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Apresentação | Cobertura Kinoforum 2023: entrevista com Zita Carvalhosa e Francisco César Filho

Apresentação - Cobertura Kinoforum 2023: entrevista com Francisco César Filho e Zita Carvalhosa

Por Luca Scupino

O Festival Internacional de Curtas de São Paulo - Kinoforum chega à sua 34ª edição com uma ampla cobertura crítica, realizada pela Mnemocine, que inclui a participação de 19 redatores e em torno de 30 textos.

Após atravessar uma pandemia, o desmonte e a reestruturação do audiovisual brasileiro e uma série de mudanças no cenário político e cultural do país, o festival do formato de curta duração de maior destaque do país retorna mais um ano com o compromisso de traçar um panorama da produção de curtas-metragens no Brasil e no mundo, com exibições em importantes salas de cinema da cidade de São Paulo, de forma inteiramente gratuita.

Neste  ano, contará com um total de 301 filmes na programação, incluindo programas especiais como a exibição  Godard + Zé Celso, em homenagem aos artistas falecidos recentemente - com exibição do novo filme de Godard, lançado no Festival de Cannes e ainda inédito no Brasil, Trailer do filme que nunca existirá: ‘guerras de mentira’ (2023). 

A programação completa está disponível no site do festival (https://2023.kinoforum.org/), que conta ainda com os panoramas brasileiro, latino-americano, internacional, mostras de cinema experimental e retrospectivas importantes, com destaque para o cinema indígena contemporâneo e o prêmio estímulo - que foi um importante mecanismo de financiamento ao curta metragem paulista.

A Mnemocine entrevistou os organizadores do festival para entender a história do evento e a trajetória do curta-metragem no Brasil, tal como o que se vislumbra no futuro. A entrevista com Zita Carvalhosa, diretora do festival e produtora audiovisual, e Francisco César Filho, coordenador de comunicação e do comitê de programas brasileiros, é uma aula para qualquer um interessado em realizar ou entender o formato curta-metragem no Brasil, e a eles agradecemos pela recepção.

 

Luca Scupino: Para começar, o que é o Kinoforum? Qual é a atuação da associação para além do festival de curtas?

Zita Carvalhosa:  A Associação Cultural Kinoforum foi criada para produzir o festival de curtas, que já existia desde 1990. O Kinoforum é uma associação cultural que reúne pessoas interessadas no desenvolvimento do cinema brasileiro, do audiovisual. Não é só do cinema, do audiovisual brasileiro. A gente acredita que esse desenvolvimento passa historicamente pelo curta-metragem, e eu espero que futuramente também passe, porque é um espaço de experimentação muito forte.

A Kinoforum faz outras atividades também, entre elas as oficinas de realização audiovisual. Nossa ideia é juntar um grupo que tem interesse em aprender e pegar talentos dessa área para conversar com eles. Não é uma formação universitária, mas é uma formação que tem começo, meio e fim. Tem uma proposta, sempre tem um produto que é feito junto, e num espaço de tempo que a pessoa possa pegar o gosto pelo fazer.  A ideia é lançar a isca, lançar a ideia de fazer cinema.  Outro importante projeto é o Guia Kinoforum de festivais, listando e verificando os festivais, ficha de inscrição, e disponibilizamos online para todos consultarem.

 

LS: Uma pergunta simples. Por que realizar um festival de cinema no Brasil, especialmente de curtas-metragens, apesar das dificuldades?

ZC: Porque apesar das dificuldades, é muito importante organizar um festival de cinema no Brasil. Quando criamos o festival, a gente acreditava que o curta-metragem precisava expandir as suas vitrines, as suas salas. Era uma época que ainda passava curta-metragem antes do longa nos cinemas. E daí a ideia de reuni-los para fazer um pensamento junto dos realizadores trocando experiências, e essa produção poder ser vista por mais gente. E hoje em dia, a gente está de novo diminuindo a presença do cinema brasileiro no mercado.  Não temos nem mais as cotas de tela.  Os festivais tem essa importância de mostrar como a gente gosta de assistir filmes brasileiros, e filmes internacionais. 

