Dissertação de Mestrado - Filipe Salles - 24/06/2002


5.4. Terceiro, Quarto e Quinto Movimentos

Continuação


Com este sentimento em voga, o 5º movimento é uma dádiva, coroação de sentimentos nobres, a iniciar pelo plano geral de um centauro subindo até o cume de um monte, talvez o mesmo que tenha anteriormente sido cenário para, nos compassos 72-77, chamar os demais para um abrigo. Neste plano a subida do centauro coincide com a escala da flauta, nos dois últimos compassos (154-5) do 4º movimento.

[Ex. 24 - Compasso 154: Finda a tempestade, início do último movimento]

O último movimento da Pastoral é uma grande hino à fraternidade, segundo o que se pode concluir do subtítulo indicado por Beethoven: Hirtengesang. Frohe, dankbare Gefühle nach dem Sturm, "Canto pastoral. Sentimentos de alegria e gratidão após a tempestade". Repleto de símbolos e referências mitológicas, é o movimento que representa a apoteose da narrativa, tanto em termos musicais como visuais. Há aqui elementos muito característicos da narrativa beethoviana (cf. já citado no início do capítulo) de uma estrutura partindo de uma situação tensa para a resolução serena, tal como a idéia cara a Disney da luta do bem contra o mal, sendo este último sempre perdedor. Em Fantasia há alguns elementos bastante originais que se destacam por não estabelecer com exatidão o que é o 'bem' ou o 'mal', apenas decorrendo uma dramaticidade específica nas adversidades naturais da vida, o que faz dos paradigmas extremamente consoantes.

Inicia-se ininterruptamente o 5º movimento com um close do mesmo plano do centauro, agora efetivamente tocando seu corne, como que anunciando a bonança, nas notas do clarinete (novamente a diegese) dos compassos 1-5. A trompa responde à melodia com estrutura similar, no mesmo sentido que as trompas de caça são usadas para comunicação entre os camponeses, ao que uma breve panorâmica do cenário restabelece as vívidas cores originais da região. Aos poucos, os personagens vão saindo de seus abrigos: Os centauros (compasso 9-10), faunos (compassos 11-13) e cupidos (compassos 14-16). Na seção dos faunos, há um requinte de fazer coincidir as duas notas de pizzicato entre os compassos 11 e 12 nos cellos com duas gotas de água que caem no nariz dos faunos, e eles entendem que é o fim da tempestade.

[Ex.25 - Compasso 8-16: Todos saem de seus abrigos, as cores exuberantes
reaparecem, mais azuis, e o detalhe das gotas coincidindo, isoladas, com os pizzicatti dos cellos]

Por fim, saem os pégasos (compassos 17-18) e os faunos e pequenos unicórnios brincam a alegria do fim da tempestade ao som do tema pastoral (compassos 19-23).
Quando deveria haver a entrada do tema em tutti fortíssimo, há um corte para o compasso 140, na repetição do maravilhoso segundo tema do movimento, num grande bailado mítico: Nas notas dos cellos (compassos 140-1), um arco íris se forma ao longe, na entrada dos violinos (c. 142-3) um close do arco íris, tendo uma deusa personificando o próprio arco íris e conduzindo-o. Cupidos e pégasos brincam alegremente, com um clima de liberdade jovial, algo infantil, que nos remete a outro arquétipo, a pureza (ex. 26). Como crianças, até mesmo Bacco (compasso154, depois de pular os 150-3) brinda com alegria (e agora parecendo sóbrio) à bonança. No trinado do compasso 155 e na escala descendente do compasso 156, ele bebe à natureza, brindando a chegada do arco íris. Seu próprio copo derrama água como um reflexo do arco íris, em camadas cromáticas (ex.27).

[Ex. 26 - 141 - 145: Simbologia do arco-íris]

[Ex. 27 - Compassos 155-157: Baco brinda à esperança]


O arco íris, cuja referência mais direta é a simbologia de algo que vem depois da tormenta, trazendo sorte e felicidade, é aqui amplamente explorado, tornando-se personagem da seção seguinte. São suprimidos os compassos 158-9, e no 160 os pequenos pégasos e cupidos vêem o arco íris, e dirigem-se à ele (compasso 161). No compasso 164 há um close da chegada deles, que brincam com o arco íris como um tobogã, seguindo, de certa forma, a linha descendente com a ampla ligadura nos violinos. Os compassos 168-9 aproximam ainda mais a ação, limitando os personagens a apenas um pégaso e um cupido, que voam ao redor do arco e vão descendo, no pianíssimo das linhas sucessivas descendentes dos violinos nos compassos 169-172. O arco íris termina na água do lago, adentrando-o no compasso 172, que coincide exatamente com a entrada das violas, que dá um acompanhamento grave à seqüência.
Os dois personagens enfocados descem, até que, depois de algumas firulas no ar, também mergulham na água, atrás do fim do arco íris. A entrada deles embaixo d'água coincide com a entrada dos cellos e baixos na seqüência melódica (compassos 174-6). Há novamente um grande corte, indo para o compasso 206. O solo de fagote e cello, numa grande linha melódica de semicolcheias serve para fazer o pégaso e o cupido brincarem nas bolhas da água que se formam, e há um verdadeiro bailado de bolhas, personagens e cores sob a água.

