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Anatomia de uma Queda (2023, Justine Triet) | 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

Anatomia de uma Queda (2023, Justine Triet) | 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

Por Luca Scupino

 

Se há uma característica que faz do “filme de tribunal” um gênero propriamente cinematográfico, esta reside no conflito entre o visto e o não-visto, em como a realidade se vê transformada em narrativa. A despeito de seus vícios (a verborragia talvez o mais fácil de ser apontado deles), é de sua natureza o debate sobre um grande fantasma do cinema: o extracampo. Afinal, de 12 homens e uma sentença (1957, Sidney Lumet) a JFK (1990, Oliver Stone), como elaborar sobre algo que o filme não nos mostra? O bom cineasta, nesse sentido, nada mais é que um promotor, pendendo a realidade com sua câmera, pedindo a nós que julguemos os fatos com base em evidências jamais inteiras, sempre impuras enquanto mediadas por um olhar.

 

Anatomia de uma queda, de Justine Triet, é um filme sobre a impossibilidade de enxergar os acontecimentos sem a mediação de uma narrativa. Não demora para percebermos que se trata de uma releitura do velho mito de Joana D’Arc, uma história de inquisição contra uma mulher em desvantagem em relação a seus algozes. A protagonista, Sandra Voyter, interpretada pela extraordinária Sandra Hüller, é uma escritora de livros autoficcionais cujo marido, também escritor, morre ao cair do último andar de sua casa no campo. A única testemunha é o filho, um garoto com problemas de vista que saiu para passear com seu cachorro – e tanto a criança quanto o animal serão figuras-chave durante o julgamento de Sandra, acusada de homicídio.

 

Enquanto espectadores, ao modo de um filme de Antonioni, nós também não somos apresentados ao que ocorreu. Triet é eficiente em lançar pistas sobre o que está falando, e parece sempre estar um passo à frente, deliberadamente escondendo informações. Há sempre algo acontecendo, e como num truque de mágica, nos confundimos em relação a que devemos prestar atenção – caso da primeira cena, uma entrevista a Sandra em que a música alta e as perguntas invertidas geram um iminente incômodo, antes da morte do escritor. 

 

Frente a isso, o filme nos força a criar hipóteses, “decidir”, nada mais que constituir uma narrativa a partir das memórias seletivas dos personagens, inclusive as desta mulher que tem a seu favor apenas a própria palavra. O roteiro tem um curioso mecanismo em que o espectador sabe sempre menos que a protagonista, de modo que cada passo é acompanhado por uma dúvida. Triet parece nos lançar uma provocação: até onde estaríamos dispostos a incriminar essa mulher com base em algo que não vimos?

 

Existe também algo de muito irônico na maneira como a narrativa é construída, como se a câmera tivesse uma certa onisciência dos acontecimentos. Em uma cena, que bem lembra a acidez de Fassbinder, o menino é interrogado e a câmera vai de um lado para o outro, em travellings rápidos, acompanhando quem faz perguntas a ele enquanto brinca com as possibilidades de enquadrar a cena. Essas inquietações formais, antes de estarem presentes por mera provocação, despertam questionamentos muito pertinentes sobre a natureza das ficções, sobre o que somos levados a acreditar quando diante daquilo que não podemos ver. A própria oscilação presente no filme entre a língua inglesa e francesa, aponta para uma zona cinzenta entre a capacidade de elaboração da linguagem e a interpretação dos fatos.

 

Não é por acaso que a protagonista é uma escritora – em dado momento, quando o promotor (certamente um dos personagens mais detestáveis do cinema recente) a acusa com base em passagens de seus livros, a juíza pergunta: “agora vamos falar de literatura?”. Não só falaremos dela, como também a própria ficção será uma maneira de entender (e implodir) a realidade. É dessa incapacidade, inclusive, que seu marido padecia como escritor. Sandra escreve livros baseados em eventos de sua vida, como uma forma de reescrever a realidade por meio da linguagem. No tribunal, através dessa detestável figura do promotor, ela vê sua própria técnica distorcida e usada contra ela para destruir sua reputação. E, apesar de Triet pender para o ponto de vista da inocência de Sandra, há uma perversidade muito bem-vinda quando ela nos lança contra sua própria protagonista, na medida em que começam a surgir provas contra ela que retiram a estabilidade de todos os discursos construídos até então.

 

Inserções de câmeras amadoras dos investigadores, fotografias antigas, desenhos e reconstituições visuais do crime: Anatomia de uma queda conta com diversas modalidades de imagem, que buscam fragmentar uma percepção absoluta da realidade. Mesmo a maneira como ela enquadra a casa, através das linhas de madeira e dos diferentes andares; ou a própria constância dos movimentos de câmera e migrações no ponto de vista narrativo, transformam o espaço e os eventos em um enigma sem solução. Se o filme incorre no erro, muitas vezes, de se achar mais inteligente que o espectador, o que interessa aqui é sobretudo pensar sobre o que está além da capacidade de demonstração do próprio cinema. Por isso, a única testemunha possível é um menino cego – ao negar certezas, o longa opta pelo louvável peso da ambiguidade, que permanece muito após seus créditos finais.

 

 

Biografia:

Luca Scupino é graduado em Cinema pela FAAP, onde realizou quatro curtas-metragens como diretor e roteirista. Atualmente é crítico e editor da Mnemocine, e pesquisa no campo da história do cinema e estética, além de colaborar na produtora Pena Capital e em diversas publicações online.

 

 

A cobertura do 47º Mostra Internacional de Cinema São Paulo faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

Agradecemos a toda a equipe da Assessoria da Mostra por todo o apoio na cobertura do evento.

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção e Edição: Bruno Dias

Edição: Davi Krasilchik, Luca Scupino, Fernando Oikawa e Gabriela Saragosa

Edição Adjunta e Assistente de Produção: Davi Krasilchik e Rayane Lima