Desde o começo era um festival internacional. Sempre quisemos fazer essa troca para convidar as pessoas de fora para virem aqui conhecer o cinema brasileiro e criar, para os brasileiros que gostam de cinema, outras frentes. Então é um festival internacional, tem mostra nacional, mostra latinoamericana, mostra brasileira… E daí os programas especiais, assuntos que estão em pauta e assuntos que a gente gostaria que estivessem em pauta. Acho que é essa a matemática de organizar um festival, você permite às pessoas serem realizadores, espectadores e técnicos, tudo ao mesmo tempo.

Francisco César Filho: Acima de tudo porque a produção é extraordinariamente volumosa, e essa produção é extraordinariamente espalhada por todas as latitudes e longitudes do país. Então a realização de curtas talvez seja a produção audiovisual que mais reflete aspectos sociais, culturais das diversas regiões do país. O longa-metragem muitos realizadores não têm condições de fazer, séries televisivas muito pouco, e é o curta-metragem que está presente em todos os estados brasileiros. E essa produção de curtas tem uma qualidade muito própria: ela é majoritariamente feita por jovens, então ela reflete os anseios e inquietudes que novas gerações estão sentindo na pele, no seu cotidiano,  nas diversas regiões do país. Isso é uma característica, por exemplo, que o longa-metragem não consegue, porque o projeto de um longa-metragem exige uma gestação que normalmente demora alguns anos. Então é uma visão do Brasil, e isso pode ser estendido para qualquer país do mundo, muito rica, né? Quem acompanha a cena do curta metragem no Brasil, ou em outros países do mundo, tem uma visão da sociedade, das suas sociedades, muito privilegiada.

 

LS: Por que não existe janela de exibição para o curta-metragem no Brasil? É possível retomar o espaço de exibição para além dos festivais?

FCF: Olha, não dá para dizer que não existem, existem algumas. Já foi melhor, de um breve período aí que, desde meados dos anos 1970, mas recordo mesmo meados dos anos 80 até a virada dos anos 2000, era possível ver curtas-metragem nas salas comerciais do país. Então, o público de cinema propriamente dito tinha contato com a produção de curtas. 

Os festivais sem dúvida são espaços privilegiados. Estima-se que no Brasil existam hoje de 250 a 300 festivais, e eu chutaria aqui que pelo menos 90% deles exibem curtas. Então é ali que o curta tem público, e é um público privilegiado porque é um público que é de cinéfilos muito interessados, de críticos, de profissionais da área, é público de festivais, público formador de opinião. Mas fora isso, a gente tem presença de curtas em vários canais televisivos, a maioria deles segmentados. De vez em quando também aparecem alguns curtas em plataformas de streaming. 

Quem é muito, muito interessado vai ficar cavucando na internet porque você acaba achando de um jeito ou de outro vários curtas brasileiros e vários curtas internacionais nos Youtubes da vida. Mas, para o espectador comum que gosta de ir ao cinema, nas salas de cinema mesmo, só durante os festivais, né? E, por sorte, esses 250-300 festivais que eu referi, estão espalhados por todas as capitais brasileiras e em inúmeras cidades fora das capitais, cidades essas que, em sua maioria absoluta, a gente pode cravar, não tem sequer sala comercial. 

ZC: Olha, a questão das janelas de exibição é uma perda de gestão política bastante grande. Eu acho que você ter os espaços ocupados pelo curta-metragem e pelo cinema brasileiro é fundamental para a criação de uma identidade, de um reconhecimento, de um prazer em se ver nas telas. E, por algum motivo, quer dizer, que a gente sabe ser político no Brasil, isso foi diminuindo. E efetivamente o nosso último governo não apoiava o audiovisual brasileiro, então foi um momento bastante complicado que eu espero que seja revertido. Os governos anteriores variavam, mas todos eram orgulhosos do cinema brasileiro, a gente participava de muitos festivais internacionais. Continuamos participando, estão passando mais filmes brasileiro no exterior do que no Brasil. E isso, para mim, me parece uma questão muito séria.