A seção seguinte é um grande plano-seqüência, onde muitos elementos da música e da imagem são aproveitados simultaneamente, sem cortes: Os dois emergem da água no compasso 209, ao que a imagem já corrige em zoom out para um grande plano geral, que continua em panorâmica, coincidindo com o crescendo indicado. Na entrada da melodia da flauta (final do compasso 211), é justamente quando a 'câmera' está, na panorâmica, passando por um fauno que toca sua flauta como a melodia (diegese novamente). Entra a mesma melodia no oboé, e, quando é dada na trompa (compassos 215), temos que ela serve como um 'chamado' (tal qual os cornes dos centauros, mas desta vez numa acepção diferente dos cornes de caça), e diversos centauros dirigem-se a um platô para observarem o crepúsculo. Logo após a entrada da trompa, entram os primeiros violinos (final do compasso 215, para o 216), para ampliar o efeito de crescendo necessário para o clímax fortíssimo que se segue. Apenas alguns personagens dirigem-se ao platô, mas, a essa altura, a impressão é que todos estão reunidos por lá. Na entrada do fortíssimo (Seção O, compasso 219, ex.28), aparece o sol, reluzente, brilhante, e que, aos poucos, vai formando uma imagem, de outra referência mitológica. Hélios, deus sol, em sua carruagem de fogo, cavalga no centro do disco solar, e acena gentilmente para seus admiradores (compasso 225), ao que eles respondem (compasso 228).

[Ex. 28 - Compassos 216-219: Crescendo e todos sobem para o platô,
admirar o sol, que entra radiante no fortíssimo do comp.219]

Imediatamente, a imagem escurece, há um diminuendo e vemos, já com a orquestra em piano, no compasso 232, o sol se pondo e desaparecendo no horizonte. O último casal de centauros, que ainda permanecia a observar, deixa o platô, num clima de absoluta serenidade (compasso 236, ex. 29) e entra então uma belíssima melodia, sotto voce, pianíssimo, nos violinos apenas, de suavidade e sutileza extraordinárias (compassos 237-8, ex. 30). É quando cai a noite, em mais uma referência mítica em que uma deusa com um enorme manto azul cobre a abóbada celeste com a noite (seria Tétis, que morava na região onde "Hélios repousava todas as noites após sua viagem pelo céu durante o dia"?). (nota #11)

[Ex. 29 - Compassos 225 - 231: Hélios e o adeus a mais um dia]

[Ex. 30 - Compassos 232-237: O manto da noite cai]

A continuação da linha melódica serve para situar os personagens em seus respectivos abrigos noturnos. Uma claridade lunar intensa toma conta da região. O compasso 241 mostra um casal de centauros, que, por analogia, deduzimos os demais em situação similar (recurso narrativo); os compassos 242-3 mostram o ninho dos pégasos, sendo que o macho dorme num galho de árvore superior, como que de prontidão, e sua imagem coincide com a pausa do compasso 244. É omitido o forte (que seriam os compassos 245-9) da resposta do tema, e vamos para o compasso 250, na resposta do tema pelas madeiras, em que vemos os cupidos, cada um numa nuvem, adormecendo tranqüilamente. Uma lua, ao longe, bastante estilizada e bela, vai se aproximando no suave crescendo dos compassos 253-4. Ao chegar bem perto, vemos que a lua, a exemplo do sol, também se transforma num personagem (mais uma referência mítica), provavelmente Selene, mas que também poderia ser Ártemis (pela presença de um cachorro ao seu lado, simbolizando a caça, e pelo manejo do arco e flecha).(nota #12)

[Ex. 31 - Compassos 253-260: Ártemis (ou Selene) atira as estrelas do firmamento]


Forma-se então uma outra imagem de grande beleza e poder simbólico: a lua serve de arco para a deusa, que está prestes a atirar uma flecha; feito isso no compasso 255, a flecha vai penetrando o infinito azul jogando estrelas no céu. É importante notar que o movimento do arco atirando a flecha não possui nenhum correspondente direto na música, segundo a comparação entre termos que vimos analisando. Trata-se aí de um contraponto muito original, que só poderia ser feito observando-se o caráter de ambas as significações, a simbologia mítica da deusa (e seu movimento) e a serenidade da música em sua coda. Na confluência e harmonia do caráter, é possível uma flecha ser atirada com vigor e ainda assim alcançar a significação da paz e da serenidade (cf. Ex. 31). No compasso 259, vemos as estrelas caírem e permanecerem em seus lugares no firmamento, enquanto entra a melodia final nos violinos, em grande arcada, coincidindo com um zoom out que mostra o monte Olimpo e todo o cenário do início, mas de noite. Acorde dominante fortíssimo (compasso 263, extremamente suave, mesmo com a indicação ff), e tônica (c.264), final da sinfonia, final do episódio. No meio da última nota, prolongada por Stokowski, a imagem torna a ele, registrando seu gesto de corte, encerrando a obra (Ex. 32).


[Ex. 32 - Compassos 261-264: Final da Sinfonia, Vista geral do Olimpo]

 

copyright©2002 Filipe Salles

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