Dissertação de Mestrado - Filipe Salles - 24/06/2002

 

2.1. A música e as imagens

A música sempre procurou 'mimetizar' (no sentido aristotélico) aspectos da natureza compatíveis com sua própria natureza. Uma vez que o som é 'imaterial', sua perspectiva de mimese mais proeminente sempre foi a representação de sentimentos, estados de espírito, climas e sensações, que compartilham deste estado de 'imaterialidade'. Assim foi toda a música aristocrática da renascença e barroco, assim é a música religiosa, a música para fins festivos, militares, para dança, sem falar no romantismo, a própria canção popular, etc. Toda a música assim constituída, cuja mimese era imaterial e se voltava para a própria música, foi chamada música 'absoluta' (Hanslick, 1988). A música sempre possuiu dimensão sensível predominante, mas que sofreu diversas tentativas de ser 'materializada', tal qual uma imagem dinâmica. Claro, sem deixar seus princípios de construção, sem os quais não poderia mais ser chamada música, ela só encontrou possibilidade de desenvolvimento com intenções descritivas após a evolução formal-conceitual de Beethoven.

O próprio Beethoven é um exemplo significativo desta passagem, uma vez que sua Sinfonia Pastoral é literalmente (segundo o próprio Beethoven), 'expressões e sentimentos da vida no campo'. E ela já beira a fina e tênue linha entre a descrição de sentimentos e a descrição de situações. Tanto que foi possível, e também com ótimo resultado, a roupagem narrativa que Walt Disney atribuiu-lhe em Fantasia. E, já na Nona Sinfonia, Beethoven enfatizou de maneira substancial a razão do sentimento predominante, rompendo a barreira vocal num gênero puramente instrumental. Os versos de Schiller da 'Ode à Alegria' sem dúvida acrescentaram uma expressividade ímpar à música em seu gênero, pois formam - texto e música - um todo maravilhosamente bem engrenado em sua proposta, sem deixar de ser tratado segundo um ideal sinfônico.

Com as portas do romantismo abertas, foi possível, primeiramente a Hector Berlioz (1809-1869), criar um gênero puramente descritivo, chamado por ele, muito a propósito, de 'sinfonia descritiva', cujo primeiro exemplo é a Sinfonia Fantástica (1830). Nessa obra, há uma arquitetura híbrida: forma-sonata, estrutura sinfônica tradicional mesclada com elementos narrativos, algo dramático, mas que de qualquer maneira tem por resultante uma música que se utiliza de formas tradicionais para contar uma história - no caso específico da Sinfonia Fantástica, um sonho.

Toda a geração romântica posterior a Beethoven, contemporânea de Berlioz, encontrou na música descritiva um fascinante e promissor estilo, que combinava inspiração de diversas fontes, como a literatura, poesia e pintura, com a imaterialidade sonora, abrindo novas possibilidades de expressão segundo padrões românticos. Grande parte dos compositores românticos tinha sólida formação artística e frequentemente dialogavam com outras artes. Berlioz mesmo tinha um grande talento literário, assim como Wagner e Schumann. Mendelssohn e Schoenberg, por sua vez, também pintavam. Schoenberg, inclusive, tinha uma opinião muito particular sobre a relação música/imagem (é bem conhecida sua relação de amizade com o pintor russo Wassily Kandinsky), partindo do princípio que a "música expressa a natureza inconsciente deste e de outros mundos" (Barford, 1983:26). Assim, em análise da ópera inacabada de Schoenberg Moisés e Aarão, Philip Barford teoriza: "Nessa grande obra, as imagens são governadas pelas idéias, e o arcabouço das idéias é ordenado por um 'conceito fundamental' único, simbolizado numa seqüência sonora." (idem, 1983). Novamente temos referência ao conceito platônico de idéia, como fonte do material e do imaterial. Dentro desta concepção de relacionamento música/imagem, tais manifestações desenvolveram-se e novas possibilidades formais para conter conceitos narrativos foram criadas: diversos compositores se utilizaram do gênero Abertura sinfônica para expressar argumentos extra-musicais (p.e. Schumann em Manfredo, ou Mendelssohn em As Hébridas), e, tendo chegado a um grande patamar de desenvolvimento, a forma programática desembocou naquilo que Franz Liszt (1811-1886) concebeu como Poema Sinfônico, gênero descritivo especificamente destinado a sugerir imagens extra-musicais. Richard Wagner (1813-1883), por sua vez, re-interpreta o antigo conceito estético, o ideal grego da fusão das artes poéticas, como a 'obra de arte total'. Cria então o drama musical, que, resumidamente, se compõe como uma grande sinfonia dramática, destinada a ser encenada e cantada. O apogeu da música programática.