 

LS: Queria voltar um pouco para a questão da exibição. Tem um incógnita que fica para quem faz curta metragem, que é: quem é o público do curta-metragem no Brasil? Quem é o público do Kinoforum? Ele fura a bolha da cinefilia? 

ZC: Hoje em dia a gente tem o público dos interessados no cinema, quer dizer, que podem ser críticos, podem ser cinéfilos, podem ser estudantes... A gente tem um público de universidades que não precisam ser estudantes de cinema, mas que querem ampliar os seus horizontes. E você encontrar filmes de gente mais ou menos da sua geração, é uma troca bem importante, quer dizer, o que está se pensando na Inglaterra hoje, que tá pensando no Japão hoje, está pensando no Brasil. Além disso, acho que na indústria do audiovisual, nas indústrias culturais em geral, é muito importante você saber circular e conversar. Então você assiste um filme dos outros, você conversa com mais gente e você pensa também na sua criação de uma maneira que não é dirigida, é só alimentada por outras opiniões.

FCF: O Festival oferece algo que, pelo menos aqui em São Paulo, ninguém mais oferece. Alguma bolha ele está furando. Pela procura que ele tem de, por realizar mostras brasileiras e internacionais e pela qualidade da programação, a gente pode dizer que ele é uma referência importante para um público interessado nesse formato.

 

LS: Como é feita a curadoria do festival? O que é interessante ver em um curta, para vocês?

ZC: A curadoria do festival é feita de uma maneira coletiva. A gente faz um comitê de seleção que assiste os filmes inscritos. Depois que duas ou mais pessoas assistem, os que se destacam são assistidos pelos outros, e daí a gente faz uma programação que funcione para apresentar os filmes que a gente acha que as pessoas querem ver. Essa é um pouco a estrutura. Existem o comitê internacional, comitê brasileiro e o latino, e cada uma dessas sessões tem um coordenador que faz essa viagem pelos conteúdos, para puxar tudo. Daí a gente escolhe a cada ano alguns programas especiais.

 

LS: E o Kinoforum consegue dar conta de toda a demanda de produção do curta-metragem no Brasil?

FCF: Nem a pau. A gente está exibindo esse ano de filmes recentes do nosso Brasil tem 50 e poucos, então se pode dizer aí que estamos passando quase 200 curtas brasileiros, mas tem muita retrospectiva, homenagem. O Festival, certamente, passando mais de 100 curtas brasileiros do ano, porém a gente tem aí sinalizações de que estão sendo produzidos no Brasil anualmente mais de mil curtas. Esse número não tem uma contabilidade oficial, não tem uma contabilidade precisa, ela é difícil de dimensionar porque você só consegue mapear o que está sendo exibido nos festivais, e eventualmente você tem acesso às quantidades de filmes inscritos em determinados eventos que anunciam isso. Estima-se que pelo menos existem 1.300 filmes de curta duração feitos no Brasil nos últimos 12 meses, isso por conta de algumas informações que eu tive sobre inscrições em eventos por aí, mas a gente está exibindo aqui mais ou menos uns cem, cento e poucos curtas, então é um décimo do que existe. E esse um décimo seriam os melhores filmes? Dificilmente se poderia afirmar isso - inclusive porque, o que que seriam melhores, né? Que definição é essa? Cada evento tem a sua personalidade, seus interesses, alguns eventos têm interesses regionais muito fortes, tem festivais na região Norte onde a produção dessa região aparece com mais força, naturalmente;  no Nordeste tem alguns eventos com produções que sequer são inscritas em eventos aqui do Sul e Sudeste, então não dá para dizer que os cento e poucos que a gente está exibindo são os melhores curtas. São pensados alguns critérios dos comitês de direcionamento. Onde tem critérios bastante objetivos, mas também muitas subjetividades porque, enfim, se a gente considera que a criação cinematográfica tem muitas vertentes, muitas propostas, muita variedade, e a natural, e é desejável que assim seja, que quem está fazendo visionamento, seleção, curadoria e premiações tenha seus estilos de cinema favoritos. O que nós tentamos fazer, aqui no Kinoforum, é ter comitês de divisionamento diversos. Com uma diversidade geográfica, de ativismo e militâncias diversas para a gente ter um panorama. Isso é um DNA desse festival, desde o começo, criar um panorama do que está sendo produzido. As mais diversas tendências, as mais diversas geografias, as mais diversas estéticas. Isso que a gente gosta aqui no curta Kinoforum.

