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Sem Coração (2023, Nara Normande e Tião) | 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

Sem Coração (2023, Nara Normande e Tião) | 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

Por Fernando Oikawa Garcia

 

“Tudo lá parecia impregnado de eternidade”
Evocação do Recife, Manuel Bandeira

 

Sem Coração (2023) é um desses filmes cuja existência parece diretamente conectada ao seu espaço. Ao longo de um verão em 1996 na praia de Guaxuma, no Alagoas, um grupo de jovens aproveita seus dias entre o mar e o mangue, brincando na areia, dançando em festas, invadindo casas de veraneio. Eles sabem todos os caminhos, conhecem quais os imóveis abandonados, quem são as pessoas dali. Nesse dia a dia, permeado por brincadeiras (lícitas ou não) e amizades cúmplices, as vivências parecem pertencer à eternidade, como é próprio da juventude. O futuro é apenas potência, a realidade parece que nunca vai se esgotar. No entanto, o tempo é imparável: esta eternidade, tal como o verão e a juventude, está condenada ao fim. É dessa morte e vida da eternidade que fala a obra de Nara Normande e Tião.

 

Para Tamara, a protagonista do filme, estas são, afinal, suas últimas férias antes de tudo se transformar. De classe mais alta que seu grupo de amigos, ela vai em breve estudar em Brasília, um ritual de passagem significativo. Ao longo do verão, Tamara e seus amigos vão descobrir alegrias e agruras que pontuam essa perda da juventude: de um lado, a busca por uma identidade, a descoberta do primeiro amor etc.; do outro, a falta de perspectivas na vida adulta, a limitação econômica, a homofobia e o racismo. Não há a ingenuidade de supor que a infância seja idílica, sobretudo para os amigos de Tamara, cuja condição social impõe violências desde cedo — não à toa, a Febem é parte da trajetória de um —, mas aquele verão se tornará marcador definitivo da perda da inocência desses jovens diante do mundo. 

 

Se o filme de Normande e Tião tem em seu centro a paixão de Tamara por Sem Coração — jovem assim apelidada por uma cirurgia que fez no peito —, tal romance está inserido numa crônica mais abrangente e nada idealizada daquelas experiências. Os cineastas não disfarçam as diferenças de classe presentes, mas tampouco fazem o filme ser sobre elas, recusando o tom de tratado sociológico ao compreender, dentro do que é possível em noventa e três minutos, todos seus personagens como figuras dotadas de subjetividades e anseios: o social surge porque as dinâmicas da vida respondem a ele.

 

Por esse desejo de capturar a singularidade cotidiana, é feliz o trabalho do elenco jovem, composto em sua maioria por atores amadores e preparado por Silvia Lourenço. Há um registro quase documental, com uma mise-en-scène livre, das interações desses jovens, marcada pela naturalidade livre das interações. No retrato de Sem Coração, interpretada por Eduarda Samara — que também fez a personagem no curta homônimo, de 2014 —, há também uma qualidade observacional no modo como as interações entre ela e seu pai pescador revelam daquele mundo e dos dois. Se o longa nasce dos espaços que registra, é certo dizer que ele ganha vida pelas pessoas que vivem e constituem esses espaços.

 

Até por isso, depende-se muito pouco das palavras para construir as relações entre os personagens, de modo que a verdade nasce do registro de momentos prosaicos. Ganha destaque, por exemplo, o momento em que Tamara conversa com sua mãe — interpretada pela grande Maeve Jinkings —, perguntando de modo cifrado sobre o amor que tem por Sem Coração. As palavras nada dizem; o que revela tudo do companheirismo das duas é a dança de mãe e filha, ao som de uma música da infância, captada em um único plano estático: a eternidade está ali. Momento tocante, em que se prova a sintonia entre direção e as atrizes.

 

Sem Coração só não é mais potente porque tem alguma dificuldade em integrar o elemento fantástico à obra. Embora desde início se acene para o fantasioso, esta faceta parece às vezes esquecida no registro cotidiano. Tamara sonha com Sem Coração e vice-versa, com as duas se encontrando diante de uma baleia encalhada. No entanto, embora o encalhamento se torne depois realidade, explora-se pouco esse signo visual tão forte. Da mesma forma, as cenas em que surgem elementos estranhos são majoritariamente isoladas, apresentadas como delírios e esvaziando o registro realista-maravilhoso. O final, quando o fantasioso ganha espaço nas trocas das garotas, é o momento em que o filme atinge seu potencial simbólico.

 

É, afinal, na recusa aos didatismos que Sem Coração, com o perdão do trocadilho, bate mais forte. Ao não buscar qualquer tipo de explicação para a fantasia que intermedia a relação das duas, Normande e Tião permitem que seu filme se transforme não só num registro etnográfico da juventude de Guaxuma, mas também lírico, no qual o amor entre as duas ganha um caráter predestinado. Cria-se, assim, uma fábula moderna de encontro, em que se prefere o sensível e o não-dito — um mergulho direto ao coração, tanto de seus personagens, como também de toda aquela realidade.

 

Biografia: 

Fernando Oikawa Garcia é graduando em Cinema na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), onde realizou pesquisa sobre o cineasta argentino Fernando E. Solanas. É diretor e roteirista de três curta-metragens, buscando refletir nas produções seu interesse pelas possibilidades de diálogo entre cinema e literatura.

 

A cobertura do 47º Mostra Internacional de Cinema São Paulo faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

Agradecemos a toda a equipe da Assessoria da Mostra por todo o apoio na cobertura do evento.

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção e Edição: Bruno Dias

Edição: Davi Krasilchik, Luca Scupino, Fernando Oikawa e Gabriela Saragosa

Edição Adjunta e Assistente de Produção: Davi Krasilchik e Rayane Lima