A orquestra
A orquestra é uma das mais belas entidades artísticas de
nossa civilização. Através dela é possível
vislumbrar a engrenagem de dezenas ou centenas de vozes entoando num mesmo
sentido a música escrita numa partitura. Assim, num conjunto orquestral
se encerram valores de uma grande sabedoria intrínseca: A responsabilidade
de cada um em gerar harmonia para um conjunto.
Tantos instrumentos, tanta variedade de timbres, tantas funções,
e tudo soando com perfeição. Cada homem, não importa
o que toque, desempenhando da melhor maneira possível, individualmente,
sua função para que o conjunto seja belo, e represente com
maestria a Harmonia do Universo.
A palavra
orquestra tem origem grega, e significa "lugar para dançar".
Embora possa parecer estranho, devemos levar em conta que para o grego
o conceito de teatro era bem diferente, e significava ao mesmo tempo música,
poesia, dramaturgia e dança. Nas encenações de tragédias,
a orquestra era a parte do palco que fazia fronteira com o anfiteatro,
que por sua vez continha o público. Assim, por razões mais
relacionadas à disposição física do que propriamente
pelo seu significado intrínseco, é que a civilização
ocidental adotou o nome de orquestra ao conjunto instrumental que se colocava
próximo ao anfiteatro. O uso de tal denominação começou
justamente nos primórdios da renascença, quando nasceu a
ópera, e a encenação das óperas necessitava
de um conjunto instrumental, situado entre o palco da ação
e o anfiteatro. Daí o termo.
A passagem da Idade média para a Renascença representou
para a música um período de intensas e ricas transformações,
entre elas a quebra do monopólio clerical na música, em
que a escrita musical era restrita a apenas certos domínios da
igreja; podia então ser apreendida e compartilhada igualmente por
qualquer um que assim quisesse, fosse ele nobre ou plebeu. Assim, valores
musicais antes confinados tornaram-se públicos, dando início
a um grande processo de criação e expansão de gêneros
e formas musicais, advindas da mescla entre tradições populares
orais e a escrita musical eclesiástica. Não que não
houvesse música popular antes; sempre houve, mas com pouca ou nenhuma
mistura de gêneros e influências.
A Ópera representou a primeira união de tendências
(ver o texto sobre ópera), a reunião
de temas míticos e heróicos (retomada e releitura do ideal
da tragédia grega) postos num espetáculo que já podia
ser chamado 'multimídia', de amplo alcance, apreciado pelas mais
diferentes culturas e classes sociais. Assim, pela primeira vez foi preciso
que os músicos pensassem numa distribuição instrumental
mais complexa que a habitual.
Antes da ópera, a música 'oficial' nas cortes era religiosa,
cuja formação instrumental resumia-se a um órgão
que acompanhava cantores, solistas ou coros. Ainda que o órgão
era já uma sofisticação, pois que no séc.
XI nenhum instrumento poderia acompanhar as vozes. Eventuais menestréis
e companhias itinerantes animavam os festejos feudais com aquilo que seria
a música popular, que então usavam instrumentos muito peculiares,
muitos dos quais evoluíram aos instrumentos modernos.
A formação
instrumental diversa foi uma necessidade que a ópera pela primeira
vez materializou; e como não existia uma tradição
instrumental naquela música antes oficial, a mescla de timbres
foi o primeiro grande desafio dos compositores. No início, não
havia um padrão para a distribuição dos instrumentos
e nem mesmo algo que determinasse a quantidade e a diversidade deles.
As primeira óperas eram orquestradas com uma variedade estranhíssima
de timbres e o uso constante deles acabou por mostrar, na prática,
a forma mais eficiente de equilibrar uma massa instrumental diversificada.
A título de exemplo, uma lista de instrumentos típica da
Renascença, para a ópera de Claudio Monteverdi, Orfeo
(1607):
2 cravos
2 violas contrabaixo (equivalente ao contrabaixo acústico moderno)
Grupo de 10 cordas (provavelmente os violinos, violas e cellos)
1 harpa dupla
2 violinos piccolo
2 alaúdes-baixos
2 órgãos portáteis de tubos de madeira
3 violas da gamba
4 trombones
1 órgão de palheta
2 trombetas (o moderno trompete)
1 flauta doce
1 clarino (trompete agudo)
Temos claramente um exemplo de uma mistura de timbres bastante incomum;
diríamos até moderna, apesar de muitos destes instrumentos
não mais existirem atualmente, ainda que possam ser substituídos
por timbres similares ou reconstituídos por lutieres (artesão
que fabrica instrumentos) especializados.
