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Destaques Mostra Latino-americana | 34º Festival Internacional de Curtas Kinoforum

Destaques Mostra Latino-americana | 34º Festival Internacional de Curtas Kinoforum

Por Fernando Oikawa Garcia

Vindos de diversos países do continente, os filmes latino-americanos selecionados para o 34º Festival de Curtas de São Paulo se unem pelo desejo de refletir sobre as tensões entre a subversão e a institucionalidade.

 

Título de um dos curtas-metragens exibidos na Mostra Latino-Americana do 34º Festival Kinoforum, Aí vêm as rachaduras (2022, Daniel Matteo Vallejo) poderia igualmente ser uma expressão-síntese do espírito das produções do nosso continente que integram a programação. Se tomarmos o concreto como metáfora para o status quo e a prevalência de relações hierárquicas consolidadas, as rachaduras são justamente aquelas que prenunciam a crise latente desses modelos — a branquitude, o capacitismo, o patriarcado etc. —, bem como indicam a possibilidade de construção de novos modos, mais democráticos, de sociabilidade.

 

Não é desconectada desse espírito a imagem de uma parede branca de museu invadida por uma floresta que ultrapassa o quadro na parede, um dos signos mais robustos do curta colombiano dirigido por Vallejo. Na obra, lançada no Festival de Rotterdam, é a personagem de que Keisi explicita as contradições dos espaços institucionalizados da arte. Trabalhadora negra e queer de uma galeria que se prepara para a abertura de uma exposição fotográfica, é ela quem parece nutrir relação verdadeira com as obras, não a curadora, que lhe repreende por criar suas próprias interpretações das imagens. Keisi parece em contato com a floresta mesmo quando está em casa ou no espaço da galeria, constantemente mergulhada pelos ruídos da mata. Imagem e som, nesse sentido, prenunciam progressivamente a invasão do verde aos espaços assépticos do poder e do capital da arte.

 

Por essa espécie de chamamento da natureza, intervindo em uma realidade distinta, Aí vêm as rachaduras dialoga diretamente com Solos (2023, Pedro Vargas), curta-metragem também selecionado pelo Kinoforum para a Mostra Brasil: em ambos, seus protagonistas se transportam, encontrando o espaço natural. Tal movimento é menos coincidência que indicador de um motivo cada vez mais recorrente na arte latino-americana: a do retorno às origens simbolizado pela ida à natureza — no caso, aqui, à floresta, assumida como espaço alegórico onde as relações hierárquicas de poder são subvertidas. Nessas relações entre a rigidez da galeria e a fluidez da terra, Aí vêm as rachaduras é feliz em converter seu tema em forma, enxergando essa utopia de liberação em suas próprias imagens; transforma-se em filme-dança, ao observar o corpo em movimento de Keisi numa performance livre em meio à floresta-museu, ao som de uma batida eletrônica.


É essa mesma tônica da liberdade dos corpos que pode ser vista em Mãos alheias (2023), dirigido pelo mexicano Adrián Monroy, pelo Centro de Capacitación Cinematográfica da Cidade do México. Retratando uma jovem mulher com paralisia cerebral que busca uma prostituta para ter sua primeira vez, a obra tem um início arriscado, amplificando ao limite o desconforto da protagonista nas primeiras interações com a prostituta; aos poucos, contudo, a crueza é balanceada por momentos mais ternos entre as duas, que colocam um filme num lugar de raro equilíbrio dramático.

 

(Mãos Alheias, Adrián Monroy)

 

Para além do envolvimento das atrizes, Mãos alheias tem como maior força a liberdade de sua encenação: filmado em um Super 16 saturado de tons vermelhos, verdes e cianos, o curta prefere longos planos em movimento em detrimento da montagem de continuidade intensificada, caminhando, liberta do corte, do geral ao específico, do plano conjunto ao plano detalhe. No cerne do filme, está a autonomia do corpo da pessoa com deficiência; na prática, essa autonomia é vista através das mãos em movimento, dos giros na cadeira de rodas na pista de dança, nas mãos entrelaçadas no sexo. Tanto no filme mexicano como em Aí vêm as rachaduras, câmera e sujeito respondem um ao outro à performance livre, de modo que o fluxo dos corpos ganha caráter apoteótico e se torna um prenúncio vital de tom otimista: as rachaduras estão aqui, são imparáveis e vão vencer a institucionalidade excludente.

