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A Torre Sem Sombra (2023, Zhang Lu) | 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

A Torre Sem Sombra (2023, Zhang Lu) | 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

Por Fernando Oikawa Garcia

 

“Você não acha que é vulgar falar assim?”, diz, em determinado momento, o protagonista de A Torre Sem Sombra (2023), dirigido pelo veterano Zhang Lu. Ao que o personagem ouve como resposta: “não é vulgar falar claro”. Tal interação, breve diante dos mais de 140 minutos do longa-metragem chinês, é todavia bastante sintética do dilema central dos personagens deste filme — a incapacidade de encarar frontalmente os dramas da vida. Crítico gastronômico que não ama a profissão e homem divorciado cuja filha é criada pela irmã, Gu Wentong é a figura que personifica esta crise: é um homem gentil mas amargurado, carregando angústias só para si e habitando um filme igualmente repleto de gentilezas e arrependimentos calados.

 

É importante perceber que, na obra de Zhang, exibida em 2023 no Festival Internacional de Cinema de Berlim, não há um personagem que não seja, em essência, uma pessoa boa: Ouyang, fotógrafa gastronômica, faz Gu de gato e sapato, mas tem bom coração; a irmã e o cunhado são responsáveis e acolhedores; mesmo o pai de Gu, de quem a família se afastou após a prisão do homem, é um senhor bondoso que passa seus dias solitários empinando pipas à beira-mar. E, afinal de contas, na gentileza, não existem antagonismos: embora Gu seja um homem com conflitos a resolver, estes se desenrolam apenas no confronto dele consigo mesmo, de modo que encarar seu pai será como mirar um espelho.

 

Tal qual em Drive My Car (2021, Ryusuke Hamaguchi), há aqui um exercício de reflexão sobre o passado que só acontece quando adentra a coletividade — lá, nas trocas entre o conduzido e a condutora; aqui, entre Gu e Ouyang, cuja relação oscila numa linha tênue entre a amizade e o romance. Junto à fotógrafa, mais jovem e irreverente que ele, o protagonista aprenderá a “falar claro”, relembrando do diálogo do início: isto é, constatar a existência de traumas, abrir mão da gentileza apaziguadora. Para Ouyang, voltar-se para o passado é confrontar sua orfandade; curiosamente, o orfanato onde vivera na infância fica na mesma cidade litorânea onde vive agora o pai de Gu. E, enquanto por um tempo é esse reencontro que se torna a linha guia de A Torre Sem Sombra, trata-se de uma trama que o longa, curiosamente, tarda em apresentar e soluciona muito antes de seu fim.

 

A jornada envolvendo o pai ganha destaque não por uma necessidade estrutural do drama, mas porque ela guarda nuances cada vez mais profundas que explicam a personalidade de Gu, modulando o entendimento das outras histórias que integram o mosaico narrativo. Como ponto comum a todas elas, está um senso de desolamento dos personagens diante do tempo: aquele que aumenta as distâncias, que envelhece os sujeitos, que impõe o irreversível. Como definiu bem a poeta americana Elizabeth Bishop, a vida traz consigo “a arte de perder”.

 

Dentre uma das várias cenas sobre essa arte, vemos uma reunião de amigos relembrando os velhos tempos, quando, em meio a uma cantoria nostálgica, uma mulher desata a chorar. A dor momentânea dela é similar à de Gu — é saber que a perda não se remedia. Para Gu, o problema não é retomar ou não o contato com o pai; é saber internamente se o distanciamento imposto ao pai como punição, após o cárcere por uma acusação de assédio, foi justo ou um equívoco. Vinte anos perdidos de uma relação são irrecuperáveis. E, nesse sentido, é tocante pensar que, se a vida se apresenta condenada à entropia, ao cinema de Zhang cabe registrar o instante em sua integralidade, como força oposta às perdas que registra.

 

Daí as conversas prolongadas, os planos distendidos. A dilatação temporal confere um sentido elegíaco à obra, pelo ritmo que valoriza os nadas e captura, nos tempos mortos, aquilo que o poeta Georges Perec chamou de "infraordinário": os gestos cotidianos que, embora despercebidos, preenchem boa parte do tecido da vida (abrir portas, ler, fechar e abrir os olhos). No diálogo entre a ação e a pausa, os planos vazios parecem remeter a Ozu e seus sucessores — não à toa, apontou uma vez Deleuze que estes planos do mestre japonês seriam apresentações diretas do tempo, justo ele, nosso outro protagonista. Em busca do infraordinário que se apresenta em meio à realidade de Beijing — permeada de História nas edificações e seus mitos, comentados em tela —, realiza-se um imbricamento poderoso entre cronos, o tempo cronológico, e kairós, o dos acontecimentos.

 

É enganoso, porém, presumir que a captura da rotina limite A Torre Sem Sombra ao registro realista do tempo e do espaço. Há algo de misterioso no filme, uma certa opacidade que, como memória, turva a compreensão linear e integral daquilo que se registra. Zhang exibe sua filiação ao cinema de fluxo, prescindindo de explicações da causalidade narrativa em prol do sensível. Às vezes, os personagens comentam de viagens que fizeram sem que saibamos quando; as elipses colocam o drama fora de qualquer cronologia clara. Em um dado momento, um mesmo plano revela ações de dois tempos no mesmo espaço: Gu e Ouyang caminham por um prédio abandonado — só depois vemos conversarem sobre cada uma de suas respectivas visitas ao lugar. A atmosfera se torna de um sonhar acordado.

 

Este aceno ao sonho parece, antes de tudo, um lembrete de que a compreensão da vida é limitada e aberta à multiplicidade, seja dos tempos que se repetem, seja dos gestos que se reproduzem. Ver os personagens através de um espelho, signo visual comum na obra, não deixa de ser uma forma de enxergá-los — as perspectivas são múltiplas, questões de posição e distância. Nesse abraço à indefinição das coisas, retorna-se ao próprio título: fazendo referência a uma construção histórica de Beijing, uma torre sem sombra não é de fato desprovida de sombra. Ela existe, mas só pode ser vista de muito longe. O que isso implica é: as coisas não são o que parecem, a verdade delas não é una. Descobrir as sombras, ou a ausência delas, é relembrar também, como observador, sua própria condição de sujeito.

 

 

Biografia: 

Fernando Oikawa Garcia é graduando em Cinema na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), onde realizou pesquisa sobre o cineasta argentino Fernando E. Solanas. É diretor e roteirista de três curta-metragens, buscando refletir nas produções seu interesse pelas possibilidades de diálogo entre cinema e literatura.

 

A cobertura do 47º Mostra Internacional de Cinema São Paulo faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

Agradecemos a toda a equipe da Assessoria da Mostra por todo o apoio na cobertura do evento.

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção e Edição: Bruno Dias

Edição: Davi Krasilchik, Luca Scupino, Fernando Oikawa e Gabriela Saragosa

Edição Adjunta e Assistente de Produção: Davi Krasilchik e Rayane Lima