A formação timbrística projetada pela ópera
despertou o interesse pela música puramente instrumental, e que
também começou a ser cultivada pela aristocracia e nobreza,
aparecendo nestas classes a figura do mecenas, ou o patrocinador
da arte. Um pouco da mescla da música popular com a música
escrita - que era justamente o diferencial entre ambas - tornou a música
erudita, de gosto refinado por conter elementos simples ao gosto do público
mas de discurso elaborado, de lógica mais complexa e caráter
nobre. O gênero instrumental foi um dos mais cultivados no período
Barroco, que explorou largamente diversas combinações
instrumentais, assim como vocais na ópera.
típica
orquestra barroca, por volta de 1700. Os músicos se reuniam
em volta do cravo contínuo em salões reais
|
No
barroco, a variedade dos instrumentos, considerando apenas a música
puramente instrumental, diminuiu sistematicamente, até o mínimo
possível. Em parte para poder ser apreciada em salões
dos palácios, que possuíam alguns entraves acústicos,
e em parte por que não havia necessidade de muito volume sonoro,
uma vez que o espaço e o público eram restritos. A ciência
musical incluía a acústica, e os compositores conheciam
suas leis, ainda que intuitivamente. |
Assim, temos a seguinte distribuição de elementos: (O exemplo
é da Suíte para Orquestra no.4 de J.S. Bach (1685-1750)):
2 oboés
2 fagotes
2 trompetes
2 tímpanos
cordas e contínuo (acompanhamento do cravo)
Entretanto, não havia nenhum padrão que definisse exatamente
quais instrumentos seriam designados para cada obra. O único consenso
eram as cordas. Em quase toda a música barroca a formação
instrumental tinha como imprescindível a presença de uma
seção de violinos, violas, violoncellos ou violas da gamba
e por vezes um violone, ou rabecão, hoje conhecido por contrabaixo.
Foi muito conhecida por esta época, a orquestra do rei Luis XIV
da França, comandada por Jean-Baptiste Lully (1632-1687).
Era chamada "os 24 violinos do Rei", e contava por vezes com
o apoio de uma outra orquestra de 10 oboés e 2 fagotes.
A escolha dos instrumentos variava segundo a disponibilidade da orquestra
ou conjunto que iria tocá-la (a partir da encomenda do mecenas),
das condições acústicas, e algumas vezes até
do pedido expresso do Rei ou nobre que encomendou a obra. Os compositores
só tinham liberdade de escrita quando escreviam por conta própria.
O compositor alemão Georg Friedrich Haendel (1685-1759),
por exemplo, teve algumas encomendas do rei da Inglaterra que o fizeram
pensar seriamente na maneira de orquestrar sua obra: pediu-lhe o Rei uma
música que fosse tocada enquanto queimavam os reais fogos de artifício
em comemoração pelo fim da Guerra da Sucessão Austríaca.
O problema é que o barulho dos fogos encobriria o som de uma orquestra,
ao que acrescenta o fato de que seria ao ar livre. Haendel não
teve dúvida, orquestrou sua obra, a Royal Fireworks Music,
com uma imensa quantidade de instrumentos de metal (trompetes, trompas
e trombones) e percussão, para fazer o som mais audível
possível, além das madeiras habituais (oboés, flautas
e fagotes) mas sem cordas! Haendel não agüentou e fez uma
versão para salas fechadas, desta vez com número menor de
instrumentos e com a seção de cordas completa.
Por essa época, passagem do séc. XVII para o XVIII, era
muito comum o acompanhamento do cravo, instrumento de teclado muito suave
e sem dinâmica, para reforçar a harmonia produzindo harpejos
e floreios em cima da melodia. Esta prática, chamada de contínuo,
ou cravo contínuo, estendeu-se até por volta de 1780.
Mas ainda em meados do séc. XVIII, uma significativa mudança
de ordem estética renovou alguns conceitos do estilo musical na
Europa de maneira muito abrangente. Devido à evolução
no estilo, na instrumentação e nas produções
das óperas, que na época eram as referências musicais
mais importantes, a orquestra ganhou um equilíbrio diferente, que
também foi reproduzido nas salas de concertos dos palácios
e casas da nobreza. Era a música Clássica. Muitos
instrumentos passaram a ser exigidos com mais freqüência que
outros, o que acabou por determinar a formação clássica
de uma orquestra, dividida entre cordas (violinos, violas, violoncelos
e contrabaixos), madeiras (flauta, oboé, clarinete e fagote), metais
(trompa, trompete) e percussão (tímpanos) e que acabou por
ser disposta da seguinte maneira:
8
ou 10 primeiros violinos
6 ou 8 segundos violinos
4 ou 6 violas
4 ou 6 violoncelos
2 ou 4 contrabaixos
2 flautas
2 oboés
2 clarinetes
2 fagotes
2 trompas
2 trompetes
2 tímpanos |
Orquestra
de Câmara de Dresden, numa formação típica
do classicismo
|
Essa formação
advém de uma necessidade expressiva com conflui com a mudança
de estilo (do barroco para o clássico, que é menos rebuscado,
mais objetivo e temático), a disposição nas partes
instrumentais da ópera (abertura e intermezzos) e também
pelo início de construções apropriadas para aproveitar
todo o potencial acústico dos instrumentos. O salão dos
palácios dá lugar às salas de concerto, ainda salões
adaptados, mas já pensando num fim exclusivo de apreciação
musical (antes, nos salões, os nobres conversavem a comiam enquanto
os músicos tocavam - Mozart foi um dos primeiros a se rebelar contra
isso e recusava-se a tocar para quem não estivesse atento à
música).
