Dissertação de Mestrado - Filipe Salles - 24/06/2002
2.2. O
cinema e a música
A música de cinema é um exemplo bastante significativo deste aspecto de
inter-relacionamento, uma vez que é possível mudar substancialmente o
caráter de uma imagem escolhendo-se diversas músicas para seu acompanhamento.
Há portanto, certas medidas de caráter que estão presentes na música,
pois do contrário só sentiríamos a música em função da imagem, e não o
oposto. Mas a evolução do conceito 'música de cinema' passou por diversas
fases, e não foi simplesmente inventada, de uma hora para outra, a trilha
sonora. Basta olhar sua história:
O cinema, arte típica do século XX por ter nascido na entrada do referido
século, é uma das poucas em que podemos precisar sua origem. Embora seu
sistema tivesse antecedentes imemoriais (o próprio desejo do homem em
realizar seu simulacro mais perfeito possível), nenhum historiador ignoraria
que a máquina de projeção individual inventada por Edison, o Kinetoscópio,
foi o precursor da projeção externa coletiva do Cinematógrafo dos irmãos
Lumière (nota #4), que se utilizava
basicamente de princípios físicos há muito conhecidos, como a câmara escura,
a projeção luminosa, e outros mais recentes, como o mecanismo da máquina
de costura e a própria fotografia. E o som programado para acompanhar
imagens projetadas já existia mesmo antes da invenção destes aparelhos,
como atesta Parkinson (1995) a respeito do Praxinoscópio de Reynaud.
Segundo o autor, o francês Émile Reynaud (1844-1918), inventor do praxinoscópio
(aparelho que precedeu o cinematógrafo), desenvolveu uma forma de projetá-los
com um tambor de espelhos no centro da máquina, que refletia os desenhos
do praxinoscópio para uma tela externa e simulava uma das primeiras máquinas
de projeção cinética, e que ele chamou de Pantomimes Lumineuses
(Vide figura 3). Parkinson exemplifica a questão da importância do som
no cinema através do exemplo de Reynaud: "Os pioneiros do cinema nunca
tiveram a intenção de fazer seus filmes silenciosos. As 'Pantomimes Lumineuses'
de Reynaud, por exemplo, foram acompanhadas por músicas especialmente
compostas por Gaston Paulin." (Parkinson, 1995: 83). Em outras palavras,
o cinema sempre foi sonoro.
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FIGURA
3: Émile Reynaud e seu aparelho praxinoscópio, em
que projetava suas pantomimas luminosas
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Cartaz
publicitário das Pantomimas Luminosas
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Apesar da nomenclatura comum que designa os filmes produzidos antes de
1928 como sendo "mudos" (silent movies), na verdade, ela diz respeito
apenas a uma questão técnica: antes desta data (a invenção do vitaphone),
o som não tinha nenhum vínculo com a película projetada, e por essa razão
toda a projeção demandava a presença física de um ou vários músicos, quando
não também um narrador ou dubladores. Mas o som no cinema já havia sido
sincronizado muito antes: em 1889, o kinetoscópio de Edison havia sido
adaptado para funcionar em sincronismo com o fonógrafo. É interessante
sublinhar o quanto a idéia de reproduzir som estava (ou sempre esteve)
associada à idéia de reproduzir imagens, uma vez que o próprio Edison
considerava o kinetoscópio como uma conseqüência direta do fonógrafo,
e provavelmente uma idéia tenha levado à outra (idem 1995:82).
