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Destaques Mostra Limite | 34º Festival Internacional de Curtas Kinoforum

Destaques Mostra Limite | 34º Festival Internacional de Curtas Kinoforum

Por Davi Galantier Krasilchik

Inspirada pelo influente longa Limite (1931), de Mário Peixoto, a mostra homônima volta ao Kinoforum para mais um ano de desconstruções cinematográficas, unida por diversas possibilidades de navegação através do sensorial e dos ruídos digitais da imagem.

 

Na tentativa de se afastar das narrativas mais tradicionais, a Mostra Limite se inspira em um dos principais marcos do cinema brasileiro, o filme Limite de Mário Peixoto. Apesar do diferente arcabouço tecnológico e temático, os seis filmes do 34º Curta Kinoforum aqui pensados resgatam o ímpeto do diretor brasileiro, que propôs uma relação entre imagem e espectador muito além de seu tempo e das camadas mais formais do cinema.

 

Unidos por um senso de reconfiguração de seu espaço e tempo interiores, os curtas apresentam diversos graus de elaboração discursiva - enquanto alguns ainda se pautam dentro de alguma reflexão sociocultural, outros são exclusivos do universo dos impulsos em imagem e som. De todo modo, um possível elo entre as obras está no modo como todos pensam uma suspensão do concreto, reconhecendo as limitações que até mesmo a melhor resolução traz consigo.

 

Talvez uma maneira de explicar essa filosofia esteja no último dos selecionados, Spiti (2023), dos brasileiros Marcio Miranda Perez e Nivaldo Godoy Jr. O filme revisita uma São Paulo da década de 90, encadeando imagens de arquivo que remetem à história da região em que o segundo diretor cresceu. Por mais que o projeto apresente uma dimensão didática, guiado por escritos que tentam simular uma linha do tempo, é interessante como a cidade construída se transforma em um lugar extremamente íntimo.

 

Essa intimidade não emerge de uma carga pessoal diretamente impressa nos arquivos utilizados, mas da maneira como os seus idealizadores, pela pós-produção, transformam o material. Enquanto tenta explicar tal trajetória, fica nítido um descompasso entre a lembrança dos diretores e a exatidão fotográfica daqueles vestígios do passado. O resultado é uma orquestra de rastros e efeitos de distorção digital, que desfazem aquelas imagens em sua condição estética à medida em que a investigação de Marcio e Nivaldo se aprofunda.

 

(Spiti, Marcio Miranda Perez e Nivaldo Godoy Jr)

 

Existe aí um dualismo entre a particularidade desses impulsos - que invariavelmente apontam para antigos fantasmas dos autores em questão - e a universalidade desse rememorar indefinido, preenchido por manchas e irresoluções. Ainda que motivado por uma justificativa mais clara, e cunhado por diferentes ferramentas visuais, esse ideal é semelhante em O Mal dos Ardentes (2022), curta francês que parte de trágicos incêndios, como o que destruiu a catedral de Notre Dame.

 

Emulada em uma plataforma de renderização 3D, a câmera flutua por entre corpos digitais, seus rostos formados por máscaras de sobreposição, retiradas de um vídeo em que uma multidão reage a um incêndio. A direção insere um amontoado de narrações em off, que representam a voz interior de cada um dos indivíduos virtuais.

 

Apesar de repetitivo, surge assim uma dicotomia interessante entre experiências coletivas - muitas marcadas na história, como é o caso da maior parte desses incêndios que acometem grandes monumentos da cultura mundial - e a particularidade de processamento daqueles submetidos a ela. O resultado é uma terra de ninguém, um vazio escuro permeado por fantasmas, seres divididos entre a carne e o computador, que vagam enquanto tentam compreender a melhor forma de lidar com os seus traumas.

 

(O Mal dos Ardentes, Alice Brygo)
 

O fogo também exerce um papel crucial em Observe O Fogo Ou Queime Nele (2022), documentário aparentemente falso dirigido pela francesa Caroline Poggi. O curta acompanha a rotina de uma incendiária, que provoca as autoridades locais através de incêndios que despertam em regiões subjugadas. Conforme afirma em voz over, ela acredita que as mesmas necessitam desesperadamente de visibilidade, encontrando as justificativas para as ações duvidosas no auto-convencimento de estar realizando algum tipo de ativismo social.

 

Nesse processo, é curioso como a direção, apesar de converter os espectadores em cúmplices da personagem, se abstém de um julgamento ético, priorizando uma exploração visual dos impactos cometidos e as consequências sensoriais do mesmo. Pela interpolação de imagens de arquivo, colocações da protagonista e dramatizações de sua jornada, a montagem suspende o realismo que o filme tenta emular em um primeiro momento, para se voltar ao reconhecimento das chamas como signo.