E, pela primeira vez, apesar de variantes mínimas, foi possível
estabelecer um padrão comum à disposição instrumental,
o que permitia uma mobilidade muito maior de obras, ou seja, uma obra
poderia ser tocada sem perdas por qualquer orquestra da Europa. Esse padrão
é normalmente atribuído a Joseph Haydn (1732-1809),
chamado também o 'pai da Sinfonia' (escreveu 104 delas), pois,
embora não tenha sido ele propriamente seu inventor (e sim um conjunto
de compositores, incluindo ele, a formar um padrão de equilíbrio),
ele foi o maior responsável pelo desenvolvimento e consolidação
deste estilo, enquanto gênero e forma. Podemos citar outro compositor,
menos conhecido, mas que também contribuiu para que esta formação
se consolidasse, por seu equilíbrio perfeito e combinação
harmoniosa: Johann Stamitz (1717-1757), que pôde desenvolver
essa formação graças à direção
de uma orquestra muito famosa em sua época, a Orquestra de Mannheim.
Este conjunto era considerado o melhor de toda a Europa, e referência
para todas as demais.
Frontispício
da 1a. edição da Sinfonia no. 31 em ré 'Paris'
de Mozart. Notar a típica orquestração clássica
de instrumentos aos pares
|
Todas
as últimas sinfonias de Haydn, as primeiras de Schubert e Beethoven
e de uma série de outros pré-românticos, como
Mendelssohn, utilizam-se desta formação. Mas existem
muitas variantes. Mozart, por exemplo, não usa o clarinete
nem os tímpanos em muitas de suas sinfonias. São casos
isolados, entretanto. O fim do período clássico já
aponta para as tendências românticas, pois na medida em
que instrumentos novos iam sendo criados, ou antigos eram aperfeiçoados,
os compositores imediatamente absorviam estas mudanças e utilizavam
todos os recursos disponíveis em suas obras. |
O Romantismo
foi um movimento estético cuja origem é didaticamente atribuída
a Ludwig van Beethoven (1770-1827), por acrescentar à música
valores e caráteres antes nunca pensados em termos musicais. O
aumento da expressividade através de dinâmicas contrastantes,
ritmos e timbres marcados e definidos, além de uma sutileza narrativa
ímpar, fizeram de Beethoven o porta-voz de um novo pensamento musical.
Do ponto de vista da orquestra, o romantismo foi o responsável
direto pela saída da música das cortes reais e salões
aristocráticos para os teatros e as salas de concerto, acessíveis
a um número muito maior de pessoas, nobres e plebeus. Com isso,
o pequeno espaço dos palácios antes destinado à uma
pequena formação clássica, deu lugar agora a grandes
teatros, que não só precisavam mas também pediam
uma potência sonora maior. Beethoven começou, pela própria
necessidade desta potência, a acrescentar instrumentos: a orquestra
romântica começou aumentando as cordas e os metais: 14 primeiros
violinos, 12 segundos, 8 violas, 8 cellos e 6 contrabaixos, além
de 4 trompas ao invés de duas. O romantismo foi o grande responsável,
ao acrescentar a dimensão dramática à música,
por desvincular totalmente a música instrumental da ópera,
fazendo delas duas instâncias muito diferentes. Foi justamente a
partir do final do classicismo que ambas tomam rumos diferentes.
No romantismo, outros compositores, compartilhando de idéias similares
ou mesmo pensando em expressar uma nova dimensão musical - a potência
sonora - como recurso estético, partiram em busca de novas combinações
instrumentais.