 

Se o curta de Vallejo fala em rachaduras e o de Monroy toca na sororidade, O mar também é seu (2022, Michelle Coelho) remonta a esses dois universos ao falar de “mulheres que criam fissuras, por onde entra a luz”, referindo-se àquelas que realizam o aborto. A lógica novamente é a mesma: há uma superfície da norma, ou, digamos, um tecido de silêncio e repressão patriarcal que aos poucos é rompido — e, como alegorias desse atravessamento, reaparecem os elementos do mundo natural (a terra, a mata, o mar). Dirigido pela brasileira Michelle Coelho e produzido pela EICTV, mais importante escola de cinema de Cuba, o documentário lançado em Rotterdam rejeita as convenções expositivas em prol de um fluxo de consciência onírico que mobiliza seu tema em torno de uma narrativa oral fabular, buscando em última instância uma ressignificação simbólica do aborto.

 

Coelho entrelaça a sua própria voz a depoimentos não identificados; incorpora, ao discurso, folclore e mitologias; sobrepõe a seu texto imagens noturnas da paisagem costeira de Cuba e da Lua. No encadeamento das imagens, a diretora distende o tempo ao máximo, alternando as frases com longos silêncios que, ao menos num primeiro tempo, reforçam o hermetismo da proposta perante o público. O ritmo atmosférico, porém, aos poucos se revela como um ritmo de depuração: se no início do sonho a mulher imagina um público a chamando de “assassina”, aos poucos novos discursos desconstroem a acusação, convertendo a paisagem do mar como signo de pacificação do aborto como um direito, uma escolha. É uma espécie de poética atlântica em que o oceano se torna a rede panamericana que interliga mulheres de todo o continente, em torno de um ideal de comunhão.

 

(O Mar Também é Seu, Michelle Coelho)

 

Em O mar também é seu, portanto, a imagem integra um processo de cura; no outro documentário destacado da mostra, o mexicano Arkhé (2023, Armando Navarro), é o oposto: ela adoece. Estamos diante de materiais de arquivo do Terremoto da Cidade do México de 1985; uma voz narradora menciona um sujeito que examinou essas imagens até não conseguir mais vê-las. Se isso é verdade ou moldura ficcional, pouco importa: ao estabelecer essa relação com uma escavação simbólica dos registros, Arkhé desloca seu interesse pelo exercício da arqueologia das imagens, daí o título da obra. A cada novo visionamento do material, uma nova percepção: um rosto espantado, uma mulher em choque. A morte está por todo lado; a destruição não é só retratada pelas imagens, mas é o que as constitui: pela poeira, às vezes elas falham, igualmente morrem, e essas falhas o filme preserva.

 

Lançado na Semana da Crítica do Festival de Cannes, o trabalho de Navarro, no contexto brasileiro, talvez dialogue com os experimentos sobre arquivo realizados por Carlos Adriano, como em Tekoha (2022), centrado em imagens da violência em terras indígenas e exibido também neste Kinoforum, na Mostra Favoritos da Crítica. Adriano, porém, é um mixador, criando batidas rítmicas de imagens, sons e palavras; aqui, prevalece mais o discurso organizado, a enunciação verbal como mecanismo fundante da reflexão. Quando cria a narrativa do arquivista afetado pelas imagens, a voz off se justifica por propor um exercício ontológico sobre a natureza das imagens; quando, todavia, quer explicar o que está na tela, o resultado é um pleonasmo texto–imagem: o presidente diz que a crise econômica se agrava pelo terremoto; a ele, contrapõe-se a narradora, dizendo que as lágrimas são maior que qualquer crise. O procedimento didático gera ainda um paradoxo curioso; quanto mais se descreve do terremoto, menos parece se entender dele, porque as informações básicas começam a faltar — pelo menos do ponto de vista do público que não tiver conhecimento prévio dele. Quando o terremoto é imagem, sua existência é universal; quando ele, mediado por palavras, torna-se história, o procedimento de escavação se associa a uma série de outras vivências e traumas que dependem da memória coletiva da comunidade local.