 

LS: E qual a importância do curta para o cineasta iniciante? E para o veterano?

ZC: Eu acho que para o cineasta iniciante o curta é um caminho maravilhoso. Porque você pode, de uma certa maneira, ousar mais do que a indústria te permite. Você pode firmar mais uma identidade de linguagem, de assunto, de uma maneira que, mesmo sem recursos extraordinários, sem uma grande equipe ou uma estrutura enorme, você pode colocar sua ideia na tela, a sua ideia e linguagem e maneira de fazer. E os cineastas veteranos adoram de vez em quando ter uma boa ideia e fazer um curta, porque é um outro tipo de processo. Você tem uma ligação mais próxima com o que você está fazendo, e você não precisa de dois anos de preparação, ganhar cinco concursos… É um outro tipo de estrutura. Pensar no mercado, pensar quem que vai entrar na sala de cinema, se você vai ter os números x, y e z. Em um curta-metragem você tem essa liberdade, e a gente tem grandes cineastas esse ano na programação do festival que fazem curta-metragem depois de terem feito longas metragens. 

FCF: Em princípio, a gente pode dizer com tranquilidade que poder praticar filmes de curta duração dá um domínio de linguagem para um realizador de modo que quando, eventualmente, se ele for fazer uma série, for fazer um longa-metragem, ele não vá correr em falhas, em erros que poderiam acontecer. Então ele já tem uma experiência de dramaturgia cinematográfica interessante. 

Existe, por exemplo, o que nos Estados Unidos eles chamam de “cartão de visita”: você faz curtas que tenham a estrutura narrativa do longa-metragem. Então apresenta personagens, instala conflito, resolve conflito, né. Curtas que, para isso, tem ali por volta de meia hora, cujo principal objetivo é mostrar o domínio do realizador para poder fazer um longa. É um “calling card” para fazer longa. Mas o que a gente entende, o que esse festival entende, é que o formato de curta duração é muito mais que isso, ele é a possibilidade de você desenvolver narrativas, a possibilidade de você cunhar uma dramaturgia que seja apropriada àquele assunto que você tá abordando, aqueles personagens, aquela é paisagem, mais do que uma regra, uma fórmula que já existia antes e você vai adaptar personagens e dramas para aquela forma curta. 

Um bom curta-metragem tem uma narrativa que é própria dele. E isso é muito interessante em termos de audiovisual como uma ferramenta privilegiada para refletir a realidade. E aí a coisa fica interessante, porque determinada realidade talvez possa ser expressada de forma mais adequada com determinada narrativa. E aí esse é o potencial do curta. Os bons curtas metragem são aqueles que narram alguma coisa, contam alguma coisa, tem uma uma narrativa ali que é própria dele para aquele assunto. Para citar um exemplo clássico, o Ilha das Flores é um exemplo disso. Ele não é parecido com a fórmula tradicional de narrativa de longa-metragem. Absolutamente. 