Foi então que, por volta de 1830, o compositor francês Hector
Berlioz (1803-1869) escreveu o primeiro estudo sistemático
de como se devia compor uma massa orquestral que suprisse a necessidade
sonora do romantismo. O Tratado de Instrumentação e Orquestração
de Berlioz ainda hoje é uma fonte riquíssima de consulta
timbrística, tanto para estudar as possibilidades individuais de
cada instrumento (que ele chamou instrumentação) quanto
seu conjunto (a orquestração, propriamente). Para Berlioz,
a orquestra ideal deveria ter nada menos que:
21
primeiros violinos
20 segundos violinos
18 violas
15 violoncelos
10 contrabaixos
4 harpas
4 flautas
3 oboés
3 clarinetes
4 fagotes
4 trompas
4 trompetes
3 trombones e 1 trombone-baixo
1 tuba
8 tímpanos
1 bumbo
1 par de pratos |
Hector
Berlioz (1803-1869)
|
Ele ainda
sugere uma outra orquestra para fins festivos, que começa com 120
violinos (!), e inclui 30 harpas e 30 pianos de cauda. Bom, essa orquestra
nem mesmo ele foi louco o suficiente para exigir, se bem que tenha chegado
bem próximo em seu Réquiem op.5. Sim, Berlioz é
o culpado de toda a extravagância das grandes orquestrações
de Wagner, Mahler e Richard Strauss no pós- romantismo. Mas seus
esforços e delírios foram muito bem embasados, tanto na
teoria quanto na prática, onde construiu obras de impressionante
equilíbrio orquestral, considerando o tamanho do contingente exigido.
Os princípios por ele enunciados do equilíbrio e uso da
grande orquestra lhe valeram o título de "Pai da Orquestração"
e fundador da orquestra moderna. Aquilo a que hoje entendemos por "orquestra"
é criação dele, e todos os conjuntos instrumetais
anteriores, clássicos, barrocos e renascentistas, são por
isso, 'música de câmara'.
Muitos fatores influenciaram tais recursos estéticos: o limiar
entre o séc. XVIII e XIX foi a era das grandes revoluções,
onde se inserem grandes movimentos científicos e sociais, como
a Revolução industrial inglêsa e a Revolução
burguesa na França. A filosofia contava com nomes de peso, como
Kant e os iluministas, Rousseau, Diderot, Voltaire, a literatura renova-se
com Goethe, Schiller, Hoffmann, pouco mais tarde Tolstói. A marca
da expressividade de caráter, como se a música se tornasse
um personagem, a saída para grandes salas de concerto, antes só
destinadas à ópera, fizeram da música romântica
um enorme gênero, de imensas proporções, variantes,
estilos, particularidades.
Em termos de orquestração, o romantismo se valeu principalmente
de avanços tecnológicos: Antes os trompetes e as trompas
eram 'naturais', ou seja, só emitiam uma série de notas
de acordo com sua construção, os harmônicos da nota
fundamental. Com a invenção das chaves que possibilitavam
a mudança do tamanho do tubo, estes instrumentos puderam tocar
todas as notas, e tornaram-se porta-vozes de novas combinações
melódicas. Beethoven já havia incluído o trombone,
mas as tubas, grandes instrumentos graves de metal, antes destinados às
bandas militares (ao ar livre era necessário um instrumento grave
de grande potência sonora), passaram também a ser incluídos
na orquestra. Todos os primeiros românticos, como Schubert,
Schumann e Weber, procuraram seguir o modelo orquestral
de Beethoven.
Richard
Wagner (1813-1883) precisou esperar a música se desvincular
da ópera para poder uní-las novamente no ideal estético
grego, a obra de arte total. Para isso, desenvolveu o drama musical,
espécie de ópera cuja narrativa é sinfônica,
e a orquestra um personagem, tanto quanto os cantores. Valendo-se
das experiências de Berlioz, quem muito admirava, imaginou novas
possibilidades de timbres baseado no ideal dramático que precisava
representar. Para tanto, precisou ele mesmo projetar e mandar construir
instrumentos específicos, variações de trompas
e tubas, para poder representar suas idéias - extravagantes
e geniais. Sua obra mais conhecida, o Anel dos Nibelungos,
utiliza-se de um grande número de trompas (8), além
de tubas tenor, 3 a 4 tompetes, 4 trombones, tubas contra-baixo, e
6 harpas. |
Wagner
|
A partir
de Wagner a orquestra nunca mais será a mesma. O romantismo a esta
altura, por volta de 1840, já possui muitas facções.