A possibilidade de sincronismo e reprodução do som concomitante à imagem
era possível no kinetoscópio na medida em que as máquinas de projeção
eram individuais e o som reproduzido em fones de ouvido. Quando Auguste
e Louis Lumière combinaram o princípio do kinetoscópio à lanterna mágica
e inventaram o que chamamos propriamente de cinema, a projeção pública
em tela grande demandava uma amplificação e reprodução sonora que a tecnologia
da época ainda não tinha condições de resolver. Em pequenas salas de exibição,
entretanto, as experiências de sincronismo e reprodução do som no cinema
foram bem-sucedidas antes mesmo da virada do século. Na Exposição de Paris
de 1900, foi apresentada uma versão de máquina projetora capaz de sincronizar
o fonógrafo, inventada por Gaumont, o Chronomégaphone. Pouco depois,
outras versões foram sendo lançadas, denominadas Phonorama, Vivaphone
e Cinephonograph. Entretanto, a necessidade de trocar o disco no
meio da projeção, e o desgaste do cilindro de cera fizeram com que estes
sistemas não tivessem vida longa. Na mesma medida, o cinema começou a
ser projetado para públicos cada vez maiores, e que demandavam, consequentemente,
salas mais amplas, e o som sincronizado foi radicalmente substituído pela
performance musical ao vivo.
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FIGURA
4: Dois cartazes publicitários de projeções sonorizadas,
o Chronomégaphone e o Biophonógraphe, do início
do século XX. |
De início, a música que acompanhava uma projeção era executada por um
pianista (ou pequeno conjunto), cuja responsabilidade era a de reforçar
o potencial dramático da imagem, enfatizando o clima das cenas. A maioria
destes primeiros pianistas trabalhava sobre um repertório conhecido, música
de compositores familiares ao grande público, como Schubert, Chopin, Tchaikovsky
e Johann Strauss Jr, ou ainda temas de canções populares. Quando executadas
durante sessões que se mantinham dentro do alcance de controle dos estúdios
produtores, havia um roteiro para a trilha sonora, um repertório específico
que o pianista deveria seguir. Mas, na expansão da indústria cinematográfica,
muitas projeções em cidades distantes tinham que contar com o bom senso
e a capacidade de improvisação dos músicos, até que a idéia de criar música
especificamente para o cinema foi posta em prática em larga escala. A
música em tal situação ainda era muito mais uma redundância da imagem
do que propriamente um elemento dramático no sentido narrativo, uma espécie
de ênfase retórica. O máximo de sofisticação era conseguido quando alguns
cineastas, especialmente europeus, encomendavam música para acompanhar
seus filmes a compositores consagrados, como O assassinato do Duque
de Guise (1908), de Henri Lavédan, com música de Saint-Saëns, considerada
a primeira 'música original' composta para filmes.
Mas o custo de uma produção cinematográfica era substancialmente aumentado
na sua exibição, uma vez que deveria haver pelo menos um músico contratado
que pudesse acompanhar cada projeção, prática que começou a se tornar
comercialmente desfavorável quando os filmes passaram a adotar o padrão
de longa-metragem, com mais de uma hora e meia de projeção. Embora os
sistemas de sincronismo já no final da década de 1910 tivessem se aperfeiçoado,
sendo inclusive testadas as projeções com som gravado na película, somente
em 1927 o sistema de sincronismo, ainda via fonógrafo, foi implementado
comercialmente. Era o sistema Vitaphone, (Fig. 5) uma enorme e
desajeitada máquina de projeção que imortalizou o filme The Jazz Singer
(1927), com Al Jonson, se utilizando de um disco de 78 rotações, um
pouco melhor que aquele usado no fonógrafo de Edison. Suas inconveniências
eram grandes, a baixa qualidade da amplificação da época, o chiado do
disco e a eminente possibilidade do disco riscar com o tempo e tirar o
filme de sincronismo. Mas foi um sistema pioneiro que, prescindindo do
músico in presentia, fez com que toda a conquista dos músicos até
aquele momento precisasse recuar aos primórdios do som para o cinema,
repensar a função dramática do som, que agora poderia incluir não só música,
mas também diálogos e ruídos.
Figura
5: o Vitaphone
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Mas, já em 1930, os estúdios, vislumbrando o enorme potencial financeiro
que os filmes sonoros poderiam render (estando os EUA na fase mais negra
da depressão após o crash da bolsa de 1929), optaram pelo sistema Movietone,
ou gravação na própria película, através de uma célula fotoelétrica que
transformava as ondas sonoras em impulsos luminosos, registrando o som
fotograficamente, técnica que ainda hoje é a mais comum na sonorização
de películas.
