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41ª Mostra - A Fera na Selva, de Paulo Betti, Eliane Giardini e Lauro Escorel

Eu não teria qualificação para comentar acerca da qualidade do texto homônimo de Henry James se questionado, mas o fato é que assistir A Fera na Selva (2017) de Paulo Betti, Eliane Giardini e Lauro Escorel foi uma experiência profundamente decepcionante.

João (Betti) é um professor de português que encontra, em um passeio turístico, Maria (Giardini), ambos já haviam se conhecido dez anos antes em um barco, onde João revelou um grande segredo para Maria. Após algum tempo, Maria se torna professora de literatura na escola em que João leciona, os dois iniciam então uma amizade que irá durar décadas.

O que me chocou inicialmente foi a extrema formalidade dos diálogos, o filme todo é falado num português dentro da norma culta e perfeitamente enunciado. Essa talvez tenha sido uma escolha decorrente da intenção de se preservar as características teatrais da peça que a dupla de atores apresentou antes de adaptar o texto para o cinema. Seja qual for o motivo, o resultado é um grande estranhamento que persiste por todo o filme, o requinte da fala dá um ar de distanciamento entre os dois, faz os personagens parecerem excessivamente contidos quando deveriam ser espontâneos, o que acaba por criar certa artificialidade na relação deles. Essa relação, aliás, é também outro fator de incômodo. João e Maria permanecem a vida inteira apenas como amigos, sem nunca terem um caso amoroso, esse é um ponto central do filme e sustenta todo o enredo, ou o pouco dele que há, mas a maneira como eles agem é tão íntima que poderia muito bem ser a de um casal. O filme, porém, nunca deixa claro ou oferece alguma explicação de o porquê eles nunca desenvolveram uma relação mais profunda. A resposta que temos é que João, tendo vivido sua vida inteira na expectativa de um evento futuro, que seria importante a ponto de dar sentido a toda sua existência, não consegue aproveitar a beleza daquilo que tem a sua frente, mais especificamente, Maria.

Isso, que o filme trata como uma grande revelação, é algo que qualquer espectador que esteja prestando atenção poderia deduzir nos primeiros vinte minutos de filme, é uma conclusão tão óbvia que ela poderia ser mencionada logo em seguida, não guardada para o final. O filme é tão acanhado em falar de maneira clara sobre o assunto que fiquei esperando certa originalidade que nunca veio. Outro problema é que também nunca vemos a expectativa do “acontecimento” interferindo na vida de João, ele não sofre, agoniza ou se questiona, ele e Maria passam quase o filme todo nesse monótono estado de auto-satisfação, e o grande cataclismo é apenas referido de maneira frustrantemente abstrata, em diálogos. O ponto central do filme é reduzido, na maioria das cenas, a uma tópica de conversas. “Conversas” é uma boa maneira de se descrever o filme, quase todas as cenas são cenas de conversas, é um filme extremamente verborrágico. Não que isso seja por si só algo negativo, o diálogo é uma ferramenta cinematográfica que, quando bem utilizada, pode ser bastante potente. A existência de filmes mais reflexivos que se desenrolam exclusivamente através de conversas não é algo inédito, um exemplo bem sucedido é Ponto de Mutação de Brent Capra. O que decepciona em A Fera na Selva é que o assunto desses diálogos nunca é algo que realmente fascina o espectador, ele sempre gira em torno dos próprios personagens, e como todo mundo que tem um amigo que ama falar de si mesmo poderá afirmar, isso cansa rápido.

Em termos técnicos o filme é competente apesar de pouco ambicioso. A fotografia trabalha belamente as já lindas paisagens de Sorocaba, concedendo a elas uma textura fantástica. A movimentação de câmera tem seus momentos mais impressionantes, como na sequência final em que ela vaga por uma floresta de cabeça para baixo, semelhante ao que ocorre em alguns momentos de Limite(1931), de Mario Peixoto. Aqui a câmera passa tempo suficiente invertida para que se perca qualquer noção espacial e permita a plateia vagar por este lugar estranho, o que constitui uma experiência poética. É de longe a melhor parte do filme. Em dois outros momentos bem menos impressionantes, um no início e outro no final do filme, a câmera rasteja em volta de João enquanto a trilha sonora usa esses ruídos enervantes, é uma gramática típica de filmes de terror e não se encaixam em absoluto no clima das cenas. Com a exceção desses momentos e mais algum, que se pode contar em uma só mão, o filme tem uma linguagem bastante típica, consistindo, na maior parte do tempo, em planos e contraplanos de João e Maria.

A Fera na Selva parece ter nascido de um projeto de paixão de Betti e Giardini. Eu sinto que há algumas décadas atrás esse filme seria elogiado por uma casta da alta sociedade brasileira como uma grande obra possuidora de texto sofisticadíssimo, mas, em um contexto cinematográfico tão rico quanto o cinema brasileiro pós-retomada, o filme me aparenta ser ingênuo, hermético, cheio de ternura, mas apenas de ternura.

 

Matheus Saboya estuda cinema na FAAP, foi primeiro assistente de direção de dois curtas-metragens universitários e está fazendo direção de arte de seu terceiro curta.