A música antes restrita ao eixo Alemanha - França - Itália
é descoberta por compositores de diversos países, que unem
sua tradição folclórica à escrita erudita,
iniciando a escola Nacionalista. O primeiro representante foi Fréderic
Chopin (1810-1849) na Polônia, e seguiu-se Franz Liszt
na Hungria (inventor do poema sinfônico), e em vários outros
países do norte e leste europeu: na Tchecoslováquia, Smetana
e Dvórak, na Rússia, Tchaikovsky, e o 'grupo
dos cinco', formado por Rimsky-Korsakov, Mussorgsky, Borodin,
Balakirev e Cui. Na Noruega, Edvard Grieg, na Finlândia,
Jean Sibelius.
A Alemanha reagiu com um compositor neo-clássico, cujas idéias
musicais eram materializadas por orquestras muito menores que as wagnerianas
e suas variantes: Johannes Brahms (1833-1897) foi um caso à
parte, pois conseguiu ser extremamente romântico sem nenhum exagero
na potência sonora. Apesar de usar orquestras maiores que as de
Beethoven, em comparação com Wagner a orquestra de Brahms
é clássica, reagindo a excessos que considerava musicalmente
inócuos.
A morte de Wagner representou também, principalmente na Alemanha
e Áustria, o fim do romantismo. Apesar deste movimento esteticamente
se manter em outros lugares, se expandindo para países latinos
e para a América, em seu berço ele já apresentava
sinais de saturação. Wagner levou a narrativa sinfônica
a graus nunca antes imaginados de intensidade e duração,
assim como de potência sonora. Os compositores que o seguiram diretamente
foram Anton Bruckner (1824-1896) Gustav Mahler (1860-1911),
e Richard Strauss (1864-1949). Eles representam o pós-romantismo,
fase a que coube a responsabilidade de trazer toda a bagagem de uma imensa
tradição musical para o século XX, e dar condições
para o desenvolvimento da música moderna. Tais compositores exploraram
todas as possibilidades combinatórias instrumentais possíveis
neste universo, desde o domínio das formas acadêmicas à
ruptura e combinações inéditas de timbres, sendo
considerados os ápices de toda a tradição orquestral
da música no ocidente.
A título de comparação, vamos analisar a orquestração
de 4 obras, duas clássicas já bastante avançadas,
e duas representantes deste período pós-romântico:
Beethoven:
3a. Sinfonia <Eroica> |
Beethoven:
9a. Sinfonia |
Mahler:
2a. Sinfonia <Ressurreição> |
R.
Strauss: Eine Alpensinfonie |
2
flautas
2 oboés
2 clarinetes em Sib
2 fagotes
3 trompas
2 trompetes
2 tímpanos
Cordas (Violinos I, II, violas, cellos e baixos) |
1 piccolo
2 flautas
2 oboés
2 clarinetes
2 fagotes
1 contrafagote
4 trompas
2 trompetes
3 trombones
2 tímpanos
triângulo
pratos
bombo
Cordas (Violinos I, II, violas, cellos e baixos)
Soprano solo
Contralto solo
Tenor solo
Baixo solo
Coro Misto (SCTB)
|
4 flautas
(alternando com 4 piccolos)
4 oboés (alternando com 2 cornes-ingleses)
3 clarinetes em Sib (alternando com 1 clarinete-baixo)
2 clarinetes em Mib
3 fagotes
1 contrafagote
10 trompas
8-10 trompetes
4 trombones
1 tuba contrabaixo
7 tímpanos
2 pares de pratos
2 triângulos
caixa clara (se possível mais de uma)
Glockenspiel
3 sinos
2 tam-tams
2 bombos
2 harpas
órgão
Cordas (Violinos I, II, violas, cello, baixos com dó grave,
todos em maior número possível)
Soprano solo
Contralto solo
Coro Misto (SCTB)
|
4
flautas (alter. com 2 piccolos)
3 oboés (alt. com 1 corne-inglês)
1 Heckelphone
1 Clarinete em Mib
2 Clarinetes em Sib
1 clarinete-baixo
3 fagotes
1 contrafagote
4 trompas
4 tubas tenor (alternando com 4 trompas)
4 trompetes
4 trombones
2 tubas
2 harpas
órgão
máquina de vento
máquina de trovão
Glockenspiel
pratos
Bombo
caixa clara
triângulo
sinos de vacas
gongo
celesta
8 tímpanos
18 violinos 1,
16 violinos 2,
12 violas,
10 cellos
8 contrabaixos
Fora do palco:
12 trompas
2 trompetes
2 trombones |
Caricatura
satirizando as extravagâncias sinfônicas de Richard
Strauss (no topo, regendo)
|
Basta
ver a tabela de orquestração para ver em que pé
de excentricidade o pós-romantismo alcançou. Richard
Strauss (que nada tem em comum com o Johann Strauss das valsas) foi
o mais criticado por suas exigências, sendo frequentemente atacado
pela crítica por sua obra `oca´e maquiada pela potência
sonora. Mas atualmente, não se pode negar a extrema habilidade
de Strauss em extrair de um gigantesco contingente instrumental uma
sonoridade pura e nítida.
