logo mnemocine

camera.png

           facebookm   b contato  

171 (2023, Rodrigo Siqueira) - É Tudo Verdade 2023

171 (2023, Rodrigo Siqueira) - É Tudo Verdade 2023

Por Davi Krasilchik

 

Brincando com a prática do estelionato, “171” mistura técnicas da ficção e do documentário clássico para brincar com os limites entre a verdade e a interpretação.

 

O pacto estabelecido entre a imagem e o espectador constitui uma das relações mais potentes da Sétima Arte. Especialista em aparências, ela habita o campo da fabulação, que fantasia aspectos a partir de objetos concretos. Esses últimos atraem a atenção do espectador, nos convidando a aceitar reproduções que podem estar muito afastadas de como os fenômenos se manifestam.

 

Essa cumplicidade permite ao público embarcar nesses agrupamentos de mentiras, abrindo interessantes discussões a respeito da subjetividade com a qual percebemos o mundo ao redor. Em um campo ficcional, esse mesmo laço configura uma metamorfose entre ator e personagem, autorizando o primeiro a transmutar seus traços em figuras fictícias, mas que ainda preservam o artista como figura real.

 

Partindo da lei criminal do estelionato, que consiste na obtenção de uma vantagem ilegal ao levar alguém a acreditar em algo falso, é essa a discussão que o diretor Rodrigo Siqueira procura fomentar. Responsável pelo premiado Orestes (2015), onde resgata o teatro como exploração do trauma  remanescente do Regime Militar, ele volta a intermediar contextos reais através de exercícios de encenação.

 

Em seu discurso de abertura na exibição do Cine Marquise, o diretor convidou os espectadores a sofrerem um golpe, desafiando-os a escapar das armadilhas projetadas pela equipe. Ele admite o próprio filme como um “171” - número da lei em questão -, se colocando ao lado dos agentes cujas histórias ele retrata. Tendo passado pelo sistema prisional, são eles os seis golpistas que encabeçam a estrutura da narrativa, convidados pelo cineasta a misturar histórias reais de suas vidas com situações ficcionais, propostas pelo documentário.

 

Esse dispositivo autoriza uma interessante miscelânea da parte da montagem que, até mesmo em sua estrutura, resolve se desfazer aos poucos. Planos metafóricos - como os das cabras que vagam por um corredor vazio, buscando uma saída - se confundem com entrevistas tradicionais, em paralelo a passagens assumidamente performáticas do filme, rodado em preto e branco.

 

É claro que, nesse processo, a câmera adquire uma gama variada de comportamentos -  estática na obtenção de depoimentos e dotada de uma movimentação precisa quando aplicada aos planos mais estilizados. Exemplo do último está no calculado vagar por um campo de flores, lúdico no modo em que registra a luz solar e a sua personagem tateia as plantas ali cultivadas. Cria-se uma relação com esse ímpeto de se aventurar pela natureza, buscando um equilíbrio com aquilo que está dado e é impassível de contenção racional.

 

Tal aspecto, inclusive, é sabiamente administrado contra o seu espectador, deixado à mercê de um dispositivo de sobreposição de sequências imersivas e outras que denunciam os limites  para além do plano. Essa turbulência planejada fica bastante clara na figura do diretor teatral, personagem que representa a influência da direção em projetos do gênero. Ao inaugurar o filme em uma garagem, onde conduz a cena de morte de uma de suas personagens - o também golpista Patrick, segundo é revelado mais tarde -, a sua presença atenta diretamente para a metalinguagem da obra.

 

Não demora para que o próprio Siqueira invada o trabalho ali desenvolvido, mostrando a sua claquete e repassando pedaços do roteiro com uma figura que descobriremos ser um grande golpista de empresas . Ele nos torna cúmplices nesse processo de transmutação de um caráter em outro, entregando evidências dos dois perfis de modo estilhaçado, e nos deixando escolher no que acreditar.