Entretanto, mesmo com tal recurso, as experiências com o som começaram
de maneira bastante comedida, primeiro por causa da inexperiência dos
atores em tratar com diálogos. Muitos deles, na fase muda do cinema, não
tinham sequer formação teatral, pois bastavam-lhes determinadas condições
físicas para compor personagens, e a maioria mostrou-se incapaz de declamar
textos, obrigando os estúdios a reciclar todo o contingente de astros,
o Star System hollywoodiano. Segundo, nem todos os problemas técnicos
estavam resolvidos, as câmeras e os projetores ainda eram extremamente
barulhentos, e prejudicavam a captação do som (uma boa ilustração dos
inconvenientes desta época é mostrada no filme "Cantando na Chuva", Singin'
in the Rain 1952), de tal maneira que nem todos os filmes eram completamente
falados ou cantados. E, por último, o grande problema de ordem estética,
pois, afinal, o que fazer com a música, agora que era possível fixar determinado
acompanhamento sonoro em qualquer projeção? A simples "ilustração" musical
redundante passou a ser vista como um terreno promissor de possibilidades.
O cinema, ao descobrir o sincronismo entre som e imagem, a capacidade
de exibir filmes sem orquestra ou pianistas, trouxe este problema estético
à tona. O que fazer com o som? Onde ele pode ajudar na narrativa? Até
onde ele é apenas mais um elemento decorativo, como a cenografia? Uma
lenta evolução levou o cinema a encontrar uma forma ideal de utilizar
o som de maneira apropriada à sua linguagem.
Charlie Chaplin foi um dos primeiros diretores nos Estados Unidos a sentir
a necessidade de uma adequação mais precisa da música à imagem projetada,
não querendo depender do senso estético dos pianistas em cada projeção
de seus curtas. Para tanto, compôs ele mesmo partituras para acompanhar
seus filmes.
Enquanto Chaplin trabalhava de maneira muito prática e intuitiva, sem
conhecimentos profundos de composição e estética musical, na União Soviética,
Sergei Eisenstein desenvolvia um trabalho similar, porém baseado em complexas
teorias de montagem dramática, em que a música deveria responder de maneira
equivalente. Eisenstein pensava a montagem de uma maneira 'orgânica',
como uma entidade viva, cujas relações entre as partes deveriam formar
um uno todo e coeso (como já mencionava Aristóteles na Poética)
regidos por uma intenção dramática comum. Seus escritos, para ilustrar
tais idéias, se utilizam de metáforas comparando o cinema com a poesia
e a música, cujas tensões harmônicas e o jogo de palavras lhes são semelhantes.
Destarte, já não cabia a filmes como Alexander Nevsky, Outubro
ou Ivan o Terrível a possibilidade de uma trilha sonora eventual,
dependente de um repertório aleatoriamente recolhido conforme a região
em que o filme era projetado. Por isso, Eisenstein encomendou trilhas
originais para seus filmes a compositores consagrados, Prokofiev e Shostakovich.
Imagine-se então, antes da invenção do movietone os problemas que um empreendimento
deste tipo causaria, pois por ser um filme mudo, precisaria da orquestra
inteira em cada sessão. Afinal, nestes casos arranjos para piano empobreceriam
demais o impacto da música e da imagem. Pode-se dizer, portanto, que o
advento do som ao filme foi crucial para o desenvolvimento da narrativa
cinematográfica, como atestam mesmo as experiências práticas descritas
pelo próprio Eisenstein em O Sentido do Filme e A Forma do Filme
(Eisenstein 1990).
Entretanto, as geniais teorias de Eisenstein ficariam durante muito tempo
relegadas a círculos intelectuais fechados na Europa e pouco influenciaram
a indústria americana, fazendo com que a trilha sonora propriamente dita
precisasse de dez anos a mais nos Estados Unidos até que se tomasse consciência
de seu poder enfático na imagem. Durante os anos que se seguiram ao Jazz
Singer, o cinema americano caminhou muito lentamente do ponto de vista
musical, para alcançar a significação que é hoje inerente a todas as produções.