Já os russos, Borodin, Mussorgsky, Tchaikovsky
e Rimsky-Korsakov (autor de outro tratado de orquestração,
posterior ao de Berlioz, mais sintético e menos extravagante),
preferem a percussão mais variada, com instrumentos mais exóticos.
Há de se mencionar também o talento nato de Tchaikovsky
para distribuir timbres de suas melodias, fazendo de suas obras verdadeiras
´aulas de orquestração´(segundo Shostakovich).
|
Os franceses
Maurice Ravel (1875-1937) e Claude Debussy (1862-1918) também
seguem a premissa russa. Ravel é também um caso à
parte, por que embora não se utilize de orquestras tão grandes
quanto as alemãs, era um orquestrador extremamente hábil,
que extraía resultados magníficos de um conjunto bastante
sintético. Sua maior virtude e originalidade no uso de timbres
era a combinação rítmica. Ravel trabalhava os timbres
da orquestra ritmicamente, e com isso acrescentava uma diversidade de
combinações tão grande que temos a impressão
de que suas orquestras são maiores do que realmente são,
apesar de grandes. Stravinsky, por essa habilidade minuciosa, apelidou-o
de 'relojoeiro suíço' da orquestração.
É importante salientar que o padrão romântico normalmente
descrito como sendo o número correto de instrumentos a ser utilizados
é raramente satisfeito. Isso se dá por que, principalmente
no romantismo e nos períodos posteriores, as obras eram orquestradas
em função das necessidades "pessoais" de cada
obra. O compositor deveria ter apenas o bom senso de, após o estudo
dos fundamentos acústicos e da formação clássica
da orquestra, equilibrar corretamente as potências e os timbres
para obter o melhor resultado previsto possível. A orquestra romântica
tem, portanto, uma grande diversidade de formações, pois
não há um número padronizado de instrumentos, variando
segundo o gosto e a necessidade do compositor.
Entretanto podemos, de maneira didática, dividir a orquestra romântica
em 4 formações:
Orquestra reduzida: São remanescentes da formação
clássica padronizada, apesar de incorporarem recursos extras mais
próximos do modelo de Beethoven. Possuem de 60 a 80 músicos
e em geral são formadas por madeiras a 2 (2 flautas, 2 clarinetes,
2 oboés e 2 fagotes), 2 ou 4 trompas, por vezes 1 ou 2 trombones
ou ainda um metal grave (tuba ou o antigo ophicleide, que já não
existe mais), além das cordas por vezes mais numerosas e percussão
variada (em geral par de tímpanos, triângulo ou pratos).
Ex. : Sinfonias de Mendelssohn (3a. 'Escocesa' e 4a. 'Italiana'), últimas
sinfonias de Schubert e concertos de Brahms, Schumann, Mendelssohn.
Orquestra Standard: Formação mais comum, visto que
correspondem aos ideais românticos de diversidade timbrística,
principalmente no acréscimo de instrumentos de percussão
e metais: madeiras a 2, por vezes com inclusão de flautim e contrafagote,
4 trompas, 2 trompetes, 3 trombones, 1 tuba, mais cordas (incluindo por
vezes a harpa) e percussão variada, como prato, triângulo,
bumbo, caixa clara, e tímpanos. Em geral são orquestras
que variam de 80 a 90 músicos. Ex.: 4 Sinfonias de Brahms, 6 Sinfonias
de Tchaikovsky, primeiras 4 sinfonias de Bruckner, Sinfonias de Dvórak,
aberturas e Sinfonia Fantástica de Berlioz, poemas sinfônicos
de Liszt, 'La Mer' de Debussy, 'Boléro' de Ravel
Grandes Orquestrações: São privilégio
de grandes orquestradores, que conseguem unir a fluidez melódica
com a ciência de exploração de timbres sem que se
perca o fio narrativo. Poucos conseguiram com maestria. Exigem mais de
100 elementos para sua execução e costumam se valer de propriedades
acústicas específicas destas formações, obtendo
assim efeitos sonoros extraordinários, catarse estética.
Há enorme perda desta catarse quando uma obra destas é ouvida
em locais inadequados acusticamente ou em gravações de qualidade
duvidosa.
A grande orquestração é composta de 100 a 120 elementos
e tem em geral: madeiras a 4 ou a 5, por vezes incluindo clarinetes-baixo,
requinta e saxofones, além dos habituais flautins e contrafagotes.
