Dissertação de Mestrado - Filipe Salles - 24/06/2002


3.3. A história de Fantasia


Fantasia é uma espécie de resumo e compêndio de todas estas tendências anteriormente anotadas; há nele o mais típico catálogo de paradigmas musicais aplicáveis às imagens (tanto do ponto de vista cinematográfico puro como para o desenho animado), seus clichês, e também a transcendência destes padrões através de experiências abstratas muito próximas do conceito de Visual Music, tal que é uma ferramenta largamente útil para os fins aqui propostos. E não apenas isso, Fantasia é também um filme importante para a própria história e desenvolvimento da trilha sonora no cinema, como foi anteriormente citado, e que marcou sua época, muito mais que as experiências de Fischinger e outros cineastas experimentais, pelo mesmo motivo que tornou o The Haunted Hotel a primeira animação conhecida e adotada como marco: a divulgação através da poderosa empresa produtora e distribuidora Disney, cujo nome era sinônimo de qualidade e excelência, desde Branca de Neve e Pinóquio, sem contar o pioneirismo do Steamboat Willie.

Fantasia
, neste aspecto, também é um filme absolutamente pioneiro e corajoso do ponto de vista estético, uma vez que Disney já havia firmado um determinado padrão narrativo e moral através dos contos de fadas. Marcelo Tassara (in Falcão 1996:23) considera este aspecto bastante relevante, pois foi a única vez que Disney preocupou-se mais com o público adulto que infantil, além de dar forma a expressividades heterodoxas no tratamento da imagem animada. Enquanto projeto industrial (que também é um diferencial importante levando-se em conta o tradicional conservadorismo que aflige grandes projetos financeiros), o filme também se destaca pela absoluta ousadia em tratar a música como foco narrativo e não estabelecer um ciclo de seqüências ligadas à algum fio condutor - a não ser a própria música. E, de fato, durante muito tempo, Fantasia permaneceu no repertório de maneira bastante comedida, mesmo tendo sido o filme mais caro que os estúdios Disney produziram. Envolveu centenas de técnicos, ilustradores, animadores, músicos e um enorme aparato de equipamentos moderníssimos, inclusive tendo patrocinado pesquisas concernentes ao som no cinema, em conjunto com a Bell & Howell e a RCA. Foi o primeiro som estereofônico simulado do cinema.

Segundo as fontes oficiais do próprio estúdio Disney, através de um vídeo produzido especialmente em comemoração aos 50 anos do filme, a idéia de Fantasia nasceu do desejo de Walt em retomar a popularidade de Mickey em seus primórdios, já que outros personagens estavam mais carismáticos (como o recém-criado Pato Donald) frente a um público cada vez mais crescente. A lembrança de sua empreitada em Steamboat Willie veio à mente de Walt, e fixou-se na idéia de um desenho que fosse igualmente inovador e pioneiro. Na verdade Disney já tinha produzido outros desenhos baseados em música, a série Silly Symphonies, mas com sons diversos pontuando as tradicionais onomatopéias típicas dos desenhos, e, tendo a idéia fixa de um desenho musical, a inovação imaginada por ele partia da premissa de não incluir nenhum outro som que não fosse a música. Aliando seu padrão narrativo da moral dos contos de fadas e seu desejo de uma ação pontuada pela música, a sugestão mais evidente era O Aprendiz de Feiticeiro, poema sinfônico que Paul Dukas escreveu sobre um conto de Goethe. Neste conto, um jovem aprendiz superestima sua capacidade e perde o controle de sua mágica. A música era perfeita para este propósito, altamente 'descritiva', sem deixar de ser 'musical', e Walt já tinha detalhes dos quadros da ação em mente, quando seus técnicos começaram, em 1938, a trabalhar no desenho. A idéia era tão promissora que a equipe não poupou esforços para tornar esta seqüência a melhor que já havia sido feita. Mickey passou por uma operação plástica, onde modificaram radicalmente o desenho de seus olhos, dando-lhes mais contornos, diminuindo a pupila com o objetivo de torná-lo mais simpático.