"O que fazer com a música?", era o que, afinal, os produtores se perguntavam,
pois na mesma proporção em que antes só podiam contar com ela, agora,
podendo incluir ruídos e diálogos, e acabaram por deixá-la nos bastidores
do som no cinema. Assim, o cinema passou a utilizar o som de duas maneiras:
Como elemento climático e como foco da ação (os musicais). Os primeiros
são justamente os que darão emprego aos compositores eruditos, e os segundos
são aqueles em que a música conduz a narrativa, ou ela está subordinada
à música. Os musicais cinematográficos, famosos na década de 50, podem
ser comparados a ópera, cuja ação também se desenrola em função da música.
Aliás, a derivação mais popular da ópera, a opereta, irá ter uma grande
influência na própria composição das músicas e na concepção geral do argumento
destes musicais. Mas o outro caso é particularmente mais interessante,
pois é nele que o cinema encontrará as bases da utilização do som para
formar o ambiente.
Havia basicamente duas funções prioritárias para as quais a música servia,
redundar a imagem com onomatopéias e preencher os 'buracos' sem diálogos.
Afora algumas produções mais ambiciosas, que colocaram a música em plano
de importância dramática - e cujo extremo foi o gênero musical - a música
acabou sendo relegada a um plano ilustrativo, pois seu uso caiu em detrimento
por causa dos diálogos, do texto e do argumento, que poderiam exaltar
a interpretação dramática do ator.
A grande guinada pós-Eisenstein foi dada nada menos que pela produção
de Walt Disney de 1940, Fantasia. Um ano depois que Orson Welles
trabalhava no seu Cidadão Kane, e que da mesma forma tinha revolucionado
a narrativa do cinema americano, Fantasia complementa a vanguarda
mostrando a todos a imensa capacidade significante da música, fazendo
com que a ação dos personagens animados no desenho seja subordinada à
narrativa da música. Em outras palavras, o roteiro de Fantasia
é a própria música. Embora isso já desponte, ainda que de forma apenas
conseqüente, nas teorias de Eisenstein, e também em outras experiências
no chamado, muito a propósito, 'cinema experimental', é em Fantasia
que é feita a síntese mais eloqüente deste aspecto da relação música/imagem.
A história da sincronização musical com imagens em desenhos animados remonta
desde os primórdios do cinema; além das experiências do praxinoscópio
de Reynaud, o desenho animado sempre pareceu mais próximo do universo
sonoro, não só pela possibilidade de utilização, mistura e criação de
timbres não necessariamente verossímeis fora de seu contexto, como também
pelo uso melódico de onomatopéias e outros efeitos que ampliavam o potencial
retórico e humorístico do desenho animado. Fantasia encontra um
lugar de destaque frente a estas práticas por não ter a proposição de
um desenho convencional, de diversão passageira, e sim a ambição de uma
obra de arte antes nunca imaginada na dimensão do cinema de animação.
Para tanto, se utiliza de música erudita sem nenhum recurso sonoro extra-musical,
como os ruídos e os diálogos. Apenas uma narração explicativa costura
as 8 seções do filme, com um breve interlúdio apresentando a 'banda sonora'.
