Dissertação de Mestrado - Filipe Salles - 24/06/2002

3. FANTASIA E SUAS ORIGENS

3.1. A música e o cinema de animação


Uma das linguagens visuais mais trabalhadas conjuntamente com a música é o cinema, cuja semelhança de suporte em eixos temporais de manifestação favorece uma associação termo-a-termo de seus elementos, como dinâmica, altura, rapidez de movimento, etc. Mas a trilha sonora propriamente dita pressupõe a subordinação da música à ação dramática da imagem. Entretanto, isso nem sempre acontece no gênero da animação cinematográfica, podendo este, tratar - como o fez inúmeras vezes - a música como narrativa, gerando algumas correntes estéticas específicas para este fim. Convém esmiuçar o potencial que há no cinema de animação frente à música. Isso, claro, assim como na história do cinema, nos remete às suas origens, uma vez que também a animação nasceu sonora. Donald Crafton, em sua história da animação Before Mickey, também faz alusão a Reynaud como "O pai do desenho animado". (Crafton 1982:6), considerando suas experiências com o praxinoscópio e a projeção destas pantomimas luminosas com acompanhamento de música original, por volta de 1830. Após o nascimento oficial do cinema, isto é, 28 de dezembro de 1895, o maravilhamento geral da conquista pelo simulacro do movimento deixou a animação, que outrora reinava como cinema (teatro de sombras, lanterna mágica, praxinoscópio), relegada a uma pequena fase de latência. Embora possamos considerar as experiências pioneiras de Georges Méliès como primórdios do cinema de animação, ele ainda era um gênero sem identificação própria, por ser usado, nestes filmes, como efeitos mágicos e trucagens mais próximas da prestidigitação (do qual Méliès era mestre) do que de uma linguagem específica.

Portanto, àquilo que chamamos propriamente animação, em seu pleno sentido cinematográfico de filmagem em diversas técnicas, só ficou conhecida do grande público com a produção da companhia americana Vitagraph de 1907, The Haunted Hotel, dirigido por James Blackton. Primeiramente, pela facilidade de distribuição que uma grande companhia americana possuía, diversamente de pequenas companhias européias ou mesmo animadores experimentais isolados, e, em segundo, por ser a primeira filmagem de animação cuja verossimilhança (cf. Crafton) não pretendia fazer alusão aos mesmos paradigmas dos filmes representados. Em outras palavras, era um cinema de animação que se propunha a ser cinema de animação, diferentemente dos demais filmes que utilizavam a animação para fins de trucagens e efeitos especiais, tais como os filmes de Méliès e Edwin Porter. Para os realizadores, este gancho receptivo do público foi absolutamente fundamental, pois era uma verossimilhança fantástica, onde todo o potencial poético e mágico da imaginação ganhava ares de liberdade, de maneira diferenciada e própria, criando assim uma linguagem específica.

O filme de Blackton ainda se utilizava de uma técnica ainda hoje conhecida como quadro-a-quadro (stop motion), com objetos reais animados, e não com desenhos, que seria a animação em table-top. Enquanto diversos realizadores percorreram os mesmos caminhos do The Haunted Hotel no vácuo de seu sucesso, na França, Émile Cohl (1857-1938) foi o primeiro a desenvolver a técnica do desenho, o animated cartoon. Seu primeiro filme, Fantasmagories, feito em 1908 para a companhia Gaumont francesa, é considerado o primeiro 'desenho animado' propriamente dito da história do cinema (Crafton, 1982:60). O sucesso deste gênero não ocorreu exclusivamente pelo potencial de liberdade imaginativa, mas também pelas primeiras fontes de inspiração desta arte, os cartuns e histórias em quadrinhos publicados em periódicos diversos desta época, como Little Nemo (1911) e, mais tarde, o Gato Félix (1919).

Os traços dos primeiros filmes de Cohl eram bastante rudimentares e simples, pela necessidade técnica de desenhar todos os quadros do filme um por um com absoluta precisão, ainda que, nesta época, o segundo cinematográfico equivalesse a apenas 16 fotogramas. Somente em 1914 é que o animador norte-americano Earl Hurd introduziu o desenho sobre folhas de celulóide transparente (atualmente é utilizado o acetato), o que possibilitou a inclusão de diversos movimentos de personagens sobre um fundo único, diminuindo substancialmente o trabalho do animador e fazendo a arte do cartoon ganhar novas proporções. Maiores detalhes de cenário e perspectivas mais ousadas foram introduzidas, de tal maneira que a animação firmou-se no cenário cinematográfico definitivamente (Falcão 1996:18).