Além disso, dispõe de 6 a 8 trompas (em raras ocasiões
mais), de 3 a 6 trompetes, 4 trombones e 1 ou 2 tubas. Ao enorme contingente
de cordas acrescenta-se 1 ou 2 harpas, por vezes órgão e
uma grande quantidade de percussão, incluindo os habituais pratos,
triângulos e bumbo, mas com 4 a 8 tímpanos, celesta, carrilhão,
tan-tan, glockenspiel, xilofone, caixa clara, máquina de vento
e mais o que a imaginação mandar.
Há obras neste quesito que também incluem timbres vocais,
não somente solistas mas também grandes coros . Ex. : Sinfonias
de Mahler: 1a.('Titan'), 2a. ('Ressurreição'), 3a., 5a.,
6a., 7a, e 9a.; Poemas tonais de Richard Strauss: 'Also Sprach Zarathustra',
'Don Juan', 'Till Eulenspiegel', 'Uma vida de Herói'; Holst: 'Os
Planetas'; Stravinsky: 'A Sagração da Primavera', Wagner:
'O Anel dos Nibelungos', 'Tristão e Isolda'; Ravel: 'Daphnis et
Chloé'
Imensas Orquestrações: São raras e muito caras.
Em geral utilizam-se de mais de 150 músicos (podendo chegar até
a 200) mais grandes coros ou solistas vocais. Produzem efeitos sonoros
monstruosos em salas de concerto, mas raramente têm méritos
musicais superiores às grandes orquestrações. Na
maioria das vezes, apenas preenchem quesitos de massa sonora, por vezes
exageradamente. Possuem a mesma formação das Grandes orquestrações,
mas com a número de executantes aumentado (Ao invés de 6
trompas, 12; ao invés de 4 flautas, 6).
Ex.: 'Réquiem' de Berlioz (exige, por exemplo, 16 tímpanos);
'Eine Alpensinfonie' de Richard Strauss (exige, por exemplo, 20 trompas),
'Gurrelieder' de Schoenberg, Oitava Sinfonia de Mahler ('dos Mil'), Sinfonia
'Gótica' de Havergal Brian.
Pode-se ainda classificar
uma orquestra para fins festivos, orquestras especiais feitas sob encomenda
para execuções destinada a grandes multidões, em
geral ao ar livre, e comemoram algum fato extraordinário. Possuem
versões reduzidas para orquestra Standard para serem executadas
nas salas de concerto.
Ex.: Sinfonia Fúnebre e Triunfal de Berlioz; Abertura 1812 de Tchaikovsky
Assim nasceu uma nova forma de classificar determinados compositores,
segundo a potência sonora. Muitas vezes esse quesito é confundido
com habilidade em orquestrar. São coisas distintas; uma coisa é
escrever boa música para poucos ou muitos instrumentos, outra coisa
é escrever música ruim para poucos ou muitos instrumentos.
Uma boa maneira de ilustrar isso é citar Brahms, que, caso se aventurasse
a compor para orquestras tais como as de Wagner ou Mahler, certamente
teria grande parte de seu material semântico riquíssimo,
a clareza e objetividade das idéias, prejudicado pelo excesso de
timbres. Mas, felizmente, como Brahms possuía um bom senso musical
inegável, soube tirar da formação orquestral clássica
resultados de expressividade incomparáveis. Do outro lado, citam-se
os chamados "grandes orquestradores", que tinham um talento
para escrever música com números elevados de instrumentos
sem perderem-se no emaranhado harmônico, melódico e timbrístico
que tal contingente normalmente causaria aos desprovidos deste talento.
Estes mestres da orquestração foram Berlioz, Wagner, Liszt,
Tchaikovsky, Mahler, Richard Strauss (talvez o melhor deles), Ravel, Elgar,
Rimsky-Korsakov e Stravinsky. Hoje em dia este critério pode ser
revogado, porque, afinal de contas, Debussy, ou até mesmo Brahms,
que nunca usaram orquestras muito grandes, foram extremamente hábeis
no uso contido de instrumentos. Sob este aspecto, não ficam nada
a dever aos grandes orquestradores. O próprio Beethoven pode ser
considerado um grande orquestrador para os padrões clássicos.
Mas, no quesito potência sonora, tal classificação
ainda pode ser de alguma valia.