Figura 1- Caricatura crítica fazendo alusão às "Suaves Harmonias da Música Moderna" - o poema sinfônico

É interessante notar que tais idéias extra-musicais eram escolhidas independentemente de seu suporte, passadas todas igualmente para música sem distinção de gênero, estilo ou inspiração, podendo ser desde um poema literário propriamente dito, uma peça teatral, uma pintura, uma paisagem ou até um sonho. Para a música, a imagem aí funcionaria como trampolim de uma idéia qualquer, sendo colocada na linguagem da música sem que a linguagem do outro suporte prevaleça. Isso significa que não é intenção do compositor, quando busca inspiração numa imagem pictórica, tornar a música 'estática' tal qual o quadro, muito menos, ao inspirar-se numa obra literária, sugerir sons próximos às palavras através de onomatopéias musicais. São gêneros que trabalham especificamente com a representação musical através da materialização de argumentos fora do suporte musical.

Estaria a magia deste gênero justamente no fato de unir a imaterialidade da música com a materialidade do argumento, unindo paradigmas de significação num mesmo eixo temporal? No caso contrário, foi explorado exaustivamente o potencial da música absoluta e sua preferência, segundo Hanslick, recai justamente por sua imaterialidade suprema.

Exemplos contundentes desta arte podem ser encontrados em Camille Saint-Säens (Dança Macabra, sobre Henry Cazalis), Bedrich Smetana (O moldávia, baseado no rio homônimo de sua terra natal), César Franck (Les Eolides e Psiché, sobre mitologia grega), Ottorino Respighi (Fontana di Roma e Pini di Roma, sobre paisagens italianas), Piotr Tchaikovsky (Romeu e Julieta, sobre Shakespeare), Paul Dukas (Aprendiz de feiticeiro, sobre Goethe) e, principalmente, Richard Strauss (Macbeth, sobre Shakespeare, Don Quixote, sobre Cervantes e Assim falou Zarathustra, sobre Nietzsche, entre outros).

Durante todo o romantismo, a música programática coexistiu com a absoluta não raro como fonte de longas discussões e acirradas disputas verbais em termos estéticos, até questionando o valor artístico delas. Não apenas no âmbito da teoria estética musical, entre teóricos e críticos, mas também entre maestros e os próprios compositores. Eduard Hanslick, um dos críticos musicais mais influentes do século XIX, detrator fervoroso da obra de Wagner, era radicalmente contra toda a intenção de expressar sentimentos com música, e exaltava o valor musical apenas por suas qualidades intrínsecas, desconsiderando qualquer atribuição extra-musical. Ou, em suas próprias palavras,

Como a música não possui um modelo na natureza e não exprime um conteúdo conceitual, só se pode falar dela com áridos termos técnicos ou com imagens poéticas. Seu reino, na verdade, 'não é deste mundo'. Todas as fantásticas representações, caracterizações, descrições de uma peça musical são alegóricas ou errôneas (...) A música quer, de uma vez por todas, ser percebida como música, e só pode ser compreendida e apreciada por si mesma. (Hanslick 1998:65).