Os diversos gêneros musicais são divididos, para os fins propostos em
Fantasia, em 3: música absoluta (a Toccata e Fuga em ré menor
de Bach, e em certo sentido a Ave Maria de Schubert), música puramente
descritiva (O Aprendiz de Feiticeiro, de Paul Dukas, a Noite
no Monte Calvo de Mussorgsky) e música que "pinta um quadro" (segundo
a própria narração no filme), que se traduz basicamente por músicas escritas
originalmente para coreografia (O Quebra-Nozes de Tchaikovsky,
A Sagração da Primavera de Stravinsky e a Dança das Horas
de Ponchielli), que, embora conte uma história, uma narrativa coreográfica,
teve seus argumentos modificados livremente, traduzindo outros aspectos
da música que, embora extremamente compatíveis com ela, não faziam parte,
até então, da gama de significados possíveis para estas músicas. A equipe
de Disney ampliou a significação de formas já existentes, tendo seu exemplo
de maior maestria a versão da Sinfonia Pastoral de Beethoven, (a
única do quesito "música que pinta um quadro" que não foi escrita com
intenções coreográficas) episódio em Fantasia que encontra, numa
sinfonia que se propõe unicamente a traduzir sentimentos da vida no campo,
uma linha narrativa perfeitamente harmônica com o espírito da obra, passando
a vida rural da Áustria do início do século XIX para a Grécia mitológica
atemporal. E ninguém pode dizer que Beethoven não está lá, ainda que considerando
os cortes feitos na música por Leopold Stokowski.
O impacto de Fantasia, em termos de público, foi um fracasso. Mas
nenhum criador da área cinematográfica ficou alheio ao que viu. O primeiro
som estereofônico (ainda que simulado), gravado com a maior tecnologia
disponível, criou um efeito tão extraordinário que os produtores começaram
a repensar o som, acrescentando a música como elemento primordial. Tanto
que durante os 20 anos seguintes, quase todas as grandes produções se
utilizaram de compositores de formação erudita, a maioria europeus.
Chegamos então ao que propriamente chamamos de "trilha sonora" do cinema:
o que se tornou a música erudita nos anos 30 estava longe de ser absorvido
pelo grande público, levando compositores de teatro e opereta a tentarem
a sorte no cinema. Indo de encontro ao que os produtores queriam, foram
recebidos de braços abertos nos estúdios, e, por essa razão, os primeiros
grandes autores de trilhas são europeus: a tradição da música sinfônica
era um elemento de peso, e, como a música européia já havia desenvolvido
profundamente o estilo sinfônico descritivo, principalmente a partir do
romantismo, tais concepções se faziam muito propícias para estimular uma
série de paradigmas visuais. A tradição romântica já estava, portanto,
habituada a tratar imagens com sons, dando a estes compositores especiais
condições para construir determinados climas, como o cinema queria.
É digno de citação alguns destes compositores, de importância ímpar para
o desenvolvimento daquilo que podemos hoje chamar de 'trilha sonora cinematográfica':
Max Steiner (1888-1971), começou com a trilha sonora de um clássico dos
filmes B, King Kong, de 1933. Seu trabalho foi muito bem apreciado,
e logo se tornou um dos mais requisitados compositores do cinema. Escreveu,
entre outros, ...E o vento levou, Jezebel e Casablanca,
para citar os mais famosos. Claudia Gorbman, em seu Unheard Melodies,
enfatiza o estilo pioneiro de Steiner como sendo o principal formador
de paradigmas do que ainda hoje conhecemos como trilha sonora hollywoodiana,
ou seja, uma série de convenções musicais que sistematizavam os reforços
da linha narrativa e dramaticidade do filme. Algumas destas convenções,
infelizmente, usadas abusivamente, acabaram por se tornarem clichês. O
fato é que este tipo de trilha ainda eram poemas sinfônicos pós-românticos
que pareciam na maioria das vezes mais eloqüentes que o próprio filme.
Tinham uma tradição européia muito profunda, que, se serviam para épicos
ou romances, eram grandiloqüentes demais para gângsters ou filmes noir.