A suntuosa
Orquestra Filarmônica de Berlim, atualmente regida por Simon
Rattle, é considerada a melhor orquestra do mundo, por sua
excelência técnica e sonoridade poderosa, percorrendo
com segurança e desenvoltura todas as nuances dinâmicas
de uma partitura
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Após
o período romântico e pós-romântico (a passagem
do séc.XIX para o XX), a chamada música moderna entrou em
cena. O que havia sido a ópera na formação e desenvolvimento
da orquestra no séc. XVI e XVII, foi no séc. XX feito através
do Ballet. A formação instrumental, com exceção
dos compositores que já vinham da tradição anterior
(ou os que a absorveram totalmente), se deu com as encomendas que grandes
companhias de ballet fizeram aos compositores modernos. A mais conhecida
e famosa foi a Companhia de Ballets russos de Sergei Diaghilev, para quem
Igor Stravinsky escreveu O Pássaro de Fogo, Petruschka
e A sagração da Primavera; Ravel Daphnis et Chloé,
Debussy Jeux, El sombrero de Tres Picos de Manuel de Falla,
Parade de Erik Satie, entre outros. O mundo da coreografia, foi,
portanto, uma das principais correntes que nortearam os padrões
da orquestra no início do séc. XX. Os padrões, de
um grande número de instrumentos segundo a tradição
pós-romântica, foi naturalmente caindo, primeiro pelo enorme
custo de grandes produções (já não havia mais
o antigo mecenas, nobre ou imperador), e depois pela necessidade estética
de adentrar novos universos nos campos da harmonia e timbres que não
fazia mais necessária a intensidade sonora em termos de volume.
Com algumas exceções, a tendência geral da música,
principalmente depois da Primeira Guerra, foi a de conter o número
de instrumentos. Escreveu-se muito para formação clássica
e ainda mais para formações camerísticas. Com a chegada
das estéticas neo-vanguardistas do pós- Segunda Guerra,
como música concreta, aleatória, eletrônica, minimalista,
etc., a tendência foi manter a orquestra resumida. Aliás,
muito pouca música para este tipo de formação foi
produzida, se compararmos com a produção anterior. Os compositores
exploraram formações completamente diferentes, como por
exemplo Carl Orff, que apesar da famosa Carmina Burana ser
para Grande Orquestra, escreveu uma estranhíssima obra chamada
'Antigonae', baseada em Sófocles, sem harmonia nem melodia,
apenas ritmo, feito por uma orquestra de pianos, harpas, oboés
e percussão. A busca por efeitos inusitados, mescla de timbres
ao sintetizador e preparação acústica específica
de instrumentos (como John Cage e sua sonata para 'Piano Preparado'),
fizeram basicamente os objetivos da música do século XX
no que diz respeito ao timbre. Mas, neste aspecto, já estamos longe
do que representa o termo 'orquestração' propriamente.
Orquestração, portanto, é uma arte que pode ser aplicada
a qualquer formação instrumental diversa e que conta com
um único critério determinante em sua composição:
o Equilíbrio . Assim como a forma-sonata representa o equilíbrio
estrutural, arquitetônico da obra, a orquestração
representa, para a obra sinfônica, - me permitam a comparação
culinária - o tempero e a maneira de preparar o prato, que, no
caso, corresponde ao discurso musical. Cada instrumento tem uma personalidade
intrínseca e seu conjunto sonoro é uma reunião determinada
de ingredientes misturados para alcançar um objetivo palatável
e digerível. Considerando os ingredientes como o material semântico,
a melodia, harmonia, ritmo e andamento, a orquestração é
o modo de preparar e o acréscimo das especiarias que darão
gosto ao discurso musical. Um bom chef de cozinha sabe variar os temperos
e a maneira de misturar a massa para obter diferentes sabores. Este é
o orquestrador.
Voltando ao planeta Terra, concluo adicionando mais um pequeno detalhe
sobre o equilíbrio instrumental: Sua disposição física
no palco. O posicionamento destes instrumentos num palco de salas de concerto
também é um fator relevante para o equilíbrio da
massa sonora produzida, e deste modo, a formação clássica
também se ocupou de padronizar sua disposição, considerando,
ainda que intuitivamente por parte de muitos compositores, leis físicas
elementares: instrumentos de maior ressonância acústica vão
ficando para trás, e de menor ressonância, para frente, indo
progressivamente dos mais suaves aos mais fortes. Por essa razão
é que as cordas (violinos I e II, violas, cellos e contrabaixos)
encontram-se no primeiro plano do palco, seguidos pelas madeiras (flautas,
oboés, clarinetes e fagotes), metais (trompas, trompetes, trombones
e tuba - esta seção é anedoticamente chamada de "cozinha"
da orquestra), e lá no fundo, a artilharia da percussão,
que não precisa fazer muito esforço para produzir um barulho
considerável. Este esquema retrata bem a disposição
mais comum numa orquestra moderna, apesar de, a critério do maestro,
ela possa mudar:
copyright©2002
Filipe Salles
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