Entretanto, salvo algumas inovações técnicas diversas, o cinema de animação conservou-se praticamente intacto em seu paradigma, que consistia numa narrativa burlesca e simples, preferencialmente humorística, com certas doses de lirismo e poeticidade (principalmente na Europa), até o surgimento do cinema sonoro.

Este passo, assim como no cinema convencional, foi uma enorme revolução em todos os gêneros, do qual nenhum realizador pôde ficar alheio, incluindo evidentemente a animação. Contudo as coisas não eram fáceis para os produtores de filmes animados. Feitos manualmente, o trabalho dos desenhistas iria aumentar substancialmente, pois a projeção sonora padronizou 24 quadros por segundo ao invés dos 16 mudos, e os custos da animação sonora ainda não justificariam sua plena utilização. Coube a Walt Disney, ainda nos primórdios de suas experiências criativas com Mickey Mouse, apostar neste diferencial, contrariando todos os produtores que aconselhavam cautela no investimento. Em 18 de novembro de 1928, Disney lança, em New York, Steamboat Willie, que, segundo Crafton, foi para a animação o que o Jazz Singer foi para o cinema, e Disney tinha ampla consciência disso. Neste filme, a primeira animação sonora do cinema, o personagem Mickey está plenamente desenvolvido. Muitos críticos apontaram seu sucesso segundo dois fatores, o carisma do personagem e a presença do som, absolutamente sincronizado de maneira artesanal, que rendeu à animação seus primeiros paradigmas sonoros.

O triunfo de Disney desembocou num imenso império de entretenimento, tal qual hoje conhecemos, mas que foi fruto de uma arriscada e pioneira empreitada, utilizar a tecnologia do Vitaphone para a animação. O sincronismo foi obtido através do mesmo processo pelo qual hoje em dia se criam ruídos de ambiente em estúdios de pós-produção sonora, ou seja, enquanto a imagem é projetada inúmeras vezes, os 'músicos' preparavam uma vasta parafernália de instrumentos diversos para gravarem em tempo real o som. O encanto deste desenho em sua dimensão sonora reside principalmente na sincronização precisa dos sons às imagens, bem como o enaltecimento do potencial humorístico através de timbres característicos, tais como onomatopéias e ruídos diversos. Neste filme foram fixadas as bases paradigmáticas da trilha sonora do desenho animado.

Para este tipo de filme, a música e o som (ruídos diversos, bem como diálogos eventuais) têm uma função muito específica, através do reforço da narrativa e do humor. Assim, esta primeira experiência nos leva à união de som e imagem segundo o propósito de redundância e comparação termo-a-termo. Em outras palavras, todas as funções musicais seguem rigidamente uma intenção visual; quedas são ilustradas musicalmente com escalas descendentes e subidas com escalas ascendentes, batidas com sons onomatopéicos ou ruídos da percussão, intenções líricas e poéticas com linhas melódicas completas, sendo o ritmo um rígido acompanhante dos movimentos dos personagens. Timbres variados, explorados de diversas maneiras, traduzem 'musicalmente' algumas verossimilhanças específicas das situações narrativas, como batidas de pratos, caixa clara, gongos, guizos em colisões ou embates. Madeiras ágeis para movimentos curtos e rápidos; cordas para linhas melódicas que sugerem caminhas e andanças, rápidas ou lentas; metais para ações bruscas e/ou épicas, alternando-se em passagens curtas tanto quanto o desenho se movimenta. O uso constante destes elementos possibilitou aperfeiçoamentos e sofisticações, como o contraponto, no sentido de inversão de valores, bem como a metáfora e a metalinguagem. Estes paradigmas são encontrados em diversas fases da animação até hoje, como nas criações de Walter Lantz (Pica-Pau), Tex Avery (Pernalonga e Patolino) e Hanna-Barbera, cuja primeira criação foi Tom e Jerry. Este, em sua primeira fase, não utilizava nenhum diálogo, apenas ação pontuada pela música, especialmente composta, partindo de tais paradigmas, por Scott Bradley.


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