Direto e preciso, Coutinho não quis fazer qualquer exposição
introdutória. Pediu aos participantes que lhe fizessem perguntas
e nas respostas falou dos tempos do CPC, de (não)teoria do documentário,
de processos de produção, sua relação com
os entrevistados, indústria audiovisual, de ilusões e
ausência delas, das produções concluídas
e do projeto em andamento, ainda sem nome e sem data para lançamento.
Confira abaixo os
principais trechos do debate:
CPC
"Cheguei da França no final de 1960, fui pro Rio de Janeiro
e lá acabei conhecendo o pessoal do CPC. Eles estavam com o projeto
do "Cinco vezes favela", eu queria trabalhar, filmar, eles
precisavam de uma espécie de produtor-gerente, eu não
sei lidar com dinheiro mas era a única forma de entrar no projeto,
então eu entrei e fiz. O CPC era muito sectário, eram
todos membros do PC, menos eu. Eles eram fechados. Mas foi uma experiência
fascinante porque juntava aquela garotada que queria produzir, fazer
alguma coisa, e fazia. Foi muito marcado pelo autoritarismo, mexia com
a arte popular revolucionária, eles queriam mesmo mudar o mundo
com aquilo alí do jeito deles. E veio o golpe. Talvez se não
tivesse vindo o golpe eles começariam a ouvir o outro, porque
eles não fizeram isto".
INDÚSTRIA?
"Lei de audiovisual eu não entendo, não quero falar
sobre isso, é muito genérico, não entendo a China
como eu vou querer falar sobre a China? Eu não acredito que o
cinema possa virar indústria aqui, tem gente que acha que vai
ganhar dinheiro com isso, eu não tenho a pretensão de
ganhar dinheiro com isso. Eu quero que as pessoas vejam meus filmes,
quero isso de estar aqui hoje discutindo e pra mim basta. A gente não
sabe porque faz cinema".
O FIO DA MEMÓRIA
"Foram três anos de trabalho, foi um processo muito doloroso
pra mim porque existia um tema e eu não gosto disso. Ter de corresponder
a uma expectativa. Eu escolho um lugar vou lá e filmo a vida
das pessoas, o que fez, casa, família, amor, vida, morte, simples
assim. Eu gosto de fazer filme sobre o que ninguém tá
querendo ver e falar, porque assim eu posso trabalhar do meu jeito sem
ter que corresponder a nenhuma expectativa externa. Eu queria fazer
um filme que fosse um fracasso, que não dê certo".
BOCA DE LIXO
"Acontece que o lixo no final das contas é mais uma estratégia
de sobrevivência. Saber as representações daquelas
pessoas que vivem alí é o que me interessa. Eu queria
eliminar a figura da pesquisa que me enche o saco, fazer um filme em
que a pesquisa fosse o filme e o lixo possibilitou isso. "Boca
de Lixo" não tem pesquisa nenhuma. Eu já cheguei
com a câmera e fui ver o que acontecia. Tudo era surpresa. Por
exemplo, tinha um cara barbudo, de 70 anos, o pessoal de lá chamava
ele de Papai Noel, eu queria falar com ele mas podia, não sei,
levar um esporro. E fui falar com ele, entregar a fotografia dele, ele
me disse que se eu tivesse tempo ele me contava 60 histórias
de tudo, do Brasil de norte à sul. Outra surpresa foi a personagem
que fugiu de mim todos os dias, mandou que eu desligasse a câmera
depois me chamou pra filmar na casa dela. Foram vinte minutos de filmagem
que deram um resultado incrível. Não tem que ficar dias,
e horas".
"EU NÃO
SOU UM TEÓRICO"
"Eu busco o espontaneo e forte, mas não vou querer discutir
teoricamente o que é isso, eu vejo no momento da gravação
se aquilo tem força ou não. Como em "Babilônia
2000" aquela menina que diz que queria arrumar aas coisas, pentear
cabelo e dissemos a ela que não precisava, e ela vira e fala
'cês querem a pobreza mesmo. É isso?' Isso tem força.
