Dissertação de Mestrado - Filipe Salles - 24/06/2002

 

2. BREVE HISTÓRICO

Os primeiros registros históricos que contém alguma referência à associação som/imagem são de origem religiosa, que tratavam de unir num mesmo acontecimento formas visuais (ritos, encenações) com música ou sons (mantras, textos sagrados). Apesar de não podermos reproduzir com precisão todos os detalhes destes rituais antigos, é certo que eles muito provavelmente foram os precursores, num sentido prático, da formação do paradigma som/imagem.

A título de ilustração, vale a pena percorrer brevemente tais registros em que constam, direta ou indiretamente, uma legítima associação. Não apenas pelo caráter histórico - que nos informa o quanto esta questão é antiga - , mas também porque essa associação sempre fez parte da história, das artes e do cotidiano, podendo ser considerada uma relação muito natural ao ser humano.

O caráter mais verificado cuja concordância permite a proliferação da combinação visual e sonora é o tempo. O tempo rege a pulsação rítmica, rege a estrutura da música, e tal dimensão temporal sugere uma associação primordialmente relacionada a instâncias que se encaixem na mesma proporção dimensional, ou seja, outras manifestações temporais, dinâmicas, tais como encenações, dramáticas ou não, litúrgicas ou profanas, rituais, dança e, mais modernamente, cinema, televisão e artes multimídia.

Na tradição da cultura ocidental, judaico-cristã, a fonte mais remota é o Antigo Testamento. A cosmogonia bíblica indica claramente o caráter imemorial e indissolúvel da união do som e da imagem, narrando "No princípio, Deus criou os céus e a terra. A terra, porém, estava informe e vazia, as trevas cobriam o abismo, e o Espírito de Deus pairava sobre as águas. Deus disse: 'Faça-se a Luz! (Gênesis, I, 1-3)" A criação dos céus e da terra prescinde do som, da palavra; a criação da luz, porém, é concomitante ao verbo, que pressupõe o som proferido na ordem: "Faça-se a Luz! - e a luz se fez". Numa primeira análise, do mesmo significado parece compartilhar São João no início de seu Evangelho, já no Novo Testamento, onde diz "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus, e o Verbo era Deus" (João I, 1). A dicotomia da tradução do texto latino In principium erat verbum é assinalada com propriedade por Roger Cotte (1995), que indica alguns autores que traduzem verbum como "o som" ou "o canto", sustentada numa tradição segundo a qual "o Criador era tido como sendo um canto infinito" (Cotte 1995:11). A associação entre som e imagem, portanto, remonta aos primórdios da Criação.

É interessante que o mesmo sentido seja evocado na mitologia cosmogônica hindu, registrado segundo a tese de José Luiz Martinez entitulada Semiosis in Hindustani Music, "Dhvani (som) é a origem; dhvani é a causa de tudo. Todo o mundo dos seres móveis e imóveis é abrangido pelo Dhvani" (Anandavardhana in Martinez 1997:125), o que entra em concordância com o princípio do Evangelho de São João postulando um princípio sonoro compondo a cosmogonia. Verbo é ação, portanto, um som que funciona como ação criadora. E deste som, deste princípio criador, ação manifestada, a própria Luz foi feita.

Os paralelos gregos também indicam relações similares na origem dos deuses. A Teogonia de Hesíodo deixa muito clara a função participativa que a música exercia nas atividades sagradas. O início da Teogonia é exatamente um hino às Musas, "Pelas Musas heliconíades, comecemos a cantar". A edição da Teogonia da editora Iluminuras (3a. edição, 1995), com tradução de Jaa Torrano, possui uma vasta introdução histórica onde o tradutor e estudioso expõe justamente esta questão: "A primeira palavra que se pronuncia neste canto sobre o nascimento dos Deuses e do mundo é Musas, no genitivo plural. Por que esta palavra e não outra?" (Hesíodo 1995:21). Sabe-se que as musas são as nove filhas de Mnemosine (a memória) com Zeus, de onde vem o substantivo Música no ocidente. Elas representam as nove artes gregas: poesia épica, poesia lírica, história, música, dança, tragédia, comédia, hinos sagrados e astronomia (nota #2). A evocação do poeta às Musas, portanto, poderia ser explicada de maneira bastante simples como uma referência de agradecimento à sua inspiração, bem como de sua devoção, mas que numa análise pormenorizada revela uma intenção mais simbólica. Numa nota de rodapé, Torrano apresenta a problemática da tradução deste pequeno verso inicial, da seguinte maneira:

O Genitivo-ablativo Mousáon ("Pelas Musas") e o subjuntivo médio-passivo arkhómetha ("comecemos" /"sejamos dirigidos") têm um nuanceamento semântico maior do que o podem suportar as palavras portuguesas de nossa tradução e mesmo maior do que o podem suspeitar os nossos hábitos lógico-analíticos. A distinção entre o sentido próprio à voz média ("comecemos") e o próprio à passiva ("sejamos dirigidos") aqui neste verso principal é muito menor do que o nosso rigor analítico apreciaria ver; a noção de arkhé contida no verbo arkhómetha reúne numa unidade indiscernível o sentido de princípio-começo e o de princípio-poder-império. (Hesíodo 1995:21)

O tradutor não ignora a importância da falha; assim como podemos sem delongas concluir que há alguma forte relação entre a música (no caso representada pelo canto) e o princípio de algo, cuja similaridade com as primeiras palavras do Evangelho de S. João é evidente. É possível estabelecer muitos paralelos entre as diversas culturas indo-européias e seus mitos apenas por este aspecto.