Para o trabalho meticuloso de som que a animação exigiria, Walt chamou um dos mais famosos maestros em exercício nos Estados Unidos, o inglês Leopold Stokowski. Hollywood não lhe era estranha, era contratado da Paramount para orquestrar e reger música para filmes, e já havia trabalhado até como ator, com o filme Cem Homens e uma Garota (1937) (nota #6), o que muito contribuiu para tecer afinidades imediatas com o sistema de produção Disney. Figura extrovertida e carismática, Stokowski logo se empolgou com o projeto e se ofereceu para reger a música que seria usada na animação. Coincidentemente, Stokowski já havia, pouco antes, sido contatado por Oskar Fischinger ainda em Berlim, para ceder os direitos de algumas orquestrações que fez da obra de Bach, pois Fischinger intencionava fazer filmes sobre elas. O próprio Stokowski ficou bastante empolgado com a idéia da Visual Music, e escreveu a Fischinger: "Eu ficaria muito feliz se pudéssemos trabalhar juntos, você fazendo o que é visto e eu o que é ouvido" (Moritz, 1998). Os dois começaram a trocar correspondências, e, neste ínterim, Disney justamente havia chamado Stokowski para Fantasia. Stokowski era absolutamente exigente e detalhista, e, ao mesmo tempo em que percebeu as intenções de Disney, verificou o quanto havia em comum com Fischinger, convencendo-o que o projeto era muito complexo para que ele animasse sozinho. Assim, unindo o talento deste ao dinheiro daquele, convidou-o a trabalhar com Disney. Como Fischinger já estava residindo nos EUA, aceitou sem delongas. Stokowski tinha uma visão bastante ampla e lúcida, e sua preocupação em pouco tempo foi direcionada para a questão musical. Ao ouvir o ambicioso projeto de Disney, e conhecendo o trabalho de Fischinger, percebeu o potencial de vanguarda do filme, e exigiu inovações técnicas igualmente na gravação do som. Ele esteve presente nos primeiros testes do som estereofônico em 1933, realizados pela RCA e pela Bell System, e queria ver algo incomum no som do filme, já que outros detalhes técnicos também seriam inovadores. Disney, ávido para iniciar o grande projeto, concordou imediatamente em gastar o que fosse necessário para conseguir o melhor som já gravado para um filme. Quando perceberam que só o som do filme custaria aos estúdios Disney 400 mil dólares, o irmão de Walt, Roy Disney, que cuidava das finanças, interveio: "Teremos prejuízo. Um curta não cobre tamanhos gastos!" E então Walt retrucou: "Tudo bem, juntamos vários curtas e faremos um longa-metragem. Um 'filme-concerto'". E assim, quando começaram a trabalhar em Fantasia, ele foi inicialmente chamado de "Filme-Concerto".

Para participar do projeto, Walt chamou Deems Taylor, compositor, comentarista de rádio e um dos principais musicólogos dos EUA, para, junto com ele e Stokowski, escolherem músicas que permitissem interpretações artísticas convincentes para animação. Após longas sessões auditivas, chegaram a 8 peças que se adequavam a duas premissas básicas do instinto empresarial de Disney, o apelo comercial e o desafio estético. Disney preocupou-se em equilibrar peças eruditas de gosto popular com outras mais heterodoxas e pouco acessíveis do grande público, na intenção de popularizar a música erudita. As peças selecionadas foram:

1) Tocata & fuga em ré menor, Johann Sebastian Bach, BWV 565, arranjo orquestral de Stokowski
2) Suite Quebra-Nozes op.71a, Piotr Ilitch Tchaikovsky, contendo 6 danças originais do balé (seleção das peças do próprio Stokowsky)
3) O Aprendiz de Feiticeiro, Paul Dukas, com pequeno arranjo na orquestração e nas repetições, pelo próprio Stokowski
4) Sinfonia no.6 em fá maior op.68 "Pastoral", Ludwig van Beethoven, com cortes profundos nos ritornelos, e até suprimindo seções inteiras, reduzindo sua duração original à metade.
5) A Sagração da Primavera, Igor Stravinsky, com profundas modificações na estrutura da obra original (que inclusive muito irritou Stravinsky)
6) Dança das Horas, Almicare Ponchielli, com suaves alterações na instrumentação
7) Noite no monte calvo, Modest Mussorgsky, com alterações drásticas na orquestração e na estrutura da peça, cujo final foi emendado com a peça posterior,
8) Ave Maria, Franz Schubert