Tem menino de rua por exemplo que já tá tão acostumado
com a presença de câmera, com abordagem de jornalista e
cineasta, que sabe de longe se aquele um vai querer o tipo sofrido ou
o tipo feroz e violento, e aí dá o seu depoimento: 'eu
fui abandonado, não tenho pai nem mãe' ou 'é, eu
matei meus dois irmãos e minha tia'. Mas comigo isso não
acontece tanto porque já digo de cara que não sou da televisão,
é cinema e é documentário, eles mal sabem o que
é isso. Perde a magia que eles esperam, mas ao mesmo tempo agrada
ter uma câmera pra ouví-los. E então as pessoas
falam para a câmera, elas gostam e sai cada coisa maravilhosa".
FICÇÃO
REAL
"As pessoas vão ao cinema para sonhar. O documentário
é minoritário no cinema, e aí as pessoas querem
fazer o 'docudrama', manter o esquema.
O documentário é inacabado, imperfeito, tem que deixar
lacuna.
O filmar está presente nos meus trabalhos, o processo sempre
está presente. A câmera, a equipe, minhas perguntas. Não
tenho roteiro, tento fazer uma montagem, que é o meu roteiro,
que não seja ficcionalizante. O filme é construído
sim. É a minha interpretação daquilo lá.
Quando termiana o trabalho eu volto às comunidades, faço
exibição do filme, dou uma cópia para quem participou".
"Não quero fazer isso só pra mim, eu quero construir
algo que possa ter interesse pra alguém".
"Ao se aproximar mais do real o documentário vira ficção".
FABULAÇÕES
"Não é 'a verdade' ou 'a mentira' que interessam,
o imaginário é o que me interessa, quando a pessoa fala
que incorpora um santo e incorpora, se conta bem contado, se sabe contar,
me interessa. Vira verdade. Se a gente não conhece o imaginário
do povo como vai querer mudar alguma coisa? Eu cito Deleuze, quero 'pegar
o outro em flagrante delito de fabulação'".
ANTROPOLOGIAS
"Eu não filmo o índio porque não entendo o
índio e ele não me entende, não pego monomotor
pra chegar em lugares de difícil acesso. E o cineasta assume
uma postura ridícula de 'índio, você que é
puro e bom me responda'. A idealização é mortal
no documentário. O filmar o outro tem que levar em conta o olhar
na mesma altura e a diferença em relação ao outro.
Não tenho que fingir que sou igual à ele. O grave de querer
mudar o mundo no documentário é que o cara vai querer
mudar aquele com quem ele vai filmar. Há que se dar conta que
a neurose do intelectual é tão mágica quanto a
religiosidade do 'popular'".
PRÓXIMO
TRABALHO
"Eu vou fazer esse filme porque ninguém mais vai querer
fazer.
Filmei um prédio, aluguei um apartamento alí e o trabalho
que eu tinha de transporte era por tudo no elevador e subir alguns andares.
Uma maravilha, eu eliminei o problema da produção! A idéia
era de uma pessoa que trabalha comigo e tem um escritório de
edição num prédio, ela queria filmar um documentário
no prédio. Eu me interessei por aquilo. Fomos visitar prédios,
escolher, falar com síndicos. E eu vou tentar descobrir a vida
dessas pessoas que vivem num prédio em Copacabana de 276 apartamentos
conjugados, que era um prostíbulo e o síndico re-transformou
com umas re-formas. Não sei se por uma proximidade de classes,
identificação maior, alí não era mais a
favela, é a classe média baixa mesmo, foi uma experiência
mais gratificante que as outras, sem dúvida. O trabalho é
o horror e o não-horror de viver num lugar assim. Alí
saiu um confessionário, divã do analista, 'programa do
ratinho', melodrama de telenovela, fofoca".
(publicado em outubro de 2001)
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