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Destaques Mostra Internacional | 34º Festival Internacional de Curtas Kinoforum

Destaques Mostra Internacional | 34º Festival Internacional de Curtas Kinoforum

Por Carolina Azevedo

 

Misturando gêneros, formatos e temáticas, os destaques internacionais da 34ª Mostra de Curtas de São Paulo exploram uma juventude pós-pandêmica em ritmo de sonho e tocada pela morte, seja ela no cinema ou na vida real.

 

Reunindo mais de 50 filmes de 34 países, a Mostra Internacional do 34º Curta Kinoforum distancia-se da política enquanto tema explícito para explorar um cinema de emoções e autorreferências, ao contrário da tendência nacional – após quatro anos de desgoverno, as mostras de cinema brasileiro ilustram um senso de preocupação com questões sociais, raciais e de gênero. A seleção mundial de curtas, por outro lado, tem como destaque filmes centrados em registrar as questões familiares, o processo de transmissão de heranças culturais em um mundo globalizado e a juventude. Em suportes que vão do nostálgico stop-motion às cores mansas da película, os curtas expressam reflexões características do momento de pandemia em que muitos deles foram concebidos, versando sobre o luto e o convívio familiar enquanto juventude esperançosa. 

 

Um cinema autorreferencial 

Exibido na mostra Berlinale Shorts do Festival de Berlim, a grande aposta da seleção é no estrelado Todas as Festas de Amanhã (Dalei Zhang, China, 2023), que coloca em tela dois grandes atores do cinema chinês: Zhou Xun, enquanto recepcionista que distribui ingressos para a exibição de filmes em uma fábrica, e Wang Yibo, como poeta misterioso. A tensão construída sobre o silêncio dos dois personagens faz referência sutil ao contexto em que o filme se estabelece: logo após o fim dos Jogos Asiáticos de 1990, o clima do país que sediou o evento é de um nacionalismo extravagante, que faz o povo cantarolar a música tema dos jogos, enquanto intelectuais – como o personagem de Yibo – fogem da repressão governamental.  

 

Apesar da caracterização exagerada no que diz respeito à tentativa de localizar temporalmente o personagem através do figurino, o poeta de Yibo representa a dissolução de ideais políticos e culturais após o Massacre da Praça da Paz Celestial, bem como a angústia da classe intelectual frente ao entusiasmo alienado da população. É nas entrelinhas que o sucesso do filme se constrói – no olhar que Zhou Xun fixa na televisão enquanto assiste ao encerramento dos jogos ao lado de sua mãe, e nos tons de azul que ecoam o poema “The Blue Train”, cujos trechos são recitados rapidamente. O final, no entanto, escancara a pretensão ao exibir Os Incompreendidos (1959), de François Truffaut, para os personagens, em nota autorreferencial que mistura o emotivo com o cafona.

 

O chinês não é o único a referenciar o passado do cinema, inusitadamente evocado pelas mortes de Udo Kier em Encenando a Morte (Jan Soldat, Áustria, 2022). Em ordem cronológica, foram compiladas cenas em que o ator alemão morre, ao decorrer dos seus 55 anos de carreira internacional. Não há quem questione a relevância do homenageado na história do cinema, mas o mesmo não pode ser dito do filme, que não propõe intervenção visual ou sonora qualquer no pequeno exercício de montagem. Após tirar risadas confusas dos espectadores da Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes deste ano, o curta de Jan Soldat é exibido no décimo programa da Mostra Internacional, “Epílogo”, que reúne a maior quantidade de destaques em uma única sessão.

 

Tudo virará pó

Exibido na mesma sessão, Aeromoça-737 (Thanasis Neofotistos, Grécia, 2022) explora os traumas de infância de uma comissária de bordo que, ao mesmo tempo em que trabalha, transporta o corpo de sua mãe para ser enterrado ao lado da avó. A câmera mantém-se fechada no rosto da atriz Lena Papaligoura, cujo constante movimento da boca é somado à falta de amplitude de campo para deixar o espectador na ponta da cadeira, esperando algo dar errado. O constrangimento de uma mulher adulta que acaba de colocar aparelho dental e repetidamente suja os dentes com o batom vermelho, que aplica de minuto em minuto, serve para esconder os traumas que a mãe lhe causou na infância. O corpo – ou melhor, o rosto – da atriz é trabalhado de modo a expressar o trauma e o luto, atuação que rendeu a Papaligoura o prêmio de melhor atriz no Festival de Atenas.