Todas as alterações foram feitas pessoalmente por Stokowski.
O próprio Taylor, no início de Fantasia, nos introduz ao universo do filme com um breve resumo do que o espectador verá, através de um pequeno filtro estético: os tipos de música utilizados.

Taylor anuncia três: 1) Música que conta uma história, 2) Música que "pinta" um quadro e 3) Música absoluta, ou seja, aquela que se sustenta em si mesma.

Do primeiro caso, podemos acrescentar que se trata da escolha mais óbvia. São músicas que foram escritas propositadamente para descrever uma ação narrativa completa, e por isso, além de já possuírem um caráter descritivo, estão imbuídas de contornos melódicos e estruturas formais propícias à associação imagética natural que elas mesmas propõem. É o caso, claro, do Aprendiz de Feiticeiro, da Noite no Monte Calvo e da Dança da Horas. O segundo tipo já torna um pouco mais complexa a análise, pois a definição que Taylor dá a este gênero explorado em Fantasia é por si mesma metafórica e mais ampla: "pintar um quadro" musicalmente é uma analogia compreensível num pensamento reflexivo abstrato, algo de intuitivo até, mas de concepção concreta difícil; Está-se falando de duas formas de arte opostas pelo suporte tempo/espaço: a pintura situa-se num eixo de concepção espacial, deixando o aspecto temporal em aberto e em construção cada vez que a obra é atualizada por um espectador, ao passo que a música segue o inverso disso, o espectador constrói o espaço, pois a música situa-se sobre o tempo. Portanto, devemos entender que "pintar um quadro" refere-se mais à maneira de interpretar a obra musical, em oposição à "música que conta uma história", do que propriamente a um confronto de suportes. A pintura não possui eixo narrativo linear, e assim, uma possível "narratividade" envolvendo essas músicas, daria muito mais abertura a livres interpretações. Os exemplos do filme em si mesmo corroboram tal afirmação, pois as animações baseadas na música narrativa, tanto o Aprendiz de feiticeiro, como a Noite no monte calvo e a Dança das horas, seguem rigorosamente os programas descritivos propostos originalmente pelo compositor. Mas, já no caso de obras como a Sagração da Primavera, a Sinfonia Pastoral e o Quebra-nozes, as animações seguem propostas narrativas muito diversas daquelas pensadas por seus autores. Mesmo no caso da Sagração e do Quebra-Nozes, que são ballets e possuem um argumento narrativo, este é quase que completamente ignorado em seu sentido literal, entretanto, pairando determinados aspectos que contém estruturas paradigmáticas semelhantes, dando uma coerência extraordinária à nova roupagem. Se pegarmos a Sagração como exemplo, os registros do próprio Stravinsky são claros quanto ao argumento da obra:

Ocorreu-lhe [a Stravinsky] sob a forma de música, um tema, que por sua vez lhe sugeriu a imagem de um rito pagão da pré-história da Rússia: uma dança de sacrifício na qual uma moça, a mais bela da aldeia, dança, dança até que morre. O ballet divide-se em duas partes. Na primeira, que abre com música selvagem, meio dissonante, tão velha quanto a Terra, mas tão jovem como a primavera, moços e moças dançam celebrando jubilosamente a renovação da Terra (...) Na Segunda parte é escolhida uma moça. Deixam-na só. Da floresta surgem os antepassados da tribo e formam um círculo ao redor da moça, Cativa do costume antigo e de suas próprias crenças terríveis, ela dança, dança num longo e estático ritmo sincopado, até que não pode mais dançar nem respirar mais... Os antepassados erguem seu corpo para o céu. (Littel 1959:30).


