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Incompatível com a Vida (2023, Eliza Capai) - É Tudo Verdade 2023

Incompatível com a Vida (2023, Eliza Capai) - É Tudo Verdade 2023 

Por Luigi Pepe

Em Incompatível com a Vida, a diretora Eliza Capai utiliza-se de seus próprios relatos e de mais algumas entrevistadas, para relatar as dilacerantes experiências de tentar fazer um aborto legal no Brasil.

 

Incompatível com a Vida, de Eliza Capai, é o filme vencedor do festival É Tudo Verdade 2023 na competição brasileira de longas ou médias-metragens. Entre fortes concorrentes, o documentário se destaca dos demais ao abordar um tema latente  no Brasil:  a questão do aborto e seus desdobramentos na sociedade e na vida das mulheres.

 

O longa parte desse tema, a partir de filmagens do início de gestação da própria diretora, que faz daqui uma narrativa em primeira pessoa. Conforme complicações na gravidez começam a surgir, entram em cena  outras entrevistadas que passaram pelo mesmo problema que a diretora: a má formação do feto, levando ao falecimento dos recém-nascidos assim que saem do útero. Na legislação brasileira, é possível solicitar à Justiça por um aborto legal em casos como esses; no entanto, o acesso ao procedimento é difícil, burocrático, violento e invasivo.

 

A narrativa prepara o terreno, apresenta as imagens de Eliza acariciando sua barriga, dando lugar a relatos do que as outras entrevistadas tinham para o futuro de seus filhos. Ela, ainda, articula sequências líricas com planos do o mar e a natureza, que complementam as falas das mulheres - é esta soma de imagens e falas que forma em tela os diferentes pesadelos sonhados ainda no começo das gestações. São relatos que premeditam as angústias que viriam a seguir na vida das personagens e que têm,  em seu desfecho, a cena do exame de ultrassom da diretora quando o médico dá a notícia dos problemas envolvendo o feto, da maneira mais inumana possível. A partir desse estágio do filme, começam a pulsar os problemas sociais envolvendo a Justiça, planos de saúde e médicos que tratam as pacientes com total insensibilidade no filme, representando toda a tortura que é a busca por um aborto legal e legítimo.

 

Durante toda a sessão, que ocorreu logo após o anúncio dos vencedores, era possível ouvir choros vindos de diferentes pontos da sala. Os relatos mostrados em tela geram não somente tristeza, mas também raiva, na medida em que são articulados de maneira ágil para que formem um coro de “uma só voz”. As falas são intercaladas com planos do cotidiano das personagens, como o de um café sendo passado, uma chuva se aproximando ou cortinas balançando ao vento, fundamentais para a digestão do que é dito nas entrevistas. Com o avançar da trama, os relatos se tornam  mais pessoais e íntimos, transformando o mesmo choro de raiva em um de tristeza.

 

A montagem procura conduzir  fortes emoções através do excessivo e desnecessário recurso de tela preta. Em outros momentos, o filme irá cair em imagens da diretora mergulhada sozinha no fundo do oceano, ou chorando em sua cama através de uma composição extremamente posada, que mais afasta o espectador que o aproxima do drama real ali vivido. O filme, na tentativa de intensificar essas situações, faz uso de certos recursos narrativos que tiram a força do conteúdo das entrevistas, visto que os momentos de maior força do filme são justamente aqueles em que os relatos são transmitidos sem cortes ou intervenções. Não há nada mais potente nesse documentário que os rostos dos entrevistados relatando as situações por que passaram.

 

Esses equívocos não alteram a experiência dilacerante proporcionada pela obra. Ao final do filme, fica claro o caráter de denúncia que o filme carrega, sem deixar de lado a importância de documentar cada história individual. É através do equilíbrio entre esses dois lados que o filme reivindica por mudanças na legislação do país, para que todas as mulheres tenham seus corpos tratados com dignidade e respeito, tanto por parte do Estado, quanto pela sociedade e a medicina. Os letreiros do final apresentam as consequências do aborto ilegal no país e ainda apresentam um dos caminhos para solucionar este problema, utilizando o exemplo as mudanças legislativas que ocorreram em Portugal, o letreiro final expõe que desde a legalização do aborto no país, nenhuma mulher morreu tentando praticar o procedimento de maneira ilegal. 

 

Portanto, a cineasta articula o social e o pessoal, apresentando um pedaço de sua vida doloroso e traumático, buscando força e verdade nos relatos de diferentes mães que também passaram pelo mesmo processo. As distintas entrevistas contam diversas histórias, mas quando colocadas lado a lado, revelam estar falando sobre a mesma coisa. Mais do que um filme, é um trabalho de elaboração do luto e um forte grito por mudanças nas estruturas do sistema de saúde no Brasil.

 

Biografia:

Após atravessar o paraíso em sonhos e acordar com uma flor em sua mão, Luigi Pepe decidiu virar um operário da fábrica de sonhos, dirigindo curtas universitários e falando sobre cinema por aí

 

A cobertura do 28º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

 

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação idealização: Flávio Brito

Produção e edição adjunta: Bruno Dias

Edição: Luca Scupino