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Assassinos da Lua das Flores (2023, Martin Scorsese)

Assassinos da Lua das Flores (2023, Martin Scorsese)

por Davi Krasilchik

 

Renovando a sua habilidade como mestre do cinema americano, Martin Scorsese propõe a investigação de rostos e culturas sob a fantasia do épico de western. Através de um jogo de múltiplas perspectivas, ele denuncia o monopólio da visão dos grandes vencedores históricos e desconstrói caminhos percorridos ao longo de sua carreira. 

É em lamento que se deve relativizar a construção do registro histórico, milenarmente embebido em uma série de apropriações de poder. Arquitetos de uma percepção factual que durante décadas foi adotada como realidade, os vencedores dos principais conflitos globais se provaram excelentes contadores de história, distorcendo perspectivas que poderiam tornar o mundo um lugar mais múltiplo. Munido de uma plataforma distante do alcance de muitos, o diretor Martin Scorsese relativiza o processo de consolidação do discurso em fato no seu novo filme, tornando a maleabilidade da imagem uma pulsante forma de protesto.

 

Baseado em um livro homônimo de não ficção, escrito por David Gran, Assassinos da Lua das Flores acompanha o assassinato sistemático de indígenas que ocorreu em Oklahoma nos anos 1920, orquestrado por poderosos latifundiários que desejavam tomar as terras para si. O longa segue o ex-militar Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio) - , o sobrinho do grande líder da região, William Hale (Robert De Niro) -, que volta a sua casa para se casar com a índia Mollie (Lily Gladstone) e auxiliar a ocupação.

 

Apesar de ter sido preservada em material jornalístico, é interessante observar como a direção desconstrói essa objetividade das fontes escritas. A produção parte da encenação de um ritual indígena, onde o enterro de um artefato antecipa a partida de uma tribo desfavorecida. Um olhar misterioso testemunha o rito, distante das ações ali performadas em seu próprio plano de pré-concepção. É esse signo que recebe o espectador em um assumido jogo de perspectivas, anunciando desde já esse lugar de valorização dos interstícios entre visões e bagagens pessoais.

 

O resultado dessa cerimônia religiosa se manifesta na eclosão de um poço de petróleo, cuja força pulsante escapa para a superfície de maneira inexplicada. O tal êxodo se torna desnecessário, e a ascensão econômica e social da Nação Osage dispara a sinfonia de interesses e perversidades a ser conduzida em tela. Temos, desde o início, uma obra que reconhece a dimensão mais abstrata do visual, flertando com as intersecções entre o que está nas páginas do material jornalístico e aquilo que se ancora na iconografia das observações particulares de cada um. É como se Scorsese simulasse os códigos de um faroeste clássico, mas ciente da influência que o idealismo americano exerceu em sua construção como gênero. Nem por isso o cineasta recusa o formalismo, ou mesmo uma estrutura mais lógica pautada por conflitos claros e que espiralam a divisão interna do protagonista. Mas esses usos tradicionais são acompanhados por uma ressignificação da própria ideia de se contar histórias.

 

Fragmentando as perspectivas que conduzem a narrativa, é interessante como o filme apresenta a mitologia da Nação Osage pelo olhar de Ernest. Sua presença como colonizador, intermediando os índios e o público, nos torna reféns de suas ações e reforçam essa dilatação ao perceber o “outro”. Em contraponto, chama atenção como as confidências de Mollie, também em voice off, se dão em um plano mais metafísico. A sua presença acaba capilarizada em tela: para além do andamento mais direto da trama, as reflexões da personagem acabam em si, reivindicando traços de sua persona em detrimento da ideia de um projeto de imposição sobre os demais. Seja em suas idas à Igreja ou na rememoração dos nomes de vítimas que realmente existiram, ela revela aspectos e simbologias que Ernest não é capaz de acessar, paralelos aos acontecimentos gerais para aprofundar a crescente separação entre a índia e o invasor. 