Desconsiderando os cortes e alterações feitos por Stokowski na partitura, a Sagração em Fantasia se utiliza de um argumento muito diferente: a própria história da Terra, de sua formação, passando pelo aparecimento dos primeiros seres vivos, e sua evolução até os dinossauros e sua extinção, tal qual a ciência da época (1939) explicava a biogênese. Entretanto, tal argumento encaixa-se com perfeição no conjunto paradigmático possível da Sagração, e estabelece com ela uma relação extremamente harmoniosa de causa e efeito. Determinados paradigmas, como a ambientação pré-histórica, a rudeza das pedras e vulcões primitivos e a selvageria dos animais antidiluvianos e jurássicos, são tão condizentes com os ritmos bárbaros e harmonias dissonantes da obra que não causam estranheza ao espectador do filme; como se música e imagem tivessem a mesma intenção. Nem mesmo os princípios morais, tão caros a Disney, foram poupados, pois Disney queria imprimir um realismo extremo na animação, como sugeria a música, e explicou para seus animadores que não queria ver "bichinhos simpáticos caminhando graciosamente", queria ver dinossauros de verdade, repugnantes, como seria realmente. E então seus assistentes se espantaram: "Como assim, de verdade?" Um grave problema: Como andava um dinossauro? É difícil criar em cima de algo que não se tem referência e ainda tentar ser realista. Os animadores pesquisaram diversas fontes, de bibliografia a museus de história natural, consultando especialistas para tentar chegar o mais próximo possível do que teria sido o real. O resultado foi uma seqüência forte, no sentido que não se poupou nem a vitória do bem sobre o mal, que é sempre a solução moral de Disney. Bichos comem outros bichos com uma naturalidade atípica para Disney. É uma das mais ousadas partes de Fantasia, pois reafirma o sentido da preocupação estética sobre a preocupação moral.

O mesmo se poderia dizer da Sinfonia Pastoral, embora esta não contenha, originalmente, nenhum "programa" narrativo. Da "expressão de alegres sentimentos à chegada no campo" (subtítulo do primeiro movimento, pelo próprio Beethoven), à apresentação da paisagem mitológica da Grécia antiga, com seus faunos, pégasos e centauros, há também harmonia de paradigmas. Neste episódio, por ter naturalmente um cenário fantástico, Disney permitiu aos animadores o uso totalmente livre das cores. Era a primeira vez que não era necessário o céu ser azul nem as arvores verdes. O resultado é fascinante: Vemos árvores roxas, céu amarelo, montanhas lilás e em nenhum momento estranhamos tais escolhas cromáticas. Vários ilustradores chegaram a criar cores nunca antes experimentadas para reproduzir todo um ambiente etéreo.

Enquanto a liberdade de usofruto nas cores empolgava os desenhistas, na mesma proporção enfrentavam um enorme problema, algo similar ao que a Sagração apresentou: a anatomia. Desenhavam bichos e pessoas, mas como desenhar ambos num só personagem? Como empregar toda a técnica de anatomia em desenhos cujos personagens eram metade homem, metade cavalo? E as mulheres? O que mostrar, o que não mostrar? Hoje nos parecem problemas banais, mas não era sem receio que, no final da década de 30, e, principalmente, falando em um desenho associado à Disney, os animadores preocupavam-se com a sugestão de lascividade e erotismo suscitadas pelos personagens míticos. Mostraram as provas de centauros namorando à beira de um lago, e, embora o próprio Disney aprovasse as concepções, não foi sem dificuldades que se convenceu a um meio-termo razoável entre a poesia e leveza próprios de um desenho animado e todo o erotismo sugerido pela seqüência. A preocupação estética era fundamental, mas que referências haveriam de estética mitológica? Após a exibição, muitos críticos, e mesmo o público, ficaram de certa forma indignados com centauros-fêmea exibindo o peito sem cobertura, cupidos nus e um Bacco bêbado.

