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Peixe Abissal (2023, Rafael Saar) - 11ª Mostra Tiradentes-SP

Peixe Abissal (2023, Rafael Saar) - 11ª Mostra Tiradentes-SP

por Cecília Coêlho

 

Peixe Abissal, dirigido por Rafael Saar, relata a pluralidade e a complexidade da persona do artista Luís Capucho, a partir das suas vivências e sua resistência no submundo de um homem soropositivo.

 

De primeira, o filme, lançado em 2023, aparenta ser datado por retratar a vida de um homem gay com HIV no século XXI. Contudo, a obra não é sobre ser HIV positivo, é sobre as projeções artísticas de Capucho a partir do subterrâneo de suas memórias. A obra é sobre o underground, sobre viver nos arredores de uma sociedade, ainda, homofóbica, e que condena, das maneiras mais imperceptíveis, o sexo. Principalmente o sexo que não condiz com a heterossexualidade compulsória.

 

Dessa maneira, Rafael Saar, elogiosamente relembra a vida do artista do Retrotropicalismo. Essa vida – a qual a semiótica permite interpretar que - está submersa, mais ainda, tudo que envolve Luís Capucho é “sub”, um homem subalterno, subjugado, que mora no submundo, mas que busca de diversas formas submergir sem se afundar. E assim se faz o subtexto da trama, um homem isolado, um peixe abissal. Um homem que se vê como um peixe no reflexo da água. Por este motivo, Capucho aparece em várias cenas que é filmado submerso, logo, pelos artifícios da linguagem do longa, a água é vida. Capucho não respira oxigênio, ele respira por brânquias imaginárias.

 

Isto posto, o tom documental e a abordagem experimental da obra se encaixam muito bem, de maneira leve e poética, como se não tivesse o que entender da obra, pois o sentido só é requisitado pela percepção lógica da sociedade “quadradona”. Luís não é lógico, e muito menos sua arte, a qual é repleta de obsessões libidinosas. Partimos daí para entender sua fixação com o Cinema Íris cuja programação é unicamente de pornografia e de apresentações eróticas, mostrando a necessidade do sexo em ser libertador para ele que é uma pessoa solitária, porque lá encontra outros semelhantes. Dessa forma, se mantém uma comunidade de solitários, de excluídos sociais, que se reúnem para gozarem dos poucos prazeres de suas vidas.

 

Aí que está o cerne da mise-en-scène, onde o plano subtexto se junta com a narrativa para mostrar o mundo obscuro que é ser um peixe abissal e, a alegria de poder se encontrar em outros peixes abissais. Penso que o sexo une tudo da narrativa, é ele que traz sentido para a obscenidade de Capucho. O erotismo se faz como resiliência, até porque a cultura gay é vista como obscena por ser centrada no sexo, mas é claro, não como se sexo homoafetivo não tivesse sido proibido por séculos. O Cinema íris carrega em sua história – e na música de Luís – a responsabilidade de assegurar a imoralidade e o impudico, onde só é projetado filmes pornográficos heterossexuais, mas que quem os consome não são. Eles se apropriam do convencional para transformá-lo em vulgar.

 

A alegoria da sereia retrata a junção do erotismo e do peixe e, a faz muito bem pela aparição de Ney Matogrosso ao cantar a música “Destruição”. O filme brinca com o profano e o sagrado, com o mito e a verdade, e com o documental e o ficcional. Essa mistura de contradições parte do livro de Capucho Cinema Orly, no qual o longa se baseia, assim sendo uma memória do livro, que por decorrência é uma memória de suas idas a este cinema. Ou seja, o filme é a memória da memória e como ela resiste na arte, no erótico, e na intimidade.

 

Segundo Luís Capucho, sua arte é “ficção biográfica”, acho que isso define muito bem a forma de linguagem que Peixe Abissal assume, uma forma bem brasileira de cinema, tudo é verdade, mas nem tudo é verdade, aliás tudo pode ser mentira, mas inegável de como é honesto. Isto fica mais claro ainda na exibição do filme em que duas pessoas choraram de soluçar no bate papo pós sessão, deixando o diretor Rafael Saar lisonjeado.

 

O filme entra em um lugar muito íntimo de nossas subjetividades, não tem como não se identificar de certa forma, porque a intimidade ela é muito explícita nessa obra, as formas de expressão do submundo, do underground, fazem homenagem à toda sujeira, à doença, à marginalidade de ser um ser humano abissal. Desse modo, Capucho morre parecendo um peixe que acabou de ser pescado nos braços de uma sereia.

 

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A cobertura da 11ª Mostra Tiradentes é um projeto do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

 

A equipe Mnemocine agradece a Universo Produção e a ATTI Comunicação e Ideias pela parceria.

 

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Biografia: Cecília Coêlho é obcecada por filmes e os enigmas da imagem. Graduanda em cinema na FAAP, onde realiza curtas independentes. É inclinada à área de roteiro, a qual tende ao experimental e ao vulgar.