É sabido que dentre os Árias havia uma classe de sacerdotes-cantores, que provavelmente deram origem aos poetas na Grécia e aos brâmanes na Índia. Ainda na Grécia, não podemos deixar de mencionar Pitágoras, cujo sistema filosófico girava em torno de um conceito bastante próximo de nossas investigações: a Música das Esferas era uma relação de harmonia entre os sons e o universo, em que cada planeta ou corpo celeste, ao vibrar, emitia um som, e o conjunto de sons de todos os corpos soava por todo o Universo. Este som era harmônico, e cada estrutura vibratória tinha um paralelo funcional.

Temos também exemplos que registram não somente rituais religiosos acompanhados de música, mas também eventos profanos, destinados ao entretenimento, que uniam a música a algum tipo de imagem. O teatro de sombras chinês, descrito em muitos compêndios sobre cinema como sendo seu antepassado, era constituído por silhuetas com uma fonte de luz por trás e um anteparo translúcido à frente. As sombras projetadas das silhuetas no anteparo movimentavam-se contando uma história, e eram acompanhadas por cantores e instrumentistas. Os registros deste tipo de teatro remontam de mais de 1000 anos antes de Cristo, e não apenas na China, mas em grande parte do extremo oriente, como Java (Indonésia) e Índia, onde ainda existe esta tradição (Parkinson 1995 : 8-9.).

Um pouco mais recentemente, temos o registro de Aristóteles na sua Poética, obra que fundamenta a estrutura estética e formal da tragédia grega. Em sua descrição das partes constitutivas da tragédia, Aristóteles define seis elementos: "É portanto necessário que sejam seis as partes da tragédia que constituam sua qualidade, designadamente: mito, caráter, elocução, pensamento, espetáculo e melopéia. " (Aristóteles 1973:448). Colocando a melopéia, que é justamente a arte de compor melodias para acompanhamento de uma récita qualquer, como um dos elementos constitutivos da tragédia, Aristóteles reafirma a importância da música no espetáculo cênico.

Arlindo Machado, em recente artigo intitulado Da Sinestesia, ou a Visualização da Música, aborda rigorosamente esta mesma temática, começando o artigo revelando que, na verdade, ele deveria chamá-lo "As Imagens da Música". Assim, ele questiona, na mesma proporção, a relação de naturalidade entre som e imagem:

A grande questão hoje, depois de todos os choques e crises que acometeram não apenas a música, mas todas as formas canônicas da arte neste final de século, é saber se a exclusão da imagem é realmente um fato que diz respeito a uma natureza ou especificidade da música, ou apenas um interdito datado historicamente. Sabemos que o termo grego mousiké (literalmente: a arte das musas) designava originalmente um certo tipo de espetáculo que hoje chamaríamos de multimídia, pois incluía não apenas a performance instrumental e o canto, mas também a poesia, a filosofia, a dança, a ginástica, a coreografia, a performance teatral, o trabalho das indumentárias e máscaras e até mesmo "efeitos especiais" produzidos através de jogos de luz, movimentos dos cenários e truques de prestidigitação... (Machado, 1999)


E, neste caso, há concordância entre o passado e o presente. A música é colocada na mesma esfera do ornamento, porém com papel principal nesta ornamentação. Claudia Gorbman, também falando especificamente da música para cinema em seu Unheard Melodies, lança a mesma pergunta: "O que e como a música significa em conjunção com as imagens e eventos da história de um filme" (Gorbman 1987:2), passando, também, pela mesma conclusão a que chegamos, dizendo: "A música tem caminhado lado a lado à representação dramática desde a época do antigo teatro Grego, e sem dúvida antes, como formas rituais" (1987:4).

Falando de Aristóteles, estamos na instância da tragédia, uma representação poética que tinha um caráter estético já muito sofisticado. Trata-se de um evento que hoje trataríamos por multimídia, e que para os gregos era uma obra completa e indissolúvel. Texto, dramaturgia, artes plásticas e música formavam um único corpo, de intenções claramente estéticas, simulacros de ações humanas. Esse ideal de simulacro, como tão bem Platão expressou em sua alegoria da caverna, está enraizado de tal forma na cultura humana, sob suas diversas manifestações, que o cinema, arte disponível segundo uma evolução tecnológica própria do final do século XIX, vem justamente cumprir este mesmo papel, que a tragédia grega outrora cumpria. E com características idênticas do ponto de vista formal, uma vez que a estrutura de construção trágica - conforme descrita por Aristóteles - é encontrada em grande parte dos roteiros cinematográficos. Ao que parece, segundo fontes tão antigas e tão solidamente enraizadas na cultura dos povos, sempre foi natural da espécie humana relacionar som e imagem. A música, compartilhando de estrutura narrativa temporal, teria elementos semelhantes, que podem servir ao reforço ou à condução de uma peça ou filme. Onde estão estes elementos semelhantes, e que as fazem tão próximas, tanto a música como a narrativa dramática?

copyright©2002 Filipe Salles

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