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Na Água (2023, Hong Sang-soo) | 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

Na Água (2023, Hong Sang-soo) | 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

Por João Ferreira

São poucos os artistas que escondem suas obras atrás de uma parede de concreto. Menos ainda são aqueles que, por alguma razão, atestam ao público a existência de uma obra, mas optam por ocultá-la. Hong Sang-soo não se encaixa nem no primeiro, nem no segundo caso. O cineasta coreano, agora com mais de 30 filmes em sua longeva carreira, lança o que, à primeira vista, aparenta ser seu filme mais turvo, por optar em constituir praticamente todos os planos de um desfoque na imagem. A decisão de Sang-soo, entretanto, vai muito além de um simples véu linguístico. Tudo que o espectador precisa está em plano e nele se desintegrará.

 

Em Na água, ao contrário das obras anteriores de Hong — com personagens por volta dos 40 anos de idade —, o enfoque recai sobre uma juventude melancólica e perdida. Esta juventude, embora carregada de sonhos e aspirações, não parece encontrar um caminho claro, sobrevivendo por meio de lampejos de desejo e pequenas epifanias “insignificantes”, que muitas vezes a conduz para destinos incertos. O jovem diretor Seoung-mo (interpretado por Shin Seok-ho) personifica esse dilema ao convidar dois amigos, Sang-guk (Ha Seong-guk) e Nam-hee (Kim Seung-yun), para participarem de um filme que ele próprio ainda não concebeu por completo. Apesar de inúmeras tentativas, em vários testes, nenhuma delas consegue satisfazer o jovem diretor.

 

A técnica do desfoque de imagens, característica mais marcante do filme, atua como uma ferramenta que reforça a autorreflexão do diretor sobre o processo de criação cinematográfica. Ela enfatiza a valorização dos acasos enquanto, ao mesmo tempo, cria uma camada sensorial que evoca a relação de William Turner com a luz e o movimento em “Vapor Numa Tempestade de Neve”, bem como a estética da videoarte de Bill Viola, notavelmente em "Chott el-Djerid (A Portrait in Light and Heat)". Nessa abordagem desprovida de tridimensionalidade, os personagens que povoam o universo de Hong se tornam integrantes da própria imagem; seus contornos ausentes revelados apenas pela luz, cores e sombras. Assim, seus corpos se metamorfoseiam em figuras espectrais. Um exemplo notável é o da catadora de lixo, que o jovem cineasta encontra em meio à concepção de seu filme, e que o inspira enquanto trabalha voluntariamente recolhendo sujeiras da praia. É curioso como a personagem interpretada por Nam-hee na filmagem de Seoung-mo parece ser quase idêntica à mulher observada na praia, devido ao desfoque empregado por Hong.

 

A cena final do filme representa o ápice da jornada apresentada. Ela nos lembra que não é possível escapar do acaso; afinal, o acaso é o que deu origem à principal característica de Na água. A angústia expressa por Seoung-mo, enquanto caminha em direção ao mar, acompanhada por sua própria composição musical captada pelo microfone de sua câmera, encerra o filme que ele produziu, dirigiu e agora protagoniza. A autoria, como concebida pela Nouvelle Vague, é viva e pungente, então para que os cineastas contemporâneos como ele prosperem em seus respectivos universos cinematográficos é necessário abraçar o acaso: o erro é uma possibilidade. O desfecho de Seoung-mo no filme é angustiante, mas para os jovens cineastas que o assistem, ele não precisa o ser.

 

O novo filme de Hong Sang-soo nos leva a refletir sobre esse aspecto da juventude contemporânea, cheia de sonhos e aspirações, contudo, com frequência perdida em um mundo incerto. A última cena, embora angustiante, finaliza o filme como um lembrete de que o acaso que tanto angustia Seoung-mo desempenha um papel fundamental na criação artística, e a autenticidade tão buscada ocasionalmente emerge da vulnerabilidade. Em última análise, a obra de Hong Sang-soo nos convida a refletir sobre a natureza do processo criativo e a aceitar que, apesar do fim trágico da personagem do protagonista em seu filme, o erro e o acaso podem ser catalisadores de uma expressão artística autêntica e inovadora.

 

Biografia:

João Ferreira é estudante de Cinema na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) onde idealizou, dirigiu e editou seu primeiro curta-metragem. Seu interesse recai sobre narrativas crípticas e intrincadas e é altamente influenciado pelo cinema amador e experimental.

 

A cobertura do 47º Mostra Internacional de Cinema São Paulo faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

Agradecemos a toda a equipe da Assessoria da Mostra por todo o apoio na cobertura do evento.

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção e Edição: Bruno Dias

Edição: Davi Krasilchik, Luca Scupino, Fernando Oikawa e Gabriela Saragosa

Edição Adjunta e Assistente de Produção: Davi Krasilchik e Rayane Lima