Otto Maria Carpeaux é um pouco menos radical, pois admite o valor do sentimento, mas também partilha dos mesmos pressupostos, e emite opiniões ácidas, mas sinceras, a respeito dos compositores que situam-se no gênero programático: Berlioz, por exemplo, escreve obras descritivas mas que "possuem valor como absolutas", e por isso merecem sua consideração. Já Tchaikovsky é um "eclético sem profundidade"; Richard Strauss, escreveu poemas sinfônicos "pomposos por fora, mas ocos por dentro", e a música de Liszt assemelha-se a "mobília antiga" (Carpeaux 1968). A única grande diferença entre Carpeaux e Hanslick é Wagner: Enquanto este odiava o conceito do drama musical, aquele sabia reconhecer o valor musical de Wagner, colocando-o certamente como um expoente indiscutível da música ocidental. Já Claude Debussy, cuja obra dispensa maiores apresentações, não hesita em comparar música a imagens em seus artigos publicados sob o pseudônimo de Monsieur Croche. Ao comentar sobre o Heldenleben, de Richard Strauss, conclui de maneira muito significativa: "Mais uma vez, é um livro de imagens, é mesmo cinematografia..." (Debussy 1989 : 122) Ora, podemos nos perguntar, mas em se tratando de um poema sinfônico, cuja argumentação é propositadamente extra-musical, não seria natural associar tal gênero às imagens em movimento do cinema, que também se desenvolvem no tempo? Neste caso, a declaração de Debussy realmente não traria nenhuma grande novidade, mas paramos quando escreve o mesmo sobre J.S. Bach:

Na música de Bach, não é o caráter da melodia o que comove, é a sua curva; o mais das vezes, até, é o movimento paralelo de várias linhas cujo encontro, seja fortuito, seja unânime, solicita a emoção. Nessa concepção ornamental, a música adquire a segurança de um mecanismo de impressionar o público e faz surgirem imagens. (Idem p.36).

E mesmo imagens são evocadas para dar ao leitor uma idéia de como Debussy sentiu uma execução da Sinfonia em Mi bemol de Mozart (a 39): "... pareceu de uma leveza luminosa. Assim como um bando de lindas crianças rindo alegremente ao sol" (Ibidem p.93). Debussy não toma partido das discussões estéticas a respeito da música absoluta ou programática, e por isso não tem medo de demonstrar os sentimentos que foram evocados por esta ou aquela música.

Mas a questão fundamental, a separação destes dois gêneros e suas implicações, sugerem problemas mais complexos. Afinal, a música absoluta seria incapaz de estimular a imaginação, ao ponto de justificar diferenciá-la de um outro gênero feito especialmente para isso - a música programática?

Se considerarmos as implicações advindas da descrição histórica a respeito da natural necessidade do homem em unir som à imagem (e vice-versa), não há motivo nenhum para que este tipo de divisão entre maneiras de compor seja relevante para argumentar em favor ou contra a música em si. Por que, então, essa discussão ainda toma muito da produção intelectual e crítica na música? Podemos citar exemplos de associação entre caráteres diversos alheios à música em sua natureza consensual e à própria música, como o chamado "acorde do diabo" (diabolus in musica), ou intervalo diabólico, que os antigos músicos do clero na idade média chamavam a dissonância de um intervalo de Quarta aumentada, associando a 'desarmonia' à obra demoníaca.

A simbologia musical, entretanto, está longe de se encerrar aí no seu potencial de representação fora de si mesma. Como atestam diversas fontes, todas as supracitadas relações descritas nas cosmogonias, teogonias e similares, associam freqüências vibratórias sonoras à outras tipos de freqüências (nota#3), cores, formas, cheiros. A própria Bíblia descreve com detalhes, no Livro do Êxodo, uma complexa sistemática para fundar e construir templos sagrados, associando determinados tipos de incenso, mantras e tecidos de cores específicas. Roger Cotte (1995:65-124) resgata essa tradição detalhadamente procurando expor como as antigas civilizações tratavam essa simbologia, associando inclusive timbres e ritmos, com a astrologia, o tarô e a alquimia.