 

Em outros termos, Siqueira trabalha a suscetibilidade do espectador a esse tipo de convencimento, similar ao modo como o golpista é validado pela maneira com a qual leva sua vítima a enxergá-lo. A volatilidade desse processo revela essa criação imagética como ação incompleta, na medida em que o caráter intencionado na segunda personalidade logo se desmonta com o roubo. A direção não está preocupada em esconder essa limitação, brincando com os ruídos das representações ali planejadas para falar do próprio ato de criar em si.

 

Isso demonstra a intenção do diretor de explorar as regras de sua experiência por elas mesmas, deslocando os contextos sociais analisados para fora dos centros de atenção. Não devemos entender esse aspecto de maneira negativa, entretanto: é uma maneira de se reconhecer a dificuldade de composição de uma leitura de Brasil, admitindo as distâncias entre as teses dessa pretensão e a verdadeira realidade.

 

Ainda assim, são notáveis as personagens escolhidas para compor tal projeto. Da traficante de drogas que atua como simpática jardineira ao ladrão de carros que  (em outro simbolismo que relativiza o discurso)  esculpiu novos dentes com peças de dominó, Siqueira apresenta um elenco que trabalha habilmente por um processo de suspensão constante. A todo momento novas encenações anulam as impressões que formamos em relação aos entrevistados, o que talvez denuncie a imprecisão de análises sociais que levam a conclusões limitantes.

 

Afinal de contas, como definir alguém? Podemos confiar unicamente naquilo que vemos e ouvimos a respeito de um determinado sujeito? O objetivo de Siqueira não é necessariamente oferecer uma resposta a esse mistério, mas navegar por ele e evidenciar os ingredientes que compõem essas impressões. Do bolo confeitado nos créditos de abertura ao plano final em que os animais mencionados escapam ao presídio, o filme nunca abandona a lógica da sugestão. Nada ali está definido, mas muitas de suas imagens seduzem os espectadores através de jogos com os símbolos.

 

Nesse processo, podemos também notar a presença da câmera como elemento invasor. Propulsora de reações ilustradas, ela dificulta ainda mais a divisão entre o que é verdadeiro e o que não é. No caso do emocionante relato da traficante citada, em que ela relembra memórias de uma possível juventude com o pai - e na qual teria sido, inclusive, constantemente confundida com um garoto -, o contexto geral é atravessado pela pureza de seu choro.

 

Restam muitos questionamentos, obstáculos para uma definição que o filme sabe que jamais irá alcançar -  consciência que assume o grande dilema do fazer documental: a dialética  entre público e privado consequente da tentativa de filmar o real. Até que ponto aquelas personagens se preservam em sua individualidade, e no transmutar das interpretações, quando se perdem na coletividade da ficção? Seria algum de nós real?

 

Partindo da criatividade que um deve exercitar para dar um golpe ao outro, tem-se assim em 171 a reestruturação de um pacto entre imagem e espectador. Apaixonado por sua própria mitologia, ele honra as raízes deixadas por mestres como Eduardo Coutinho, e reconhece a força do não dito dentro de seus enquadramentos. Na busca do limite entre o real e o fictício, Siqueira sabe que a resposta é limitante. É justamente da curiosidade que as imagens constantemente se redefinem, sendo sua cristalização menos importante que o processo em si.

 

Biografia:

Davi Galantier Krasilchik é estudante de Cinema e Jornalismo na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), onde já roteirizou e dirigiu dois curtas-metragens. Ele também já fotografou dois projetos curriculares, além de produções por fora, e escreve críticas e reportagens para meios como a revista universitária Vertovina e o site Nosso Cinema. A sua paixão pela Sétima Arte se manifesta desde a infância, e atualmente ele trabalha na Filmoteca da TV Cultura, onde ajuda a preservar esse material por qual tem tanta paixão.

 

A cobertura do 28º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

 

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação idealização: Flávio Brito

Produção e edição adjunta: Bruno Dias

 

Edição: Luca Scupino