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Mostra Brasil IV (Outros Ventos?) | 34º Festival Internacional de Curtas Kinoforum

Mostra Brasil IV (Outros Ventos?) | 34º Festival Internacional de Curtas Kinoforum

Por Victoria Neves

 

A Mostra Brasil IV do Festival de Curtas Kinoforum apresenta quatro impactantes filmes que, distintos entre si, se assemelham na abordagem sobre a perda.

 

 

Considerando que o vento é usado em expressões culturais que conferem à palavra um sentido de atmosfera ou tempo, o nome concedido à mostra Brasil IV, “Outros Ventos?”, chama atenção para a questão da mudança nos tempos ou nos ares do país. É isso que os quatro filmes aqui escolhidos para representá-lo expõem. Dentro de seus relatos particulares, comovem ao transitar por lembranças e histórias do passado, tecendo assim a relação com o título da mostra e a conclusão de que os ventos são, decerto, outros. 

 

A abertura da mostra é feita com um impactante filme de quatro diretores: Flávia Person, Walderes Coctá Priprá, Barbara Pettres e Walderes Coctá Priprá. Van Gõ Tõ Laklãnõ, como o filme de 2022 é intitulado, caminha por entre a história do povo indígena Laklãnõ, que antes residia em uma área que ia do estado do Paraná até o Rio Grande do Sul até sofrer com os processos de colonização e receber ações possessórias. O filme ilumina a memória da vida e da luta de um povo que foi deixado nas sombras da história, após anos de opressão. A narrativa do filme documental se desenrola de forma primorosa, combinando fotografias de época, vídeos contemporâneos, poemas e relatos. Tal perspectiva multifacetada permite que a obra vislumbre a riqueza cultural e espiritual da comunidade. 

 

No início da narrativa, é apresentada uma crença importante para o povo Laklãnõ, Iolo, o pássaro que possui dois cantos, um encarregado de trazer notícias boas e o outro, notícias ruins. Assim como a figura do pássaro, os diretores são hábeis em retratar os momentos notáveis da história da comunidade indígena, ao mesmo tempo em que exploram os atos cruéis perpetrados contra eles. É notável a mescla entre esses dois aspectos sem que se perca o foco central da narrativa. O filme serve como lembrete de que a história do Brasil não pode ser contada sem incluir a história dos povos indígenas, e resgata como o povo Laklãnõ teve e ainda tem de lutar para manter a sua identidade e resistência, mesmo após tantas perdas ao longo dos anos. 

 

Sucedendo ao primeiro, o próximo filme que a sessão "Outros Ventos?” apresenta também se debruça nos relatos poderosos e tocantes de povos indígenas. Ava Mocoi, Os Gêmeos (2022), no entanto, favorece o relato, deixando as imagens, mesmo que impactantes, em segundo plano. Tal escolha dos diretores Vinicius Toro e Luiza Calagian é interessante, uma vez que permite que a narração brilhe ao contar a quem assiste um pouco de como é ser indígena no Brasil atual. A partir do relato, percebe-se que “ser indígena”, no Brasil, é quase como “não ser” - visto que, além de terem seus territórios retirados, o mesmo ocorre com a sua identidade. Fotos e vídeos da cerca que limita a aldeia indígena do povo Guarani compõem o filme, eficaz em realçar que o tratamento que lhes é conferido não os coloca como verdadeiros e legítimos brasileiros, mas como animais perigosos. O filme levanta a reflexão tão facilmente esquecida de que, em outros tempos, aquele mesmo povo, conhecedor de toda aquela natureza e terra, fora residente intrínseco destas. A reflexão é ainda mais necessária quando é obtida através de relatos de alguém pertencente ao povo indígena, e que vive tal discriminação todos os dias. 

 

(Os Gêmeos, Ava Mocoi)

 

O tempo e as suas transmutações também mudam completamente o mundo do protagonista na animação de Robson Cavalcante, Diafragma (2023) - em que, diferente dos dois primeiros filmes, são as atitudes do próprio personagem que irão fazê-lo se adaptar a uma nova realidade. O curta é uma obra cinematográfica que nos leva a uma jornada extraordinária através dos olhos de Carlos, um garoto cujo fascínio pelo mundo o transforma em um verdadeiro poeta visual, capaz de enxergar tudo através da lente de seu próprio olhar. No entanto, o destino prega uma peça cruel a Carlos quando ele é diagnosticado com diabetes e desenvolve um vício em colírios. Uma reviravolta ocorre no filme quando o protagonista, por conta de seu vício, fica cego. Através da música e da narrativa visual, nossa atenção se prende à jornada de Carlos, de tal forma que a visão não é somente uma questão do olhar, mas também do coração. A obra é narrada pela voz do próprio protagonista quando ainda criança, dando a ela um tom ainda mais comovente ao apresentar como Carlos conseguiu se adaptar à nova vida e encontrar beleza mesmo em uma situação muito desafiadora. 

 

(Diafragma, Robson Cavalcante)

 

Acompanhando a linha de eventos que geram uma reviravolta na vida, o último filme da seleção é uma viagem íntima por cenas da vida do jornalista Dom Phillips e sua amizade com o diretor do filme, Otavio Cury. O filme documental serve de homenagem ao primeiro, que teve a vida interrompida prematuramente ao ser assassinado no decurso de uma viagem pelo Vale do Javali, no extremo oeste do Amazonas. Narrado pelo próprio diretor e amigo íntimo de Dom, Onde a Floresta Acaba (2023) é habilmente construído, alternando entre os relatos e as imagens da vida do jornalista, que acompanham as suas viagens, aventuras e trabalhos. O narrador começa o filme reflexivo e suas indagações e posições começam a ter sentido maior quando se entende que ele fala com o falecido amigo, Dom, com quem compartilhou alguns de seus melhores momentos. A personalidade cheia de vida e carismática do jornalista contrasta com a profunda tristeza de sua repentina morte, gerando uma conexão e compaixão ainda maior pelo narrador. 

 

Em última análise, os quatro filmes exploram a ideia de que, diante de outros ventos e outras circunstâncias, ainda é possível fazer o uso da poderosa forma de arte que é o cinema como levantador de importantes reflexões. Cada um, à sua maneira, conduz o espectador através do doloroso sentimento da perda, que em alguns casos, como nos filmes Diafragma e Onde a Floresta Acaba, desafiam a refletir sobre a natureza efêmera da vida. E outros, como é a condição dos dois primeiros Van Gõ Tõ Laklãnõ e Ava Mocoi, Os Gêmeos, geram reflexões e são quase um apelo para a ação - pois ainda há o que ser feito. Os filmes que compõem a Mostra Brasil IV não apenas emocionam, como também constroem um senso de inspiração e estabelecem uma visão alternativa sobre a vida.

 

 

Biografia

Victoria Neves é estudante de Cinema na universidade FAAP. Completamente encantada por tudo o que se relaciona à escrita e suas possibilidades, se dedica a escrita de críticas de cinema, histórias e roteiros.

 

 

A cobertura do 34ª Festival Internacional de Curtas de São Paulo - Curta Kinoforum faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

Agradecemos à Atti Comunicação e Ideias e a toda a equipe da Associação Cultural Kinoforum por todo o apoio na cobertura do evento. 

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção e Edição: Bruno Dias

Edição: Davi Krasilchik e Luca Scupino

Edição Adjunta, Apoio de produção e Transcrição das entrevistas: Rayane Lima