E, mais recentemente, temos, por exemplo, as impressões registradas de Clara Schumann sobre a Terceira Sinfonia de Brahms, obra categoricamente enquadrada no gênero "absoluto": Ela via no primeiro movimento "os raios do sol nascente brilhando através das árvores"; no segundo, ouvia "o zumbir de insetos, o murmurar de um regato, as preces de fiéis junto a uma capela na floresta"; o terceiro movimento parecia-lhe uma "pérola gris", e o quarto, "magnífico em sua exaltada elevação". (Littel 1959:21)

Comentários desta natureza são muito importantes, na medida em que verificamos com eles a imensa gama de possibilidades interpretativas que a música oferece. A arte em geral é 'aberta' (no sentido de Umberto Eco), pois permite leituras potenciais não previstas pelo autor, e gerar diferentes desdobramentos de sentidos estéticos, enriquecendo as várias dimensões de uma obra. O ouvinte (no caso da música) limita seu campo de interpretação segundo os desdobramentos que ele próprio permite na leitura subjetiva de uma obra.

Isso fica bastante claro quando analisamos as correntes críticas que não admitem a possibilidade de uma imagem gerar e/ou sustentar a música. Arlindo Machado também não deixa de apontar com veemência este posicionamento dos puristas da musicologia em execrar a mera possibilidade de considerar a música subordinada às imagens, chegando mesmo a citar:

Chion observa, por exemplo, que um analista como Jean Barraqué consegue escrever um exaustivo ensaio sobre La Mer, onde todos os detalhes da peça são esmiuçados, sem entretanto se perguntar em nenhum momento porque a obra se chama La Mer e sem se referir jamais ao célebre quadro de Hokusai em que Debussy sabidamente se inspirou. (Machado,1999)

Conforme se observa, as visões estéticas e pessoais de cada autor tendem a tratar a música absoluta e a programática como terrenos absolutamente distintos, e em alguns casos sem nenhuma possibilidade de intercâmbio, salvo alguns poucos exemplos. Mesmo considerando o objeto de análise deste estudo, àquilo que se convencionou chamar "música absoluta" no ocidente, é definido em Fantasia como peças musicais que existem só porque são música, pois não "descrevem" nem sugerem nada como imagens concretas.


Figura 2: Quadro de Hokusai que inspirou Debussy em sua obra 'La Mer'


Entretanto, mesmo com tal divisão estética muito bem delineada, é possível achar narrativa numa sinfonia de Brahms, assim como é possível ouvir uma obra descritiva sem saber do que se trata a história narrada. De qualquer maneira, a música evoca e provoca emoções, tanto num gênero quanto no outro.

A questão levantada por Hanslick e outros teóricos da música é simplesmente se tais emoções estão na música ou se é apenas um reflexo relativo individual dos ouvintes. A música 'carrega' a emoção que desperta ou esta emoção é apenas uma reação aleatória do ouvinte? Esta é uma questão muito antiga, e já Platão definia muito bem sua opinião a respeito: "Com efeito, nunca se atacam as formas da música sem abalar as maiores leis das cidades" (Platão, 1999:120), e "Pois é nela, na música, segundo parece, que os magistrados devem edificar o seu corpo de guarda" (idem, 121)

A conclusão platônica é que a música carrega um caráter, e cada caráter está envolvido, segundo sua vibração predominante, de um significado essencial. Assim, haveriam duas instâncias: o caráter próprio da música e a pré-disposição do ouvinte em harmonizar-se ou não com este caráter, dependendo do seu próprio. Hoje, conhecendo a natureza vibratória da energia e da matéria, sabemos que há consonâncias e dissonâncias físicas entre elementos, sendo justamente essa a correspondência que Platão se refere. A correspondência de caráteres é diretamente associada aos modos gregos, uma vez que o pensamento e as ações também emitem vibrações, sendo cada um dos modos enunciado pelo sábio como propício ou não à educação pretendida, por consonância ou dissonância, como neste contundente exemplo de diálogo:

Sócrates - Nada há de mais inconveniente para os guardiães do que a embriaguez, a moleza e a indolência.
Glauco - Sem dúvida
Sócrates - Quais são harmonias efeminadas usadas nos banquetes?
Glauco - A jônica e a lídia, que se denominam harmonias lassas.
Sócrates - De tais harmonias, meu amigo, tu te servirás para formar guerreiros? (Ibidem, pp.91-94).


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