logo mnemocine

odisseia.png

           facebookm   b contato  

O Fio da Filiação: “Nossa Mãe Era Atriz” e “A Filha do Palhaço” - 11ª Mostra Tiradentes-SP

11ª Mostra Tiradentes SP – O Fio da Filiação: “Nossa Mãe Era Atriz” e “A Filha do Palhaço”

Por Luca Scupino

 

A sessão de encerramento da 11ª Mostra Tiradentes São Paulo trouxe consigo dois dos filmes que venceram prêmios de público: Nossa mãe era atriz, do veterano da Mostra André Novais Oliveira e co-dirigido por seu irmão Renato Novais, vencedor do prêmio de melhor curta-metragem pelo júri popular; e A filha do palhaço, de Pedro Diógenes, melhor longa pelo júri popular. Interessante notar como ambos os filmes, cada qual à sua forma, tratam de maneira próxima a questão da relação entre filhos e pais – que, a julgar pelos prêmios concedidos, continua uma temática latente no cinema brasileiro contemporâneo, especialmente no que diz respeito a explorar facetas das relações familiares que fogem às ideias hegemônicas daquilo que seria uma “família tradicional brasileira”.

 

Nossa mãe era atriz é o aguardado curta-metragem realizado em homenagem a Maria José Novais Oliveira, falecida em maio de 2018, mãe dos cineastas e também atriz da maioria dos filmes de André Novais e sua produtora Filmes de Plástico, um dos rostos mais marcantes do cinema brasileiro contemporâneo. O filme é inteiramente composto de imagens de arquivo, que oscilam entre cenas dos filmes, bastidores e filmagens caseiras, traçando uma arqueologia do papel de Maria José como mãe, atriz e pessoa, ao mesmo passo em que ouvimos depoimentos de outras grandes atrizes, como Grace Passô, que falam sobre o ofício de Maria e suas virtudes.

 

Maria José Novais Oliveira

 

Lembro-me do choque que tive ao descobrir que Maria José, carinhosamente chamada de Zezé por seus colaboradores, havia partido. Eu tinha acabado de começar a ver os filmes de André Novais e, já como um grande admirador de seu trabalho, encontrei uma postagem antiga em uma das redes sociais do cineasta, homenageando a mãe. Por algum motivo, me parecia muito difícil de acreditar que aquela figura tão carregada de vida nos filmes de Contagem não estava entre nós, uma atriz já aos 65 anos de idade cujo trabalho junto ao filho constantemente tomava elementos da própria realidade vivida em uma família negra e periférica. Isso porque justamente a forma desses filmes a presentificava em cada segundo, a entregava uma plataforma em que seu talento inato de atriz e seu amor imenso como pessoa pudessem florescer diante da câmera, transformando a ficção em vida e a vida em ficção.

 

É essa a consciência de que partem os cineastas ao realizarem esse filme. Como tomar coragem para falar de uma mãe, para tocar em feridas que talvez não cicatrizem, para trazer à público uma dor tão íntima? Parece que justamente o cinema, descoberto tardiamente por Zezé, foi a forma capaz, nos termos bazinianos, de tornar imortal essa presença da mãe, de preservar sua graça através do registro. E, de fato, foi por meio do cinema que nós conhecemos suas histórias, muitas das quais não se distanciavam em nada das suas verdadeiras rotinas, dos seus problemas (inclusive de saúde, como em Ela volta na quinta), dos gestos de afeto com a família, da sua sobrevivência como mulher negra na periferia de Minas Gerais.

 

Assim como toda grande atriz o faz, pudemos olhar como se vê por uma janela à realidade de Zezé, nos afeiçoar a ela. E, certamente, a generosidade dos cineastas de colocar a público algo tão umbilical durante anos, de nos deixar, como espectadores, conhecer um pouco de sua vida privada, não deve ter tornado mais fácil a experiência do luto, que já é difícil por si só. E não foram poucas as vezes que André e Renato explicitaram o enorme desafio que enfrentaram ao fazer esse filme, a dar a ver essas imagens – André citou, inclusive, que vê-las também poderia significar uma segunda perda da mãe, desta vez através das imagens dela ainda não vistas, que vão se esgotando a cada novo olhar. No cinema de Contagem, não faz sentido falar em ficção ou documentário, na medida em que é a própria vida que se implica ali nas imagens, e que o cinema não se pode fazer de outra maneira, senão em família.

 

Através do título Nossa mãe era atriz, o filme também parece indicar que, não obstante o compromisso com a realidade por parte das obras e a naturalidade da atuação de Maria José, ainda havia no seu trabalho um compromisso inequívoco com o ofício do ator. Um dado depoimento bem indica que uma das maiores qualidades que um ator ou atriz podem ter é a habilidade de escutar – atributo que Zezé particularmente tinha e que também é característico de seres humanos de grande generosidade. Com isso, os filhos expõem, muito em consonância com o cinema que produziram ao longo dos anos, o fato de que era a própria humanidade de Zezé que a transformava em uma grande atriz, e o que pode ser visto como algo natural, sem esforço, nasce, em realidade, do amor que uma pessoa pode nutrir por aqueles a seu redor. Algo, diga-se de passagem, presente em cada uma das imagens deste filme, em cada um dos enquadramentos desta que carrega uma dupla performance como atriz e mãe – pois o “ser mãe”, sobretudo enquanto mulher negra no Brasil, é também um papel que se deve seguir com resiliência.