Hoje em dia tem uma um termo que, pouco a pouco, está se tornando mais popular no meio do audiovisual que é narrativas de risco, propostas de risco, né? Não são filmes experimentais, são filmes que têm suas próprias narrativas. Mas elas se arriscam em terrenos que não foram explorados antes ou foram poucos explorados antes. O curta-metragem tem esse potencial. E é isso que talvez justifique o fato de alguns realizadores, já consagrados no longa-metragem, voltarem periodicamente ou eventualmente, enfim, pro formato de curta duração. E no festival esse ano a gente tem alguns exemplos interessantes, por exemplo Beto Brant, que tem uma enorme carreira de longas metragem, vai fazer uma premiere mundial de um curta novo dele, a gente tem a Anna Muylaert, que está com longa em finalização, e tem um novo projeto de longa e, nesse meio tempo, conseguiu cunhar um curta com bastante impacto; a gente tem a Thais Fujinaga, que se revelou é ao longo de alguns curtas muito sofisticados, parte deles estreando aqui no curta Kinoforum, fez um longa muito elogiado pela crítica, se envolveu numa série  de ponta da Rede Globo como roteirista, mas nesse meio tempo também cunhou curta-metragem bastante sensível  que vai ter estreia mundial aqui no festival também. Então, o que leva esses realizadores ao formato de curta duração? As possibilidades e as liberdades que o formato oferece.

 

LS: Existe uma diferença entre o cineasta de curtas e o cineasta de longas?

ZC: Eu não acho que existe uma diferença. É que existem muito mais cineastas iniciando a sua carreira em curtas do que cineastas que fazem longas. Mas hoje em dia, no Brasil, a gente está com muitos cineastas que estão indo direto para o longa, e eu, de vez em quando, penso: "podia ter feito um curta antes, esse longa seria muito mais profundo" - profundo no sentido de identidade do realizador com o filme que ele está propondo. Mas existe essa coisa de "não, tem que fazer um longa" que não é a melhor ideia..  E por isso que eu acho que é importante manter o festival de curta. A gente faz questão que a entrada seja de graça para todo mundo poder ir assistir. Esse ano a gente está na periferia, nos centros culturais, é para que se veja o cinema na tela, converse na saída da sala, dentro da sala, com o diretor, com as pessoas que estão fazendo cinema no nosso país…Tem aquele lugar maravilhoso que é a Cinemateca, que guarda nossa memória, que guarda as nossas cópias, que a gente pode se ver na tela. As nossas salas são incríveis. O Cinesesc é maravilhoso, o Museu da Imagem e do Som é maravilhoso, o Itaú é maravilhoso. Se a gente pensa fazer o circuito que o festival de curtas está programado, é um circuito super nobre. Então você acaba o festival, você pode continuar indo assistir outras coisas nessas salas, você só vai ver coisa boa. 

O curta-metragem também tem essa característica que é bem interessante que, em geral, a equipe é composta de pessoas que tenham o mesmo entendimento. Então é muito legal você poder fazer conjuntamente um filme, porque eu valorizo muitos diretores, mas eu valorizo muito as equipes, os produtores,  porque eu acho que um bom curta-metragem você mistura todas essas coisas. Quando a gente olha uma equipe apresentando um curta lá na frente, você vê que os olhos brilham igual, não é só o diretor ou só o produtor. 