 

(Lena Papaligoura em Aeromoça-737, Thanasis Neofotistos)

 

Ao lado do anterior,  III (Salomé Villeneuve, Canadá, 2022) é ofuscado. Ao apresentar seu filme no Festival de Veneza, a diretora, filha de Denis Villeneuve, foi tachada como nada além de mais um sucesso do nepotismo.  Consciente do peso que seu nome carrega, a diretora mantém-se discreta e muito distante da megalomania dos filmes de seu pai. 

 

Apesar da simplicidade formal, o curta tem como mérito a abordagem sensível ao mesmo tema – a morte. Em um dia quente de verão em uma grande casa, à beira do lago, três irmãos pequenos brincam com sapos e peixes, até que uma briga eclode e eles são obrigados e enfrentar a morte pela primeira vez. Os verdes e azuis da vasta floresta que abriga a história refletem a melancolia infantil daquele momento, capturado de forma bela, mas sem ir muito além disso em sua reflexão. 

 

O verão nublado tingido de morte também é tema de A Ferida Luminosa (Christian Avilés, Espanha, 2022), também exibido na mostra Berlinale Shorts do Festival de Berlim. Deprimido com o clima chuvoso de Liverpool, um adolescente ganha de sua mãe uma viagem para as Ilhas Baleares, na Espanha, onde os jovens precisam absorver o máximo de sol possível antes de voltarem para a Inglaterra. 

 

O tom tragicômico dessa juventude é dado pela narração do protagonista – que fala com seriedade sobre a deficiência de vitamina D e o poder entorpecente do sol – sobreposta à luminescência da imagem gravada em película. As imagens fazem lembrar os verões em cores pastéis nos filmes dos anos 1980 de Éric Rohmer, contrastando com a obviedade de que estamos na era dos smartphones. O amadorismo da filmagem – em planos simples e cores com pouca ou nenhuma estilização, remetendo à estética de filme caseiro – garante algo de onírico à história, que acaba em pesadelo quando o protagonista pula da varanda em direção à piscina e vai parar no hospital. O absurdo perde controle quando a narração indica que a tendência de jovens ingleses que vêm pulando de varandas nas praias espanholas seria uma espécie de “maldição colonizatória”, transformada em espetáculo de TV por todos que assistem à cena através das câmeras dos celulares.

 

(A Ferida Luminosa, de Christian Avilés)

 

Ao fugir da seriedade que tantos outros filmes da programação propõem, A Ferida Luminosa se torna um destaque da produção jovem. O mundo retratado é o das redes sociais, de adolescentes infelizes que sonham com um verão europeu que todos parecem estar vivendo, menos aquele que o assiste pela tela. Há algo de político em toda tragédia individual, mas é impossível levar o mundo a sério enquanto ele desmorona em frente aos nossos olhos todos os dias. O filme captura essa ironia de uma juventude que vive entre a alienação do sonho e a politização do espetáculo, e faz rir de si mesma. 

 

Em sentido completamente oposto, E Quão Miserável é o Lar do Demônio (Saleh Kashefi, Suíça, 2023), do iraniano Saleh Kashefi, explora o assassinato ficticio de Ali Khamenei, lider supremo do Irã há 35 anos. O site oficial do líder é repleto de filmagens em alta definição de sermões, dos quais o diretor se apropria para construir a história da tomada do poder pelo povo através apenas do som. Sem mexer nas imagens do tirano, o diretor altera o som para substituir as suas falas pelos gritos de uma guerrilha, que estaria chegando à sua residencia para matá-lo. Sentado covardemente em seu trono, o líder aguarda a chegada de protestantes, cujos gritos aumentam a cada segundo, até um berro anunciar o corte bruto que simboliza seu fim. 