Na suíte Quebra-Nozes de Tchaikovsky, Disney nos apresenta um ballet não como um conto de fadas, onde, na história original, o Quebra-Nozes se transforma num príncipe e casa-se com Clara, visitando terras maravilhosas povoadas de seres culinários, doces, balas, chocolates, chás e cafés. Antes, Disney evoca um "ballet natural", onde as flores, peixes e cogumelos são protagonistas, embora abra uma concessão às fadas nas extraordinárias seqüências da "valsa das flores" e da "dança da fada açucarada". E não há uma narrativa entre as sessões, são "quadros" dançantes que podem servir individualmente, ou antes, independentemente uns dos outros, mas que evocam, em certa medida, alguns índices visuais e uma concordância destes ao sentimento típico que inspira o ballet, as festas natalinas. Do Quebra-Nozes, no entanto, o trecho mais famoso acabou por ser a "Dança chinesa", onde pequenos e carismáticos cogumelos dançam como mandarins chineses. Este episódio é particularmente cativante por causa de um pequenino cogumelo que não acerta o passo, sendo deixado sempre para trás, mas que se torna, por isso, o foco de atenção da seqüência. O animador Art Babbitt inspirou-se num personagem dos "Três Patetas" para compor o movimento que indicava a frustração do pequeno em não conseguir acompanhar os demais.

Provavelmente, é sob este aspecto, mais "livre" entre as possíveis associações da música e das imagens, que o narrador houve por bem classificar como "música que pinta um quadro".

Mas não podemos dizer nem que o que está se fazendo é transformar música em pintura, nem o oposto, pois ambas apresentam como resultante uma arte, a cinematográfica, e à cinematografia estão subordinadas. Por isso mesmo também não devemos supor que tal metáfora advenha de uma idéia de "fusão" entre uma e outra, ainda mais porque todas as peças de Fantasia compartilham desta fusão simples onde há um jogo de encaixe entre o visual e o auditivo. Mas, antes, podemos pensar numa relação similar à da Visual Music, que não é a de tratar a imagem como ilustração da música e vice-versa, e sim buscar uma semelhança de caráteres, capazes de unir paradigmas através dos jogos de causa e efeito, entre o que está sendo proposto pela música e o que está sendo representado pela imagem.

Se no primeiro tipo de música, a música descritiva pura, o argumento já se apresenta completo, ou seja, há uma história originalmente associada à música que só precisa de uma roupagem visual (apenas neste caso, que era a intenção de Disney ao optar por determinadas músicas cujo argumento já está pronto), o segundo tipo, seria uma fase intermediária entre este e o próximo, a música absoluta, e neste segundo tipo a idéia está apenas sugerida, dando aos animadores a incumbência de completar com imagens com uma determinada sugestão de narrativa. Este toque de personalidade sem dúvida é um fator decisivo para criar toda a magia dos movimentos, que é uma marca registrada do estilo Disney.

Quanto ao terceiro tipo, "música absoluta", onde se encaixam a primeira seqüência do filme, a Tocata e Fuga em ré menor de J.S. Bach, e a última, a Ave Maria de Schubert, os animadores aí enfrentavam um grave inconveniente: não existia, até então, nenhum paradigma visual que pudesse ser usado como parâmetro ou ponto de partida para desenhar sobre a música.