 

Still de A filha do palhaço

 

Se Nossa mãe era atriz irá tratar da dialética entre ausência e presença na relação entre mãe e filho, A filha do palhaço irá transmutar similar discussão para o convívio entre pai e filha – e é um filme onde a performatividade de gênero também se fará muito presente. Dirigido por Pedro Diógenes, co-fundador do Coletivo Alumbramento, que marcou o cinema independente contemporâneo, o filme talvez seja um dos melhores exemplos de melodramas lançados no Brasil nos últimos anos, tanto em estrutura quanto na forma.

 

A narrativa começa a partir do ponto de vista de Joana, adolescente que irá passar uma semana com o pai, Renato, em Fortaleza. A relação entre os dois é distante, na medida em que Renato abandonou sua família anos antes para se relacionar com um outro homem mais jovem, e ganha a vida fazendo shows cômicos de drag para turistas, apresentando-se como a personagem Silvanelly. Nesse período de uma semana, os laços da filiação se estreitam à medida que a jovem Joana percebe ter mais em comum com o pai do que os dois imaginam, uma cidade em que os sonhos não conseguem se concretizar, seja aquele de realizar-se como ator ou o de ter o pai que se idealizava nos desejos mais profundos da filha.

 

O universo do melodrama é presente tanto pela narrativa, que empurra os personagens a um estado de constante melancolia, de decepção com as decisões passadas e pela impossibilidade de vislumbrar um futuro em que tudo se acerte, mas também pela caracterização imagética – se uma das grandes características desse gênero burguês é a contaminação da plasticidade visual por aspectos da subjetividade de seus personagens, é interessante, inclusive, ver como a cenografia do apartamento de Renato parece uma continuidade de sua performance como drag, transformando os quartos em labirintos burlescos, uma toca do coelho onde Joana poderá se perder para, então, descobrir-se.

 

A maior virtude do filme talvez esteja na habilidade de encontrar a forma precisa de filmar o mistério de seus atores. Muito se fala sobre a ambiguidade da figura do palhaço, que faz os outros rirem justamente pela consciência que possui da miséria do mundo, pela tristeza que carrega consigo. Mesma ambiguidade, pode-se dizer, presente na figura de um pai que se furta a apresentar-se como homem, que recusa a assumir essa performance que lhe foi imputada, mas que também nunca perde o amor pela filha. É esse o paradoxo que se encontra no rosto do ator Demick Lopes, que dá ao personagem uma profundidade dolorosa. Paralelamente, o filme também conta com a estreante Liz Sutter, cujo rosto desvendado pela câmera mostra como a raiva tão característica da adolescência carrega também uma profunda insegurança. Diógenes encontra, ao mesmo tempo, aquilo que os personagens possuem de místico, de aurático, e a universalidade que todo drama necessita.

 

Talvez não se possa dizer o mesmo do roteiro que, ao pesar na direção de criar uma situação trágica, às vezes não o faz de maneira justificada. O personagem de Jesuíta Barbosa, por exemplo, um jovem ator que cativa a atenção tanto do pai quanto da filha, tem uma presença um tanto solta no filme, um papel incerto como essa figura de desejo. Nunca entendemos exatamente qual é a sua, e certamente isso não se dá por conta de Barbosa que, mesmo com um roteiro que não lhe dá muito com o que trabalhar, consegue arrancar muita presença. Algo que não deixa de remeter a uma de suas frases ditas em uma apresentação teatral, na metade do filme: “seu rosto parece incompleto...”.

 

Com diferentes formatos e abordagens, os dois filmes são muito representativos no que diz respeito às maneiras que o cinema brasileiro contemporâneo encontra de falar de diferentes configurações de família, de deixar antever, através de suas fissuras, um amor que se apresenta nos lugares onde menos se imaginaria: na personagem drag criada por um pai para fazer sua filha parar de chorar, ou no enorme ato de carinho que uma mãe pode fazer ao se permitir ser filmada pelos filhos e, com isso, entregar também ao mundo um pouco de seu carinho, de sua gentileza.

 

---

 

A cobertura da 11ª Mostra Tiradentes é um projeto do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

 

A equipe Mnemocine agradece a Universo Produção e a ATTI Comunicação e Ideias pela parceria.

 

---

 

Biografia: Luca Scupino é cineasta independente, pesquisador e crítico, formado em Cinema pela FAAP, onde dirigiu e roteirizou 4 curtas-metragens. Atualmente pesquisa na área de história do cinema e teoria estética, e escreve artigos para diferentes meios. É cinéfilo desde que se entende por gente.