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Fancy Dance (2023, Erica Tremblay) | 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

Fancy Dance (2023, Erica Tremblay) | 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

Por Giuli Gobbato

 

Apesar do fenômeno da miscigenação, em países como os Estados Unidos a cultura de povos originários é isolada do restante da população, tanto pelo governo quanto pela sociedade. A injustiça — ou melhor, a ignorância e negligência para com essas culturas — é a espinha dorsal de Fancy Dance (2023), de Erica Tremblay, cineasta estadunidense de origem Seneca-Cayuga, povo indígena da América do Norte. Apesar de já ter experiência na direção e  roteiros, por ser integrante da equipe de Reservation Dogs (2021, FX), série de protagonismo indígena, trata-se da estreia da diretora no formato de longa-metragem.

 

Selecionado pela iniciativa “The Indigenous List” do Instituto Sundance, IllumiNative e The Black List, que busca dar destaque a roteiros indígenas ainda não produzidos, Fancy Dance apresenta a dupla de tia e sobrinha, Jax e Roki, indígenas Cayuga. Desde o desaparecimento de sua irmã, Tawi, Jax cuida da sobrinha, enquanto tenta descobrir o que aconteceu com a mãe da menina. A polícia americana negligencia o caso, mas age rápido quando transfere a guarda de Roki para o avô branco, de fora da Reserva Seneca-Cayuga. E assim, mesmo sob risco judicial, acompanhamos a jornada das duas até o Powwow, uma reunião dos povos nativos da América do Norte, festival para o qual Roki se preparou e no qual quer honrar a tradição de dança com a mãe.

 

Durante o filme todo, é apresentado um embate entre a cultura branca e a cultura de povos nativos dos Estados Unidos, por meio da relação de Roki com a tia e com os avós. Aí, Tremblay introduz o conflito interno daqueles que já se sentem pertencentes ao espaço que habitam, mas percebem a falta de segurança simplesmente por honrarem suas identidades. E, conforme notamos o descaso da polícia e do avô com o desaparecimento da mãe da menina e com os indígenas do filme, fica a pergunta: as reservas de povos nativos existem porque são um direito deles ou porque assim os isolam longe?

 

Esse isolamento físico — acidental ou não — explica a denúncia da diretora contra a violência e o assassinato de mulheres indígenas, que se tornou uma epidemia nos Estados Unidos nos últimos anos. Mas ela acontece como pano de fundo à relação de Roki com a tia Jax, interpretada por Lily Gladstone — que recentemente também estrelou outro filme sobre violência contra povos nativos, Assassinos da Lua das Flores (2023), de Martin Scorsese. E não é coincidência o lançamento quase concomitante das duas obras. As autoridades e o sistema de justiça estadunidenses sempre foram questionados quanto às suas ações enviesadas e seletivas, desde o início da organização do Estado no país, mas mais fortemente agora, após as eleição de um novo corpo da Suprema Corte em 2020, que vêm questionando direitos já pré-estabelecidos de minorias, dentre eles, dos povos nativos.

 

A relação de Roki com o avô é apresentada como forçada, pois sua esposa tenta se conectar com a menina. Ela lhe dá um par de sapatilhas de balé, porque sabe que a garota gosta de dançar, mas com a mentalidade eurocêntrica não percebe que a importância da dança não é da atividade, é do contexto no qual ela acontece, no Powwow. Já a relação de Roki com a tia, explorada em oposição ao avô, é muito natural e leve. Enquanto caminham juntas pelas cidades, se completam de forma orgânica, trocam fluidamente entre o inglês e o Cayuga e uma responde à outra apenas com um olhar. Isso é até exemplificado nos roubos de insumos que cometem, nos quais Roki já sabe exatamente o próximo passo da tia. A dupla é um só protagonista, são um gancho forte de interesse para o espectador; são elas contra o mundo. Mas a falta de um ponto de vista narrativo mais constante sobre as duas prejudica um arco de mudança da dupla.

 

Infelizmente, Tremblay equilibra o filme todo numa corda bamba: a diretora opta em destacar o crime em prol do gênero de suspense, que gera mais engajamento, mas não permite a profundidade das discussões e ofuscou a linda relação construída entre a dupla principal de tia e sobrinha. Ainda que o mistério permita, se preocupa mais com o entretenimento do espectador do que com a crítica política que propõe; ela não discute a negligência policial estadunidense com os povos indígenas de forma mais direta e expositiva, e ofusca o discurso anti-supremacista com a conveniência da solução do caso da irmã — que pode e deve receber atenção no filme, mas é óbvia e sofre por um roteiro muito fraco para gerar interesse.

 

O objetivo da obra se contradiz com sua estratégia de realização; mas é inegável sua capacidade de impactar o mercado cinematográfico estadunidense, ao se aproveitar da popularidade do gênero de mistério, e surpreender os espectadores com seus verdadeiros momentos brilhantes. A força está na própria cultura indígena, que aparece em sua forma mais autêntica, algo possível pela representatividade na equipe. E a catarse final compensa, quando enfim a dança acontece e leva à realização que dançar e honrar talvez sejam as únicas coisas a se fazer por agora, por mais doloroso seja o adiamento da justiça.

 

Biografia:

Giuli Gobbato é cineasta, comunicadora audiovisual e escritora. Formada em Cinema pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), sempre explorou o som de todas as formas, inclusive na música. Foi montadora e diretora de som em diversos curta-metragens, além de dirigir e roteirizar dois curtas independentes. Atualmente pesquisa a acessibilidade na comunicação.

 

A cobertura do 47º Mostra Internacional de Cinema São Paulo faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

Agradecemos a toda a equipe da Assessoria da Mostra por todo o apoio na cobertura do evento.

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção e Edição: Bruno Dias

Edição: Davi Krasilchik, Luca Scupino, Fernando Oikawa e Gabriela Saragosa

Edição Adjunta e Assistente de Produção: Davi Krasilchik e Rayane Lima