Sob este aspecto, o trecho mais difícil de animar foi o primeiro, a Tocata e Fuga, por trata-se de "música absoluta", ou seja, música por ela mesma. É o terceiro e último caso citado por Deems Taylor no início de Fantasia. A 'música absoluta', apesar de sustentar-se em estruturas particulares à sua linguagem, não está condenada à total incompatibilidade visual. Apenas não foi escrita com a intenção narrativa de outro contexto qualquer, e por isso sua interpretação e conseqüente passagem para o universo visual é mais abstrata, tendo uma afinidade muito maior com imagens igualmente abstratas - exatamente o que Fischinger fazia em seus filmes. A grosso modo, os animadores, e o próprio Disney, sentiram-se ao mesmo tempo excitados - pela ousadia -, e temerosos - pelo possível fracasso, pois nunca haviam trabalhado antes com essa dicotomia abstrato/concreto. O animador Marc Davis conta em entrevista que fazer um desenho abstrato, para a época e para a Disney de Branca de neve, era de um risco comercial inimaginável, pois só artistas experimentais, animadores europeus, os faziam. Por isso, recorreram imediatamente aos trabalhos de Fischinger, que começou a desenhar esboços para a seqüência de Bach. Embora Fischinger já estivesse colaborando em outras seqüências de animação, foi incumbido de criar toda esta seção, sendo obrigado a apresentar lay-outs e storyboards com rigorosa periodicidade. Trabalhou durante quase um ano inteiro sobre estes desenhos, mas teve enormes dificuldades de se adaptar às pressões impostas pelos prazos do estúdio.

O próprio Walt ficou em dúvida quanto à abstração sugerida. Sabia que não havia outro jeito de ilustrar a música, pois vesti-la com uma história seria totalmente inverossímil (afinal, Disney possuía um senso estético apurado), e perguntou várias vezes a Stokowski o que ele achava dos esboços. Segundo Moritz, Stokowski demonstrou-se cauteloso, e Disney fez o mesmo, procurando um meio-termo entre a total abstração de Fischinger e alguns ícones reconhecíveis para o grande público a fim de não deixá-los totalmente 'sem rumo' segundo os padrões iconográficos Disney. Em 28 de fevereiro de 1939, Walt escreveu a Fischinger, de maneira bastante informal:

Tudo que foi feito no passado neste tipo de coisa têm sido cubos e formatos diferentes movimentando-se com a música. Tem sido fascinante. Com a experiência que nós temos tido aqui com nossa equipe - eles enlouqueceram com ela. Se nós pudermos ir um pouco além e conseguir alguns designs inteligentes, a coisa se tornará um grande sucesso. Eu gostaria de vê-la tipo near-abstract (perto de abstrato) como eles chamam - não puro. E novo. (Disney in Moritz, 1998)

partindo de sua idéia anterior, numa outra carta de 24 de janeiro, em que diz: "Você deve dar alguma coisa que o público irá reconhecer"., sugerindo que em determinada parte da música as imagens fizessem alusão a um grande órgão, tal qual a música parecia sugerir, dando assim referências concretas ao público. (Moritz, op. Cit.)

Fischinger entendeu tais imagens reconhecíveis à sua maneira, e continuou desenhando. Seus esboços eram tão bons que Disney, ávido pela emoção de um desenho inovador (em várias cartas frisou a intenção de que as seqüências deveriam conter 'something new', apesar de sua cautela), preferiu deixá-lo trabalhar até que seus animadores pudessem aproveitar a maior parte do material. Quando Fischinger percebeu que seu trabalho seria aproveitado em partes, pela extrema ousadia de suas imagens, além da capacidade comercial de Disney, deixou o estúdio, tendo seu trabalho finalizado pelo animador Cy Young. Fischinger ficou extremamente desapontado e escreveu a um amigo:

Eu trabalhei neste filme por nove meses, e depois de passar por algumas intrigas e especulações sobre a vida alheia (algo que acontecia muito nos estúdios Disney) eu fui transferido para um departamento completamente diferente, e três meses depois eu deixei Disney novamente, concordando em abrir mão do contrato. O filme Tocata e Fuga de Bach não é realmente meu trabalho, ainda que meu trabalho esteja presente em alguns pontos; ele é como que o trabalho menos artístico da fábrica. Muitas pessoas trabalharam nele, e sempre que eu colocava uma sugestão para este filme ela era imediatamente cortada em pedaços e morta, ou então levava dois, três ou mais meses para que a sugestão tivesse espaço na mente de algumas pessoas conectadas e que eram efetivamente ouvidas. Uma coisa eu definitivamente descobri: que nenhum verdadeiro trabalho de arte pode ser feito de acordo com o procedimento adotado nos estúdios Disney. (Moritz, 1974b)


Apesar disso, sua contribuição foi essencial, e seu trabalho reconhecido muito tempo depois, quando um documentário da Disney incluiu a seqüência de animação que Fischinger havia feito para A Mulher na Lua de Fritz Lang, 25 anos antes.



