Dissertação de Mestrado - Filipe Salles - 24/06/2002


5.2. Primeiro Movimento

O primeiro movimento introduz o espírito da obra logo nos primeiros compassos, com uma melodia doce e suave na tonalidade principal. Tal clima traduz com precisão o subtítulo do movimento, Erwachen heiterer Gefühle bei der Ankunft auf dem Lande, "Despertar de alegres emoções ao chegar ao campo".

'Despertar' é a palavra chave para descrever o início da seção em Fantasia: começa com uma espécie de Fade In, mas de características muito próprias, sugerindo um nascer do sol. A imagem do Monte Olimpo vai se tornando mais nítida, conforme o sol nasce e a música se apresenta, no primeiro tema.

Há um zoom out, que nos fornece uma visão geral de todo o ambiente, enfatizando a beleza da paisagem, com suas cores fantásticas. O tema é suave, assim como a combinação cromática em tons pastéis, tonalidades intermediárias de vinho, azul e verde.

Em seguida entram em cena os primeiros personagens, na cabeça do compasso 12. Pequenos unicórnios aparecem como que do nada, surgindo na paisagem do transparente para o visível. Antes de uma sensação de passe de mágica, a imagem sugere que o aparecimento dos unicórnios se deu nos primeiros raios do sol, quando este passa a incidir diretamente sobre os animais, razão pela qual surgem como que 'do nada'. Um artifício muito sutil, mas que nos dá exatamente a sensação de frescor matutino.

[Ex. 01 compassos 12-18]

Segue-se a música e os pequenos unicórnios cavalgando, até que chegam a uma colina, e param (compassos 27-28) e avistam um fauno.
O fauno dança e toca seu aulos (nota #9), e o som ouvido é o do oboé. (compassos 29-30, numa primeira manifestação puramente diegética).

Nos compassos 35-36, em que o tema se mantém em crescendo progressivo para sua entrada em forte com toda a orquestra, volta a imagem dos unicórnios, entusiasmados com o fauno, e descem a colina em sua direção. Os compassos 37-52 são destinados a mostrar a alegria entusiasmante dos pequenos faunos e unicórnios, que brincam entre si num colorido e divertido balé ao som do tema:

[Ex.02 - compassos 33-38 - Aqui, o tema entra em forte e temos uma
imagem abrangente, equivalente a um plano de conjunto]


Deve-se notar que o tema vai sendo apresentado em crescendo, aumentando o número de instrumentos que o tocam, assim como, paralelamente na imagem, o número de faunos tocando aulos vai progressivamente aumentando.

O compasso 53 segue com dois personagens específicos, brincando entre si. Um pequeno unicórnio persegue um fauno, chifrando-o. Os dois brincam de esconder numa coluna, e o fauno, mais esperto, ao sair da coluna esconde-se num pedestal, imitando uma estátua. O unicórnio, ao procurá-lo, passa o olho pela estátua e nem desconfia que seja o fauno. Eis que este então toca seu aulos, desta em sincronia com o timbre do clarinete e do fagote (comp. 57).

O unicórnio ouve mas ao virar-se depara apenas com a estátua. Ele repete mais duas vezes o jogo, (comp. 61 e 63) até que na segunda o unicórnio descobre, e o lambe carinhosamente.

Os compassos 64-66 são, na partitura, a preparação para o segundo tema, e no desenho cumprem função semelhante. São destinados à preparação de um novo elemento, que, coincidindo com o segundo tema, apresenta um formoso e belo vôo de uma família de pégasos. A partitura apresenta um desenho melódico com amplas ligaduras, que sugerem uma perfeita consonância com o pleno vôo dos pégasos, cf. exemplo 3 (compassos 65-71):

[Ex.03 - Entrada dos pégasos, cujo vôo coincide com a
apresentação do segundo tema, com amplas ligaduras]


O vôo dos pégasos toma quase toda a seção equivalente ao desenvolvimento da forma-sonata (que em Fantasia foi completamente suprimido da partitura, mas que em termos de imagens é detectável), mas com um pequeno interlúdio destinado aos pequenos pégasos filhotes. Os compassos a partir do 90 sugerem vôos menores, mais jocosos, e então temos a entrada de um personagem fundamental: um pequeno pégaso preto, caçula, que está aprendendo a voar. Ele será amplamente requisitado, daí para frente, uma vez que sobre ele é impresso o caráter dos desafios que o início da vida nos apresenta, e que são tomados por singular naturalidade, podendo o espectador compartilhar o sentimento de esforço do pégaso em conseguir alçar seus primeiros vôos. A presença da mãe como tutora e o amor entre ela e seus filhos (amplamente retomado na seção da tempestade) é também um aspecto de reforço do carisma extremo que há nos pégasos.

O jovem pégaso preto tenta voar e numa espécie de vai-e-vem para cima e para baixo, segue rigorosamente a linha melódica que se segue, compassos 93-95. O compasso 96 coincide com a queda do pégaso:

[Ex.04 - Compassos 93-99 - pégaso tentando voar e cai. A linha melódica faz
um percurso semelhante, um vai-e-vem que tenta alçar vôo e cai, apesar de 'cair para cima', no dó 3 ]


A figura mostra o pégaso no momento de sua queda. A partitura indica, neste momento, uma colcheia solitária no compasso, acentuada, num acorde de tônica (fá maior). A idéia de repouso vem do uso do acorde fundamental, e a queda, da acentuação logo após o desenho melódico ascendente/descendente.
Segue uma nova tentativa: ele alça novamente vôo, dos compassos 97-99, e novamente entra num vai-e-vem dos compassos 100-102, caindo no compasso 103. Entra então a figura cativante da mãe, com todo o arquétipo do amor materno embutido (compassos 104 - 114), produzindo um efeito carismático muito típico de Disney. A mãe ajuda o pequeno pégaso, que consegue, então, alçar vôo (compassos 115-126).

