Dissertação de Mestrado - Filipe Salles - 24/06/2002


5.3. Segundo Movimento

Da mesma maneira, o segundo movimento, chamado no programa de Beethoven Szene am Bach, ou "cena à beira de um regato" (o que permite pela primeira vez a denotação explícita da idéia de cena no sentido narrativo), é quase totalmente dedicado aos centauros.

Por seu caráter eminentemente romântico, muito característico das obras do alto romantismo pós-beethoviano de Schumann, Mendelssohn e Berlioz, a música sugere um idílio, uma cena amorosa de suave despertar de paixões. Assim, a figura humana seria fundamental para essa seqüência, e cuja saída foi a utilização da figura mitológica dos centauros, metade homens, metade cavalos.

Disney mesmo (cf. já descrito) utilizou-se de um recurso muito interessante, chocar as pessoas mostrando seios nus de meninas banhando-se num lago para, logo em seguida, mostrar que não se tratava de meninas, e sim de centauros.

O segundo movimento começa com um longo travelling que de certa forma funciona como uma continuação do travelling que encerra o movimento anterior, fornecendo na imagem o reforço da unidade narrativa da forma-sonata. A indicação do andamento é andante molto mosso, que também sugere um ambiente de tranqüilidade muito característico do movimento de câmera e da 'cenografia' escolhida para esta cena. A ondulação do movimento das notas nas cordas, além de sugerir o movimento de câmera, também representam o movimento do próprio regato. O clima é de serenidade, com leves toques de sensualidade.

Dos compassos 1 até 4, temos o estabelecimento do caráter, do clima que irá permear a seqüência. Tons mais escuros, uma atmosfera romântica. A partir do compasso 3, temos uma idéia confusa: neste ambiente tão calmo há donzelas nuas se banhando, a sensação de antítese é inevitável (apesar da naturalidade com que tais imagens aparecem, que atualmente não causariam nenhum rubor), e apenas no compasso 5 é que uma delas sai da água revelando sua natureza híbrida, meio humana, meio eqüina. Uma outra aparece no compasso 7 e temos um corte do compasso 8 para o 13, em que uma série de centauras vão se apresentando de diversas maneiras, aqui já acompanhadas por seus respectivos cupidos.

[Ex.09 - Compassos 1-3: Consolidação do clima]


As donzelas centauras se maquiam com ar despreocupado, até que, no compasso 19, os cupidos verificam a presença de uma manada de centauros machos, que vêm se aproximando. O compasso 20 registra o toque do corne dos centauros, e que coincide com o toque de 6 colcheias da trompa e do clarinete, em mais uma utilização diegética do som. Este toque na trompa possui uma representação muito cara aos compositores clássicos e pré-românticos, pois traduz um motivo de caça, amplamente utilizado neste período, e que denota uma aproximação explícita com um universo bucólico.

[Ex.10 - Compassos 19-20: Chamada do corne de caça]


Há então um corte para o compasso 92, reexposição do tema, e os centauros machos estão chegando. Imediatamente, as centauras começam a se enfeitar, seguindo nisso durante os compassos 94-97. O compasso 98 registra as centauras olhando, escondidas entre as árvores, a chegada dos machos, e eis que são apresentados pelos cupidos. O interessante deste episódio é o detalhe da apoggiatura do compasso 100, que coincide com a abertura da cortina de flores mostrando as centauras para os centauros machos. Elas desfilam de maneira bastante sensual, algo mesmo inusitado para Disney, (há um corte de 2 compassos, 102 e 103) e ao som de um fagote solo, há um close na dança ritual de acasalamento dos centauros (compassos 104-109).

O primeiro contato com um centauro macho e uma centaura se dá no compasso 110, quando a centaura deixa cair uma flor e o centauro gentil a recolhe do chão, entregando-a de volta a quem lhe pertence. Segue-se então, dos compassos 111 até 122 o encontro e a divisão de casais, em que cada centauro escolhe sua donzela. Destaques para a longa linha melódica em legato dos compassos 113-116, que coincide com uma vista panorâmica do ambiente, e uma corrida de um casal centauro ao longe, e também do staccato dos compassos 117-118, que coincide com um centauro na tradicional brincadeira de 'bem-me-quer, mal-me-quer', sendo cada pétala retirada coincidente com uma nota. Até que, ao dar 'mal-me-quer', o centauro joga fora a flor, como quem diz 'não me importo', e abraça a centaura, nas duas últimas notas do compasso 118.

[Ex.11 - Compassos 98-100: A apoggiatura, bastante sutil na partitura, teve amplo uso aqui, servindo como 'ruído de sala' para a cortina de folhas]


Nova apoggiatura no compasso 121 coincide com movimento de balanço da centaura.
Mudança de clima: a harmonia predominante da seção musical passa de fá para si bemol, (seção H, compasso 122 - Coda) e as grandes ligaduras de uma seqüência de semicolcheias nos cellos, violas e violinos dão suporte para uma linha melódica nas madeiras, enquanto trompas e fagotes completam a melodia intermediária. Justamente nessa mudança, há nova informação narrativa. Os cupidos, satisfeitos, balançam a cabeça positivamente, mas percebem imediatamente um centauro solitário, tendo sobrado na partilha das centauras. O centauro sozinho é representado no compasso 125, e suspira em concordância direta com a apoggiatura do compasso 126.

[Ex.12: Compassos 126-127: Contraponto rítmico entre música e imagem]

Os cupidos respondem ao suspiro, mas, de uma maneira bastante original, os suspiros destes não coincide com o grupeto do final do compasso 126, e sim com o longo sol em ligadura, numa espécie de poliritmo (cf. Ex. 12). O grupeto é utilizado para mostrar que eles percebem, em outro lugar, uma centaura nas mesma condições, e que também suspira na apoggiatura do compasso 128. Os cupidos tramam e saem imediatamente, fazendo coincidir o canto dos pássaros (compasso 129), rouxinol (flauta), codorniz (oboé) e cuco (clarinete) com o chamado das flautas dos cupidos.

Há exatamente 3 cupidos, e cada um chega juntamente com o pássaro representado por Beethoven. A analogia destes pássaros com o bucolismo da primavera, estação do acasalamento, é aqui enfatizada: a centaura levanta-se e os seguem, vendo o centauro solitário no compasso 132. Os cupidos fazem o mesmo com o centauro no compasso 133, coincidindo com um outro canto dos pássaros, ao que o centauro prontamente levanta-se, e ambos centauros se encontram no compasso 135. Se aproximam, cumprimentam-se, e seguem para baixo de uma marquise. A partir do compasso 138, o penúltimo, as cortinas de flores, as mesmas usadas para anteriormente abrirem as centauras aos machos, agora se fecham pelos mesmos cupidos. E uma pequena brincadeira no último compasso, 139, finaliza a seção.


copyright©2002 Filipe Salles

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