Tal como o registro imagético, que preserva evidências da realidade perante os nossos olhos, elas representam os vestígios de tensões irresolutas, reivindicando a atenção para si conforme queimam pelo ar. É como se o fogo fosse uma presença mitológica, mantida em filmagens de baixa resolução como espectro banhado em ruídos e pixels saltantes, que nos convida a rememorar as perdas, injustiças e dores cravadas em nosso inconsciente.

 
(Observe o Fogo ou Queime Nele, Caroline Poggi, Jonathan Vinel)

 

As labaredas são a prova viva - mesmo que o tempo dramático do filme seja possivelmente mentiroso - da passagem entre dois estados, representantes das sensações perdidas pelo tempo e aprisionadas em um não-estar, um não lugar da combustão que nenhum fotograma é capaz de testemunhar. Essa mesma percepção da imagem enquanto limite se faz presente em Nostalgia Para O Lago (2022), coprodução entre o Paraguai e a Argentina, que explora uma outra relação com o tempo.

 

Dirigido Arturo Maciel, o curta acompanha a travessia de um senhor que navega em seu pequeno barco. Remando pela noite, ele luta contra o sono através da noite estrelada. Orientado em um curso realizado pelo diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul - cineasta reconhecido por sua câmera paciente, restrita a planos longuíssimos e bastante estáticos -, o filme convida o público a se relacionar de outra maneira com aquilo que apresenta.

 

A ausência de uma estrutura dramática invoca uma atenção distante daquela provocada por estímulos mais convencionais ao cinema, emparelhando personagem e testemunha em uma jornada de cunho espiritual. Vagando pela noite escura, iluminada por pouco mais do que uma lanterna, coberta pelos lampejos de vagalumes luminosos e banhada pela sinfonia do pacífico agitar das águas, o interesse da obra está nos intervalos desses símbolos.

 

O filme se interessa pelas sombras, pela escuridão que entrecorta os vagalumes, pela sugestão que obriga complementá-lo através do inconsciente de quem assiste. Seja a duração prolongada dos planos, a lente presa ao personagem e que nos aproxima dele, ou a imersiva paisagem sonora, existe aqui um diálogo com um campo mais irracional da interpretação, que fragmenta o todo para provocar a teimosia humana de tentar compreender tudo aquilo que se sente.


Tal mecanismo é igualmente a gênese de Espectro Restaurácion (2022), ainda que este surja de uma intenção ativista mais clara. Voltando ao fogo, o filme apresenta o espectrograma sonoro de um incêndio que se deu no Pantanal. A imensidão da perda que se alastrou é dimensionada pela variação das linhas ali registradas, que performaram a história de um ciclo de desastres que se ambienta inteiramente na imaginação do público.

 

(Espectro Restaurácion, Felippe Mussel)

 

Finalmente, Mais ou Menos Trabalhando (2022) brinca com essa incerteza da imagem digital ao adentrar, literalmente, um jogo de vídeo game. O curta retrata a rotina de “personagens não jogáveis” do jogo Red Dead Redemption 2, sucesso da Rockstar Studios que se passa no Velho Oeste. 

 

(Mais ou Menos Trabalhando, Total Refusal)

 

Com uma câmera de precisão antropológica, a captação das mínimas ações dessas figuras programadas revela erros e padrões do algoritmo do jogo. Inconscientemente, isso talvez flerte com a própria história da criação humana, questionando aquilo que está ao nosso redor. A lógica de acompanhamento dessas vidas robóticas brinca com a revelação das falhas do universo digital, criando uma interessante conversa com um espectador que, mesmo ciente de estar assistindo a uma simulação, insiste em observar o desenrolar dessas questões. Somos realmente diferentes daqueles personagens, donos das rédeas de nossas próprias vidas?

 

Entre fraturas e interstícios, a Mostra Limite do 34º Curta Kinoforum revela diferentes formas de se navegar pelos ruídos digitais. Pelas mais diversas abordagens, ela brinca com a nossa concepção de imagem, ao desmantelar as suas camadas mais concretas, propondo uma nova maneira de dialogar com os impulsos que piscam sobre a tela.

 

 

 

Biografia:

Davi Galantier Krasilchik é estudante de Cinema e Jornalismo na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), onde já roteirizou e dirigiu dois curtas-metragens. Ele também já fotografou dois projetos curriculares, além de produções por fora, e escreve críticas e reportagens para meios como a revista universitária Vertovina e o site Nosso Cinema. A sua paixão pela Sétima Arte se manifesta desde a infância, e atualmente ele trabalha na Filmoteca da TV Cultura, onde ajuda a preservar esse material pelo qual tem tanta paixão.

 

 

A cobertura do 34ª Festival Internacional de Curtas de São Paulo - Curta Kinoforum faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

Agradecemos à Atti Comunicação e Ideias e a toda a equipe da Associação Cultural Kinoforum por todo o apoio na cobertura do evento. 

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção e Edição: Bruno Dias

Edição: Davi Krasilchik e Luca Scupino

Edição Adjunta, Apoio de produção e Transcrição das entrevistas: Rayane Lima