 

Apesar da câmera ainda enfeitada, tem-se um eixo de observação quase antropológico, que flerta com a origem biográfica do livro homônimo. Fotografias em preto e branco emulam uma linguagem do passado e o retrato de cerimônias indígenas manifestam a observação livre de culturas e rostos, encontrando paciência para sugerir um pouco do real em meio à dramatização dos arredores. Mesmo que a estrutura de um grande épico apare essa experimentação, esse uso sugere um interesse pelo registro em si mesmo, a produção de imagens pela necessidade primária de se imortalizar o passado e fazer ouvir o que foi dito há tanto tempo. 

 

O olho se concretiza como signo máximo do projeto. Imersos por entre os originários como seres camaleônicos, os colonizadores brancos adicionam olhares aos longos planos em que a câmera passeia pelo espaço. Cada qual complementa com a sua forma de interpretar aquele mundo, testemunhar as suas particularidades e processar as circunstâncias que realmente lhe interessam.

 

Para além dos dilemas atravessados por Ernest, cabe ainda observar como o conjunto se encaminha para a iminente ascensão do FBI, cuja constituição como autoridade se deu no âmbito das investigações verídicas. Paira, assim, um deslocamento das vozes que realmente vivenciaram os acontecidos, denúncia que se torna ainda mais evidente na conclusão metalinguística da obra. Essa fragmentação gera uma série ruídos entre as personagens, que impede o processamento coletivo das tragédias e suspende algumas das representações em tela.

 

Pela filiação ao cinema de indústria, é curioso observar como a direção reconhece o limite de até onde é capaz de ir. Não pela falta de alguma liberdade criativa, mas por uma noção que talvez esteja atormentado um Scorsese de oitenta anos, e que já há alguns projetos reflete sobre conceitos como a morte e legado, entre outros ideais. Uma possível evidência aparece na carga religiosa apresentada pelo filme, descartada por algumas personagens. Esteja na relação com a natureza ou em símbolos como os do próprio título, os preceitos que permitem uma compreensão de Mollie sobre si mesma acabam aprisionando o personagem de DiCaprio, soterrado por definições avessas de bases como família e moral.

 

Se colocam mais uma vez essas distâncias entre os símbolos subjetivos e seus significados, incapazes de guiar qualquer definição de coletivo ou mesmo trazer algum conforto mais pessoal. Da substituição dos presságios de morte pelas ameaças reais importadas pelos colonizadores, existe um senso opressivo de separação, que para além do desenvolvimento de personagens, passa a se inscrever na maneira como aquele mesmo espaço e os choques culturais são retratados. A câmera mais objetiva que registra ritos e relíquias passa a imprimir experimentações visuais. É o caso da coluna de fogo em determinada cena, que desenha silhuetas borradas pelo ar e é percebida, cada um à sua maneira, por diversas personagens separadas pelo perigo. São resquícios dessa incompletude constante, inscrita nos rostos de DiCaprio e Gladstone, e que proíbe a dissolução de um trauma histórico sentido por alguns e provocado por outros.

 

Autoconsciente, Scorsese filma seu novo projeto como um espetáculo que advoga, de certa forma, pela própria destruição. O esplendor técnico de uma coprodução entre a Paramount Pictures e a Apple se faz presente a cada tomada, e resgata o frescor rítmico de uma narrativa com múltiplos personagens e conflitos que se renovam a cada passagem. Nada disso, porém, parece estar entre as prioridades do diretor.

 

Incapaz de ser ainda mais direto do que em seu desfecho, o cineasta propõe um estudo de tradições, ritos e culturas disfarçado como colosso do western moderno, por mais consciente esteja do limite desse registro antropológico. É na revelação dessas limitações que ele exibe a continuidade perpétua de uma dor escorada para o extracampo, mantida pelas vítimas que ainda se vêem excluídas do processo de imortalização de sua própria história.

 

 

Biografia:

Davi Galantier Krasilchik é estudante de Cinema e Jornalismo na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), onde já roteirizou e dirigiu dois curtas-metragens. Ele também já fotografou dois projetos curriculares, além de produções por fora, e escreve críticas e reportagens para meios como a revista universitária Vertovina e o site Nosso Cinema. A sua paixão pela Sétima Arte se manifesta desde a infância, e atualmente ele trabalha na Filmoteca da TV Cultura, onde ajuda a preservar esse material pelo qual tem tanta paixão.