Outro grande compositor, de quem na infância Richard Strauss elogiou,
Erich Wolfgang Korngold (1897-1957) era austríaco e não se dedicou apenas
ao cinema. É autor de óperas, quartetos, uma belíssima Sinfonia em
Fá Sustenido Menor, e também de respeitáveis trilhas como Captain
Blood, The Sea Hawk, Adventures of Robin Hood, Devotion,
etc.. Como Steiner, que era compositor de operetas na Áustria, Korngold
veio para Hollywood fugido da perseguição nazista, levando toda uma bagagem
de tradição européia que serviu não só para mostrar o que a música incidental
era capaz de fazer como aprimorar as técnicas musicais sobre os gêneros
que o cinema explora. Korngold representou na Europa o canto do cisne
de uma imensa tradição, a queda da supremacia musical que sustentou mais
de cinco séculos no velho mundo. Da mesma origem compartilha Franz Waxman
(1906-1967), que deu a Billy Wilder a trilha de Sunset Boulevard,
"Crepúsculo dos deuses" (1950). Da Rússia, precisamente S. Petersburgo,
Dmitri Tiomkin (1894-1979) também fugiu da revolução e estabeleceu-se
em Hollywood, tendo criado a música para Lost Horizon, "Horizonte
Perdido" (1937) de Frank Capra.
A indústria cinematográfica americana precisava de bons professores nesta
área, e se serviu muito bem da oportunidade. Até que o próprio cinema
precisou de formas específicas, segundo gêneros igualmente específicos
criados na cinematografia americana. O que escrever para um filme policial?
E um western?
Compositores europeus não sabem o que é um western. Era preciso criar
uma geração de músicos americanos para suprir este tipo de necessidade,
o quê autêntico do país produtor do filme. Esta "nova geração típica"
irá surgir apenas no final dos anos 40, concomitante com a hegemonia dos
europeus. Victor Young (1900-1956), Alfred Newmann (1901-1970), Elmer
Bernstein (n.1922) e Leonard Bernstein (1918-1990), e Bernard Herrmann
(1911-1975), um dos mais bem-aventurados compositores de trilhas do cinema.
Mas mesmo tendo, por exemplo, Elmer Bernstein compondo para westerns,
Herrmann em Hitchcocks e Newmann em romances, os épicos continuaram muito
a dever para europeus, justamente por terem uma experiência sinfônica
muito mais refinada. Miklos Rozsa (1907-1995), húngaro, foi um destes
casos, de competência musical que o levaram à glória da trilha para Ben-Hur
de Wyler. Mesmo Victor Young, que assinou a trilha de Sanson and Delilah,
Around the world in 80 days e Greatest Show on Earth, estudou
no conservatório de Varsóvia antes de começar a compor para cinema.
Assim, aos poucos, a trilha sonora começou a ganhar uma forma específica
segundo sua condição subjacente à imagem. A trilha dos anos 40‚ é extremamente
eloqüente, digna de poemas sinfônicos à la Richard Strauss, de
caráter naturalmente épico. O final da década 40 caracterizou o domínio
da trilha em função do gênero. Os filmes noir, os suspenses e os
romances são ambientados musicalmente de formas mais sutis. Nos anos 50,
esta sutileza chega ao extremo: algumas trilhas encaixam tão bem no espírito
de um filme que o diretor "adota" o compositor oficialmente em todas as
suas produções. Esta prática já era natural para o cinema europeu, mas
que os americanos só perceberam quando abriram espaço para filmes de autor.
Então caminham lado a lado, a história e a música. É o caso de Nino Rota
(1911-1979) com Fellini, Herrmann com Hitchcock, John Williams (n.1948)
com Spielberg, e, mais recentemente, Michael Nyman (n.1943) com Peter
Greenaway. Nestes casos o clima é substancialmente bem construído, pois
o diretor já sabe como trabalha o compositor antes mesmo da partitura
estar completa. Os anos 60 trazem a música popular como trilha sonora,
o que nunca havia acontecido antes. Poderiam haver canções compostas para
o filme, mas sempre o clima era destacado por uma partitura orquestral.