FCF: Assim, fazer um longa é uma experiência muito diferente de fazer um curta porque um longa-metragem a rigor, generalizando, mas vale para 99% da produção de longas, ele tem muitos compromissos comerciais. E a sua gestação é complexa porque ele custa caro. Então você precisa ao longo de anos fazer ali uma arquitetura financeira com parceiros de vários tipos, de vários países, eventualmente, que você precisa, para isso, ter um projeto que se adeque aos interesses desse parceiro. Então isso é um dado. O outro dado, e esse é muito mais cruel ainda, é que ele precisa ter resultados, na maioria das vezes resultado comercial. E a exibição comercial no mundo, ao longo dessas últimas décadas, ela foi se especializando em um só tipo de cinema, é um funil que não para de se fechar, né? Então a situação hoje, nos anos 2020, se comparar com os anos até 1980 da exibição comercial, ela é é o extremo oposto. Antes as salas eram gigantes, com um ingressos ridiculamente baratos, e onde milhares de pessoas iam normalmente ao cinema o tempo todo, todos os dias da semana, porque era muito acessível e ali cabia uma diversidade maior de propostas, todas as propostas eram consumidas. Era a diversão mais popular, se dizia que era, então se você não tinha nada para fazer, você tinha pouco dinheiro, você ia para o cinema. Hoje o cinema custa caro, são para lugares fechados, em vários sentidos, inclusive de acesso social mais restrito, e se especializou num público que é, majoritariamente, jovem e consumidor; é uma outra pegada que vai ali naqueles espaços que são complexos comerciais para consumir. Seja fast food, seja eletroeletrônico, seja vestuário, e quer um entretenimento que seja adequado para os interesses desse público, digamos, bem segmentado. 

O curta tem mais uma vantagem: ele tem a curta duração, e, pela sensação que a gente tem olhando em volta, pros nossos amigos, todos, enfim, as pessoas que a gente conhece, as pessoas que cada vez tem menos tempo para se dedicar a uma fruição audiovisual. E aí o curta teria aí mais uma vantagem então que ele se resolve em minutos. Agora, o grande desafio continua esse, como é que o público tem acesso.

 

LS: Queria falar sobre a importância do prêmio estímulo, nos anos 1990, um mecanismo de incentivo cultural que estimulava a produção de curtas-metragens para cineastas iniciantes, no estado de São Paulo, e que hoje em dia foi descontinuado. Qual foi o impacto desse programa quando o festival estava começando? Em termos de políticas públicas, o que podemos fazer para ter de volta esse tipo de incentivo?

ZC:  Foi a coisa mais importante do Estado de São Paulo para o curta-metragem. O Prêmio Estímulo era uma maneira de fazer uma seleção em cima de roteiros, de ideias, conceitos, para fazer 10 curtas por ano com uma condição de produção razoável, bacana. Quer dizer, um volume de recursos que dava para fazer filmes como você queria fazer. O resultado desses filmes - esse ano nós vamos fazer uma mostra do Prêmio Estímulo que vai acontecer lá no Museu da Imagem do Som, onde toda a coleção do Prêmio Estímulo está depositada. E são filmes que circularam muito, porque são filmes muito bons, e quando você vê a lista, tem muitos realizadores bons que fizeram Prêmio Estímulo. Eu acompanhei muito os concursos do Estímulo, eu era produtora e era uma coisa assim: a gente chegava na época do Prêmio, e estava todo mundo escrevendo, pedindo para reler, consultando atores… Era um motor do audiovisual Paulista muito forte, e eu acho que é uma pena que a gente burocraticamente tenha perdido isso.

 

LS: Em uma palestra realizada no começo de 2023, o Francisco também falou bastante sobre essa “primavera do curta” em São Paulo. No futuro podemos voltar a ter um horizonte parecido?

FCF: Olha, na verdade, assim… Há uma carência de programas de estímulo, né? Mas espera-se que volte um programa, uma política pública de estímulo, para sempre ela precisa ter abrangência federal, nacional. E aí você pode, com mecanismos democráticos,  realmente estimular de uma forma interessante a produção. Porque esses mecanismos são importantes se a gente hoje tem mais de mil curtas produzidas no Brasil e, podemos dizer, que a maioria, mais da metade deles, foi feita sem recurso de fomento ou apoio. Esses mecanismos, ao apoiarem financeiramente, permitem não apenas que a produção seja mais sofisticada tecnicamente, mas que ela seja mais sofisticada, inclusive, artisticamente, permite que você tenha, se necessário, bons atores, bons técnicos… Sempre é necessária uma boa finalização técnica, então a cena em si ganha muito com esses mecanismos.