 

Somando-se às produções do México exibidas no Kinoforum está também o curta-metragem Apneia (2023, Natalia Bermudez), outra produção do Centro de Capacitación Cinematográfica. Da mesma forma que em Mãos alheias, retorna aqui o foco na juventude; igualmente, são retratados o relacionamento entre duas mulheres; a tônica, porém, não poderia ser mais distinta do outro. Enquanto na relação entre a prostituta e a mulher com paralisia vê-se um lugar de horizontalidade na relação, Apneia investiga a dinâmica de poder num relacionamento secreto entre uma nadadora e sua treinadora — diferenças de idade, diferenças de hierarquia, ambas que colocam o relacionamento tóxico no limiar do abuso.

 

Com isso, a “apneia”  — esse estado de respiração em suspenso — revela-se um termo polissêmico cujos sentidos vão se transformando  ao longo do curta: remonta ao universo da piscina, ao sufocamento sentido pela jovem, ao medo da treinadora em relação à descoberta do caso, entre outros. Rejeitando unidimensionalidades, a diretora orquestra o filme num jogo de agressões mútuas, registradas numa tensão progressiva e estilizada de acordo com um thriller. A paranoia da situação acaba espelhada em tempos dilatados; a câmera de Bermudez abraça tomadas em câmera lenta, não como convenções dramáticas dos dramas esportivos, mas sim empregando o recurso para amplificar um mal estar latente na relação e no ambiente.


Este, ao lado do peruano Takanakuy (2023, Vokos), talvez sejam, da seleção de curtas, aqueles cuja realização técnica mais se aproxima das tendências de um cinema de ficção de grande público. O drama progride de modo crescente, a linguagem opera de modo clássico, em um produto bem acabado que em nada deve a produções de maior orçamento. Em Apneia, são proezas técnicas os travellings subaquáticos das cenas de natação, os planos-sequências que isolam a protagonista do grupo, o desenho de som imersivo — o fetiche técnico, portanto, existe, mas encontra convergência com as necessidades dramáticas da obra. No caso do filme de Vokos, por outro lado, os excessos de câmera lenta, somados a trilha sonora insistente, colocam vez ou outra o filme no limiar da linguagem videográfica. Melhores são os planos que revelam a beleza pictórica das paisagens naturais peruanas, filmadas num preto-e-branco contrastado, estabelecendo um contraste entre a dimensão das montanhas e dos humanos que dialoga com as opressões sociais reveladas no curta.

 

(Takanakuy, Vokos)

 

Falado em quechua, língua indígena inca, Takanakuy é, antes de tudo, um filme sobre as relações entre masculinidade e violência. Na primeira cena, é nítido esse binômio quando o menino protagonista é forçado por seu grupo a participar da morte violenta de um animal, como forma de provar virilidade. Em contraponto, surge a sua amizade com um garoto um pouco mais velho da comunidade, numa relação cuja ternura é motivo para a repressão do pai do protagonista. Nas trocas entre os dois jovens, a homossexualidade fica subentendida, enquanto Vokos permite que os dois estabeleçam entre si uma cumplicidade que muito difere das dinâmicas violentas da masculinidade hegemônica.

 

Enquadrando a narrativa no contexto do festival do Takanakuy — quando no dia do Natal os membros da comunidade realizam duelos violentos para cessar brigas internas e restabelecer a paz coletiva —, o curta entrelaça a história dos garotos à prática local. Sua relação de ternura virará razão para a luta no festival, estabelecendo um entrelaçamento de oposições: o microcosmo do particular inscrevendo-se no ritual coletivo; a ternura dos rapazes sendo reprimida pela tradição violenta e “viril”.  Com isso, Vokos desloca seu filme do melodrama pessoal à observação etnográfica, abraçando a câmera na mão e o registro documental das práticas locais. Nesse dialética, cria-se um registro híbrido, com a acessibilidade da dramaturgia clássica aliada à beleza plástica, mas sem aderir a moral típica do drama: as intenções do filme em relação ao Takanakuy permanecem ambíguas, ora sendo crítico à prática, ora compreendendo a tradição como um exercício proveitoso de catarse coletiva. 