Figura 7: Oskar Fischinger desenha nos estúdios Disney


A idéia de ter a Tocata e Fuga como peça introdutória de Fantasia não foi ocasional. Stokowski e Disney imaginaram que a abertura de Fantasia deveria ser uma experiência de interpretação de cor e imagem, com a música movimentando estes dois elementos. Desta forma, esperavam "introduzir" o espectador no universo do filme. A própria escolha da Tocata e Fuga deve-se ao fato de, além da magnificência da música, na versão orquestrada de Stokowski, ela por si mesma sugere este tipo de colorido abstrato que permitia a Disney mostrar o que seria Fantasia.

Mas nem tudo é 'artístico' no sentido estético da palavra. A seqüência da Dança das Horas é uma das mais comerciais da Disney, sendo muitas vezes exibida, como o Aprendiz de Feiticeiro, independente do resto do filme. Estas duas e a Noite no Monte Calvo foram as únicas que seguiram as intenções do autor. Ponchielli imaginou um ballet, onde aconteceriam coisas durante a passagem das horas num dia. Até certo ponto, este objetivo foi cumprido. Mas certamente Ponchielli nunca teria imaginado que seu ballet seria dançado por hipopótamos, elefantes, avestruzes e jacarés. É uma das mais carismáticas seqüências Disney, de humor escrachado e abundante. Walt sabia que para terem graça, precisaria torná-la verossímil. O animador Art Babbitt filmou então uma pequena tomada de uma companhia de ballet russa dançando com a gravação de Stokowski. Estas imagens serviram como base para o trabalho de animação do trecho. Os artistas da Disney conseguiram dar leveza e plasticidade, ainda que irônicos, a um bando de animais desengonçados, usando modelos reais para a reforçar a impressão de que um hipopótamo pudesse dançar ballet. Os modelos, aliás, foram muito úteis para a composição de alguns personagens, desde que não fossem demasiado fantásticos. O bruxo do Aprendiz de Feiticeiro, por exemplo, foi inspirado no ator Nigel de Brulier. Mas nada se compara ao demoníaco personagem de Satã na Noite no monte Calvo, criada por Wladimir Tytla, animador de origem eslava. A última seqüência do filme seria, enfim, o eterno tema de Disney, a luta do bem contra o mal. Ele pensou em usar duas músicas completamente diferentes em estilo, concepção e atmosfera, e não achou nada tão antagônico quanto a Noite no Monte Calvo de Mussorgsky e a Ave Maria de Schubert. Como as duas peças formariam uma só seqüência, Stokowski fez um arranjo que unia as peças, dando a esperada sensação de antítese extrema entre elas. Disney incumbiu pessoalmente Tytla de criar o personagem satânico para a Noite, um desafio para qualquer ilustrador, pois teria que contrabalançar um ideal estético de força e repúdio num só personagem, verossímil. Chegou-se a cogitar o uso de modelos como Bela Lugosi, mas Tytla insistiu em partir solitário por várias tentativas. Através de uma caricatura de um dos animadores, Tytla desenvolveu a forma com centenas de esboços e chegou na forma de Cheyborg, o objetivo final do trabalho. É uma das mais originais e fortes criações da Disney.

A Ave Maria fecha o filme, mas de uma forma um tanto inesperada, apontada por críticas contemporâneas como sendo uma das causas do fracasso do filme: o público esperava um desfecho apoteótico ou um final de abundante alegria, explicitamente feliz. Mas tal concepção de final não era necessariamente indispensável, uma vez que o filme não continha uma narrativa que costurasse as seções, e seguir o paradigma já estabelecido por Branca de Neve e Pinóquio não acrescentaria nada de novo ao filme. Por isso, a opção pela Ave Maria iria, novamente, estabelecer um meio-termo entre a expectativa do público e as intenções de Disney.