A partir do compasso 127, temos um bailado de pégasos voando. Longas ligaduras entre as notas dó-sol traduzem em imagens um vôo pleno e harmonioso, passando sobre uma nuvem no compasso 135.

[Ex.5 - Compassos 131-138: A música sugere amplitude de
movimento, traduzida pelo vôo dos pégasos]


O pequeno pégaso preto sempre um pouco atrás, mas nunca esquecido, nos dá uma leve pitada de humor à cena. Mas trata-se de um humor específico, muito suave, como a sensação de achar engraçado o que um bebê faz, sempre acompanhado de um sentimento arquetípico de maternidade, de beleza e grandiosidade.

Esse vôo dos pégasos é contínuo com a música até o compasso 150, quando entram numa nuvem. O sair da nuvem, triunfal, é dado no compasso 422 (em fortíssimo), um corte de toda a seção central e reexposição do movimento, já saindo na Coda.
A repetição do tema nas madeiras em piano representa o pequeno pégaso, atrasado, mas sempre esforçado, saindo da nuvem logo atrás (426-7).

Segue-se então um longo vôo final (compassos 429-435) e pousam nas águas calmas de um grande lago, fazendo coincidir a cabeça dos tempos com o pouso de cada pégaso:

[Ex.06 - Compassos 433-439 - pontuar a ação dos personagens com o ritmo da música é um recurso muito comum, e também bastante funcional, desde que usado com clareza estética, para não incorrer num clichê]


Mudança de cena e temos a família de pégasos nadando no lago tal qual uma família de cisnes, entrando numa marquise com folhas de primavera caindo pela água, num clima bucólico de intensidade romântica. No meio do compasso 446, há novo corte, mas para a mesma cena (jump-cut) mais próxima. Isso coincide com a seção das cordas em forte (apesar de não haver a indicação explícita na partitura), que funciona musicalmente como um epílogo. De fato, os pégasos vão nadando num grande plano seqüência, afastando a cena em zoom out muito lento, até uma vista geral do belíssimo lago. A seção culmina num fortíssimo indicado no compasso 458, e logo em seguida, compasso 459, Stokowski faz um brusco diminuendo. Embora o diminuendo só conste da partitura a partir do compasso 464, o compasso 459 é que coincide com uma enorme revoada de pégasos, reforçando a condição dos animadores em ter seguido a música gravada e não uma partitura. (nota #10)

Há então uma nova mudança de cena, e temos o pouso, na água, de 3 pégasos, fazendo o encontro com as águas do lago coincidir com algumas figuras rítmicas específicas. É interessante notar que, talvez para sair justamente do clichê da pontuação rítmica, Disney se utiliza das últimas marcações dos tempos fortes para proceder uma aproximação até o close do pégaso:

[Ex.07: Compassos 472-478: Aproximação do pégaso]


O mesmo ocorre com os pégasos filhotes, da família de pégasos. Numa brincadeira de pular na piscina, eles vão caindo na água, como crianças brincando ao sol. De maneira análoga, a queda de cada um dos 4 pégasos, até a última, que é na verdade o pégaso preto demonstrando que havia aprendido a voar, seguem rigorosamente a marcação rítmica da cabeça dos compassos 479, 483, 485 e 487. O pégaso preto desce suavemente nos compassos 488-492.

A partir do compasso 493, temos a melodia dos violinos em pianíssimo, em que Disney faz um travelling de um plano geral do lago e dos arredores do monte Olimpo. Este travelling, suave como a música, acaba mostrando um pequeno fauno numa montanha, tocando seu aulos, que coincide com o som da flauta do compassos 498-502. Aí está novamente, tal qual o início, um exemplo de som diegético em Fantasia, ou seja, há indicação clara, no desenho, de uma fonte sonora soando.

Segue-se então os compassos finais do movimento, muito significativos. Os clarinetes e os fagotes em piano, fazem uma escala ascendente (compasso 503), que em imagem se traduz por uma flor que vai caindo de uma cachoeira (notar que uma escala ascendente, aqui, é usada para, na imagem, mostrar uma descida). Entra então a orquestra toda em forte, nos acordes finais, e na imagem, uma fabulosa seqüência de cachoeiras e quedas d'água, assim dispostas:

[Ex.08 - Cachoeiras: destaque para a flor, que desce a corredeira na escala ascendente]


Compassos 505-6 - 1ª cachoeira zoom out
Compasso 507 - 2ª cachoeira (parada)
Compassos 508-510 - 3ª cachoeira (panorâmica vertical)
Compassos 511-512 (final) - 4ª cachoeira (zoom out - travelling)

O impacto grandioso das cachoeiras é coincidente com as cadências do final do movimento: as relações de tônica e dominante adicionadas às imagens promovem uma sensação de paz épica, sendo o último acorde piano, e a imagem é extremamente abrangente (diferentemente do paradigma usual em associar a intensidade do forte ao plano geral).

E assim termina o primeiro movimento, quase que inteiramente dedicado aos pégasos, muito provavelmente por seu caráter melódico de grande fluidez e amplas ligaduras, que se traduz numa imagem de vôo pleno e vigoroso.


copyright©2002 Filipe Salles

ANTERIOR ÍNDICE PRÓXIMA