Os anos 60 desmontam esta praxe, colocando a música orquestral apenas
em determinadas funções subjacentes, e então começa o reinado dos compositores
"populares", ou aqueles que criam tanto formas orquestrais para alguns
momentos como também suaves e cativantes melodias, que, a exemplo da ópera,
nos fazem sair do cinema cantarolando o tema. É o caso de Burt Bacharach
(n.1928), Lalo Schifrin (n.1932) e Henry Mancini (1924-1994). Aos poucos
as canções foram tomando o lugar da música sinfônica, e nos anos 70 explodiu
com musicais como Hair, Jesus Christ Superstar, descendentes
de West Side Story, mas com a música pop e o rock'n roll pontuando
a ação do filme. Os anos 70 e 80 praticamente exploraram toda a vertente
pop da música, até como clima subjacente, devolvendo, no final dos 80,
com filmes como Amadeus e ET, a partitura orquestral à narrativa
do cinema, concomitante à música pop e à canção-tema do filme. Assim,
a partir dos anos 90, tornou-se praxe a utilização de ambas, uma (ou várias)
canção-tema e uma partitura instrumental, por vezes ainda requisitando
funções orquestrais, coexistindo num mesmo filme, mas cuja necessidade
estética varia de filme para filme.
É interessante notar que essa longa caminhada da música no panorama cinematográfico
tem fases muito distintas, sendo que todas elas possuíam relações muito
próximas entre si. Assim, embora se possa estabelecer passagens específicas,
como da passagem do cinema "mudo" para o "sonoro", a utilização de música
para completar "buracos" sem diálogos e a utilização dramática da música
para reforço das intenções narrativas, sempre houve a preocupação de escolher
música adequada para cada imagem. O mesmo se pode dizer do contrário,
ou seja, da inspiração extra-musical que se traduz no gênero descritivo
da música; o compositor também escolhe uma seqüência musical 'adequada'
ao tipo de imagem inspiradora. Assim, como na teoria teatral de Constantin
Stanislavski (1999), onde o ator deve procurar a "intenção" dramática
correta, se essa preocupação também atinge a música e seus resultados
satisfazem expectativas imagéticas, não há por que não supor que na música
também haja uma intenção bem clara que sirva aos propósitos de intenções
similares. Esta seria a mesma idéia, com outra roupagem, do caráter platônico
antes enunciado. Assim, a música teria um caráter, a imagem outro, e a
sobreposição de ambos um terceiro, resultante, em consonância ou dissonância
com o caráter que predomina em ambos. Assim, músicas que possuam um caráter
'alegre', quando utilizadas para ilustrar situações visuais cujo caráter
seja 'triste', forma-se uma antítese, ou um paradoxo, dependendo do grau
de utilização de ambos. A paródia, por exemplo, se utiliza largamente
deste recurso, como é o caso da antítese de Fantasia, sua excelente sátira,
o filme italiano Allegro non troppo ("Música e Fantasia", 1976,
de Bruno Bozzeto). Aí entra o objetivo, ou intenção estética, do autor
cinematográfico ao juntar uma imagem à uma música: a resultante entrará
em consonância ou dissonância (em graus diversos, cuja resultante é sempre
uma parte muito peculiar da criação artística) com o caráter que se quer
representar de ambas como um conjunto.
Em cinema, entretanto, normalmente a música é subordinada à imagem, sendo
ela redundante em caráter ao que se vê na tela, como o compositor Mauro
Giorgetti destaca, em artigo intitulado Da Natureza e Possíveis Funções
da Música no Cinema:
Sabemos
que o som geral de um filme se distribui em três categorias sonoras
bem distintas, a saber, a dos ruídos, a dos diálogos e a da música
(quando houver); via de regra, a música vem, hierarquicamente, em
plano inferior às outras duas categorias (com efeito, dificilmente
se lhe concederá primazia em relação a ruídos e voz e, se acontecer,
tratar-se-á de caso particular). Como explicar, pois, que a música,
inegável subordinada dentro do complexo sonoro do filme, possa exercer
importância não raro decisiva no resultado final do trabalho? (Giorgetti:1998)
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E temos então,
justamente em Fantasia, um contraponto desta função subordinada
da música à imagem. Aqui, a imagem é que se curva ao caráter da música.
Portanto, conhecendo a natureza da trilha sonora tradicional, podemos
estabelecer um paralelo de análise justamente enfocando o seu oposto,
expresso por Walt Disney em Fantasia.
copyright©2002
Filipe Salles
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