 

LS: O que podemos esperar da edição deste ano? E no futuro?

FCF: Eu gostaria de resumir falando que, agora em 2023, a gente pode dizer que tem um cenário de uma enorme, farta e diversa produção de curtas-metragens de todas as regiões do Brasil. O Festival de Curtas esse ano, aqui em São Paulo, está exibindo filmes de 21 estados e do Distrito Federal, dos 27, o que é um excelente sinal. A produção, numericamente, está enorme, talvez como ela nunca tenha sido porque, enfim, essa contabilidade não existe infelizmente, mas são 1.200-1300 curtas que a gente tem notícia. Pelo menos esse número a gente sabe que foi feito nos últimos 12 meses, e é um número extraordinário. E se levarmos em conta as características dessa produção, a sua diversidade, a sua liberdade  narrativa, e a sua contemporaneidade de temáticas, assuntos, é um acervo extraordinariamente rico. Quem tem a oportunidade privilegiada de fazer seleção para um festival de curtas ou para uma uma programação de curtas em algum festival sente isso. É unânime. Todo mundo que passa por essa experiência de assistir a algumas centenas de curtas brasileiros feitos na última safra, ver esse conjunto, ficam impressionados com a riqueza e a diversidade.

Sobre o futuro, a gente pode achar que vai se expandir mais, em vez de mil filmes talvez o Brasil possa produzir 2.000 filmes por ano, e aí a diversidade vai ser maior. Mas que esperemos esse ano passar para a gente poder falar objetivamente. Andaram perguntando aí indiretamente, "ah, qual é o foco do festival esse ano? Qual é o caráter? Qualquer característica?". E eu falei: gente, um festival que tem 300 filmes não é um festival que tem uma curadoria que fala “esse ano vamos tratar disso ou daquilo”. A gente tenta espelhar aqui o que os realizadores de curtas metragem no Brasil, na América Latina, no mundo, estão se interessando, o que está inquietando eles. 

ZC: Estamos apostando nesse ano que vamos ter público, e a gente está convidando todo mundo que se interessa pelo audiovisual, a checar os filmes em sala de cinema. Ir ao cinema é uma experiência maravilhosa que precisa ser recuperada. Então a nossa aposta no festival deste ano é sempre um risco, mas é uma aposta que a gente faz das salas estarem animadas para verem bons filmes nas telas. E, em muitos lugares, a ideia de fazer toda essa programação na periferia é porque a gente assiste muito muito audiovisual hoje, o acesso aumentou muito né, mas coletivamente assistimos pouquíssimo, conversamos pouquíssimo sobre o cinema.

Isso era uma das coisas que o festival de curtas pretendia ensinar, realizadores, iniciantes ou consagrados a assistir um filme junto com o público. Assistir uma ideia e compartilhando com quem está na sala. É isso que me anima a fazer o festival até hoje. Essa ideia de compartilhar conteúdos, ideias e sonhos.

 

 

 

Biografia do autor:

Luca Scupino é graduado em Cinema pela FAAP, onde realizou quatro curtas-metragens como diretor e roteirista. Atualmente é crítico e editor adjunto da Mnemocine, e pesquisa no campo da história do cinema e estética, além de colaborar na produtora Pena Capital e em diversas publicações online.

 

 

A cobertura do 34ª Festival Internacional de Curtas de São Paulo - Curta Kinoforum faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

Agradecemos à Atti Comunicação e Ideias e a toda a equipe da Associação Cultural Kinoforum por todo o apoio na cobertura do evento. 

 

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção e Edição: Bruno Dias

Edição: Davi Krasilchik e Luca Scupino

Edição Adjunta, Apoio de produção e Transcrição das entrevistas: Rayane Lima