Num contraste evidente a esse universo masculino, mas ainda na chave do coming-of-age, surge o último curta destacado na mostra: a animação colombiana A cadela (2023, Carla Melo Gampert), lançada no último Festival de Cannes. Na obra, assiste-se ao retrato do despertar sexual de uma jovem mulher-pássaro, que deixa para trás o universo familiar em busca de novas experiências no mundo. É uma histórica típica dos dramas de amadurecimento, mas Melo Gampert encontra originalidade em seu traçado. Por meio da animação de aquarelas sobre cartão branco, A cadela exibe um interesse nas imagens surreais que podem ser reveladas apenas em seu meio, e até a composição antropomórfica de suas personagens é significativa nesse sentido. A pintura se coloca em constante metamorfose: objetos viram novos objetos, sombras viram véus expressionistas. É uma representação cheia de artifícios, mas que ainda assim não abandona a crueza necessária, como se vê na sequência em que a mãe dominadora, tentando manter sua filha perto de si, acaba por quebrar seu bico.

 

(A Cadela, Carla Melo Gampert) 

 

Traduzido ao inglês como o mais direto “the bitch”, A cadela é um título proveitosamente ambíguo que serve de síntese às temáticas centrais da obra, remetendo tanto à relação entre a jovem e sua cadela de estimação, que ela deixa em casa com sua mãe, como também é uma ironia em relação ao julgamento conservador sobre o exercício da sexualidade livre feminina. Com apenas quatorze minutos, é natural que o filme não escape de certas sequências já convencionais desse tipo de crítica social. Na passagem em que a protagonista se depara, na rua e nas mídias digitais, com imagens idealizadas e sexualizadas da mulher, o comentário a respeito dos efeitos negativos da indústria da beleza inesperadamente remete aos curtas animados do animador britânico Steve Cutts, que costumeiramente viralizam nas redes; é o momento mais frontal do filme, e no qual menos se explora a potência simbólica do insólito, como nas imagens expressionistas do sexo e da maternidade.

 

É, felizmente, uma porção pequena. Ao final, a diretora retoma seu imagético surreal, mas o entrelaça com o drama familiar, confirmando que, para além do coming-of-age, A cadela é uma obra sobre as diferentes experiências do feminino, as quais se vêem ora em choque, ora em comunhão, conforme o encontro entre mãe e filha. Na condução de sua linha dramática, o filme encontra, sem dificuldades, a catarse emotiva, reiterando também a pulsão natural do cinema latino-americano ao melodrama, como defende Silvia Oroz em clássico estudo sobre o gênero, “O Cinema de Lágrimas da América Latina”: uma relação cuja origem remonta às bases de um cinema latino-americano de caráter popular e que, posteriormente, foi rejeitada pela crítica, acusando o gênero de apelativo ou estritamente vinculado à cultura de massa.


Se "melodrama" é um termo-chave que se repete nos curtas destacados neste texto, contudo, isso é prova da vitalidade dessa tradição, capaz de se reinventar e assimilar, no universo privado, as contradições sociais que são latentes e interferem nas relações de personagens entre si e com o mundo. Por meio dos curtas da Mostra Latino-Americana do Kinoforum, o que se relembra é a legitimidade da catarse emotiva no aparato fílmico, na medida em que o melodrama tem notável vocação ao alegórico e o universal: não é uma mãe ou uma filha — são mães e filhas, cujos dramas sintetizam sintomas de seu tempo histórico, ultrapassam a tela e entram em contato direto com a realidade.

 

 

Biografia: 

Fernando Oikawa Garcia é graduando em Cinema pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), onde realizou projeto de pesquisa sobre o cineasta Fernando E. Solanas. É diretor e roteirista de três curta-metragens, buscando refletir nas produções seu interesse pelas possibilidades de diálogo entre cinema e literatura.

 

 

A cobertura do 34ª Festival Internacional de Curtas de São Paulo - Curta Kinoforum faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

Agradecemos à Atti Comunicação e Ideias e a toda a equipe da Associação Cultural Kinoforum por todo o apoio na cobertura do evento. 

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção e Edição: Bruno Dias

Edição: Davi Krasilchik e Luca Scupino

Edição Adjunta, Apoio de produção e Transcrição das entrevistas: Rayane Lima