós índigenas devemos comemorar?) dos 500 anos do descobrimento do Brasil, essa situação tem se tornado muito frequente.

A justificativa que se dá é que estão divulgando a nossa cultura para que se conheça mais sobre os hábitos, a estrutura social e política das aldeias. Porém, esse resultado nem sempre é alcançado. Porque o ponto de vista do cineasta acaba por ter maior destaque do que o conteúdo. Ou seja, os índios continuam como simples objetos da filmagem para despertar a curiosidade do público, que continua pouco informado sobre a situação real dos povos indígenas.

No mês de abril, devido à proximidade do Dia do Índio, assistimos à um verdadeiro festival de imagens sobre os índios, tratadas, quase sempre, de maneira totalmente superficial. O resto do ano a temática permanece adormecida. Aparentemente, para os waradzu, pouco importa o aprofundamento da questão. Como ocorre no caso da novela "A Muralha" produzida pela Rede Globo de Televisão, a representação da imagem do índio não tem consistência, é uma idéia generalizante do que seria o índio brasileiro. Mistura-se elementos de várias culturas, quando na verdade, a história contada por eles diria respeito aos Guarani, Tupiniquim, Tupinambá e Tamoio. Me pergundo o que os Xavante que aparecem na Muralha estariam fazendo lá. Na realidade nós, os Xavante, temos muito pouco a ver com tudo isso. Nós não fomos descobertos pelos Portugueses, nem tampouco fomos caçados a laço. Resistimos, isto sim, enquanto pudemos, atacando com bordunas e arco e flecha os aviões da Força Aérea Brasileira, mas isso aconteceu apenas no período do governo do Presidente Getúlio Vargas, a partir de 1930. Como se percebe nossa história é outra.

Ocorre também que quase nunca somos consultados no momento da finalização dos filmes, quando se privilegia o lado estético da imagem e se despreza o conteúdo real da representação. Por exemplo, o filme "Hans Staden" que é um festival de imagens bonitas, dá muito pouca oportunidade ao espectador de saber sobre o processo cultural ali envolvido. Também sentimos isso quando filmam o nosso ritual do Wai'a, que sem dúvida é um espetáculo de representação e de cores. Numa ocasião passada, um filme mostrando esse ritual de cura, que é coisa muito séria para nós, e que acontece apenas a cada quinze anos, foi mixado com som de rock e acabou sendo aclamado no Festival da Fotóptica.

Portanto, nós não temos domínio nenhum sobre as nossas próprias imagens. Somos o alvo desse safari fotográfico. Mesmo quando as imagens são captadas por um dos nossos cinegrafistas, após a conclusão dos trabalhos as imagens partem para a finalização na cidade, porque nós não temos o equipamento necessário, nem dominamos o processo para a edição e finalização.

A Associação Xavante Warã tenta modificar essa situação. São grandes os nossos esforços para formar pessoal Xavante capacitado para realização de vídeos. Queremos uma relação de maior igualdade na produção de imagens e controle da nossa auto-imagem. Desejamos sim, colaborar em parceria com outras instituições em projetos de vídeos e de filmes, desde que tenhamos uma participação efetiva, ativa. Estamos preparando um jovem cinegrafista, Tseretó, da aldeia Idzô'uhu, para que ele retrate a visão coletiva da comunidade, e não somente a sua visão individual. Este trabalho tem uma enorme importância para nós, pois se trata de uma forma de registrar a nossa tradição oral e cultura para as novas gerações de Xavantes. Este objetivo, na maioria dos casos, não é compartilhado pelos cinegrafistas waradzu, que filmam e editam apenas para outros waradzu.

Para que tenham domínio da sua auto-imagem, e para que o video cumpra a função social esperada, os povos indígenas precisam estar preparados para participar de todo o processo de construção de imagens. Para isso é necessario que entendam no que implica esta atuação, e tudo que ela envolve, como por exemplo nos seus aspectos legais.


Hiparidi D.Top'tiro é coordenador Associação Xavante Warã. Nasceu na aldeia de Sangradouro (MT)e vive em São Paulo de desde 1992.