 

Refugiado na Suíça, onde realizou o filme, Kashefi participa da revolução ao subverter a imagem fabricada pelo líder em desejo popular. Apesar da curta duração – não passam de 7 minutos de filme –, a repetição das imagens diminui a força da intervenção, que poderia causar o mesmo efeito com maior intensidade, caso fosse feita em menos tempo. 

 

Animação e tradição familiar

A animação não é deixada de fora da programação, com destaque para o stop-motion Sonho de Rolinho Primavera (Mai Vu, Reino Unido, 2022), em que uma mãe que ​​construiu sucesso para si e seu filho nos Estados Unidos precisa confrontar sua herança cultural vietnamita, quando seu pai chega para visitá-la. Apesar da história simples e rasa – o recorte temporal e as ações rápidas dos personagens não reverberam em muita identificação –, a técnica primorosa do papel em movimento garante algum sentimentalismo. É de gerar sorrisos genuínos quando o garoto come um pedaço do rolinho primavera e as pequenas bolinhas de papel machê rodam pelas bochechas ao mastigar.  

 

Vencedora do Prêmio Lights on Women para melhor curta dirigido por mulher no Festival de Cannes, Mai Vu tem como maior mérito os momentos em que o surrealismo toma conta da narrativa: quando as pernas recém cortadas de um frango saem andando pela casa ou quando o garoto se transforma em recheio para o rolinho. Com maior tempo de duração, o aspecto do “sonho” evocado pelo título poderia fazer do filme uma obra verdadeiramente única – quem sabe de tanto sucesso quanto o americano Bao (Domee Shi, 2019), ganhador do Oscar cujas semelhanças ao filme de Vu vão do formato à temática.

 

(Sonho de Rolinho Primavera, de Mai Vu)

 

Menos apelativo, Quanto a Nós (Simone Massi, Itália, 2022) também inicia com cenas típicas de família, mas os desenhos derretem no fundo escuro e fazem difícil de captar qualquer  significado. O que chama atenção no curta, que foi exibido no Festival de Veneza, é o som: chamados, gritos e sons animais se misturam à trilha para prender o espectador, até que o preto e branco da tela seja tomato por tons de vermelho, que inundam os desenhos de sangue junto da chegada de tanques e soldados. 

 

Entre o passado e o futuro, o cinema 

Apesar das diferentes temáticas, técnicas e abordagens, os curtas da Mostra Internacional do 34º Curta Kinoforum mostram uma melhoria do que diz respeito à qualidade e à diversidade de filmes escolhidos nos três anos anteriores, em que países de produção relevante como a China ainda tinham suas produções limitadas por imposições da pandemia. O momento também é marcado por sentimentos próprios da juventude que está por trás das câmeras, mais bem representados pelo espanhol Christian Avilés, em A Ferida Luminosa. Seja com produções elaboradas e atores premiados ou com uma simples câmera 16mm e arquivos baixados da internet, os filmes aqui destacados têm como tônica o desejo de sonhar com dias mais ensolarados, acompanhado pela tragédia inevitável da morte, e o luto daqueles que ficam para trás. No fim, o que importa para os jovens cineastas mundo afora é fazer e prestigiar um cinema que não deixa de olhar para o passado, sem se esquecerem de sonhar com o futuro. 

 

Estes são apenas oito dos 56 filmes internacionais selecionados, entre mais de 2.000 inscritos no festival. Saiba mais sobre a programação, quando e onde assistir aos filmes citados no site do Kinoforum.

 

 

Biografia:

Carolina Azevedo é jornalista, crítica e tradutora. É repórter do Le Monde Diplomatique Brasil, editora-chefe da Revista Vertovina e autora da newsletter Correspondências. Já escreveu para catálogos da Cinemateca do MAM-Rio e sites internacionais de crítica como o Wasteland Arts. Atualmente, pesquisa cinema e arquivos feministas.

 

 

A cobertura do 34ª Festival Internacional de Curtas de São Paulo - Curta Kinoforum faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

Agradecemos à Atti Comunicação e Ideias e a toda a equipe da Associação Cultural Kinoforum por todo o apoio na cobertura do evento. 

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção e Edição: Bruno Dias

Edição: Davi Krasilchik e Luca Scupino

Edição Adjunta, Apoio de produção e Transcrição das entrevistas: Rayane Lima