Tecnicamente, esta seção também é uma das mais originais, não só da Disney, mas de toda a história da animação, porque seus quase 7 minutos foram filmados numa só tomada, num plano único. Para isso Disney utilizou-se de uma técnica que ele mesmo desenvolvera antes em Branca de Neve, com vários desenhos sobrepostos, pintados em vidro. Assim, era possível dar a impressão de profundidade com muito mais sutileza do que num desenho chapado. A sensação causada por este efeito é digna de fascínio, pois os vidros estavam a distâncias diferentes um do outro e podiam se mover, dando a exata impressão de um movimento de câmera.

As imagens criadas pelos animadores, a partir da idéia original sobre o tema, eram estimuladas pelas gravações de Stokowski. Cada animador dispunha de um gravador e passavam horas ouvindo a música e esboçando os quadros. Algumas imagens que a música traduzia eram tão delirantes que fugiam completamente da concepção original de Disney, como na "Dança russa", do Quebra-Nozes. Na verdade isso fazia parte do trabalho de animação, ir além do programado, especialmente num filme como Fantasia.

Fantasia
foi a experiência mais cara e mais ousada em animação nos estúdios Disney. O som estereofônico - ainda que simulado - ,o Technicolor, os efeitos de luz e câmera nas seqüências filmadas com a orquestra. Tudo isso era inovador, pioneiro, e também muito caro. Fantasia estreou a 13 de novembro de 1940, tendo Disney a idéia de manter Fantasia em exibição constantemente, para que todas as gerações pudessem vislumbrar a magia daquelas imagens. Mas nada disso foi possível. A crítica recebeu o filme com estranheza, o público foi extremamente frio, a bilheteria, embora grande, um fracasso perto dos custos totais do filme. Se a Disney não tivesse Pinóquio ou Branca de Neve como lastro, sem dúvida o estúdio iria à falência. O público queria ver contos de fada, e não as próprias fadas num delírio conceitual. Essa era a impressão que se teve de Fantasia na época. Uma obra "conceitual" demais para um desenho e, principalmente, para seu criador, já famoso como produtor de desenhos infantis. Falou-se em "trinta anos à frente de seu tempo". Fantasia não é para crianças. Nem um simples "desenho". Mas o nome Disney estava tão associado a estes dois elementos que talvez o público comum estivesse esperando algo bem diferente quando foi assistir "uma nova produção de Walt Disney". Quem estava a par do projeto, e sabia das intenções de Disney, certamente aproveitou a experiência. Um jornalista que acompanhou a equipe conta, em entrevista, que fora a "mais fascinante experiência do cinema. Quando o som rompeu por todos os lados do teatro nos acordes da Tocata e Fuga, um arrepio percorreu-me a espinha."

De certa forma, Fantasia foi apreciado, mas não por tanta gente como era de costume. Branca de Neve havia batido recordes de bilheteria em todo os EUA. Somente na década de 60, com a onda de psicodelismo e simbologia, é que Fantasia começou a ser apreciado por um público bem maior.

Mesmo aqui no Brasil seu impacto foi frio. Mário de Andrade escreveu algumas críticas acirradas a respeito do filme, quando de sua estréia em São Paulo, citando o "idílio absurdo, com Grécia e mitologias" que Disney havia colocado no lugar do programa de Beethoven. Ou ainda "O Quebra-Nozes, não de Tchaikovsky, coitado, mas de Disney" (Andrade, 1975: 72-77) Mas, considerando suas virtudes, Fantasia pode ser definido como uma "enciclopédia" do desenho animado, pois todos os elementos que constituem a arte da animação em papel estão presentes, desde layout, backgrounds, história, até a própria música e a cor. Todos estes elementos são utilizados com extrema maestria, indo aos limites dos recursos técnicos que dispomos até hoje, mas sem ajuda de nenhum computador. (nota #7)



Figura 8: Cartaz original de lançamento de Fantasia, 1940

copyright©2002 Filipe Salles

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