logo mnemocine

kane.png

           facebookm   b contato  

A Batalha da Rua Maria Antônia (2023, Vera Egito) | 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

A Batalha da Rua Maria Antônia (2023, Vera Egito) | 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

Por Felipe Palmieri

 

A história recente do Brasil, entre muitas coisas, lançou as bases para que o discurso político retornasse à produção artística fervorosamente. A Batalha da Rua Maria Antônia (2023), segundo longa da diretora Vera Egito, chega à 47ª Mostra após vencer o prêmio principal no Festival do Rio 2023, e representa a politização como uma necessidade, tanto pelo posicionamento como filme quanto pela jornada retratada em sua narrativa.

 

O filme ilustra os eventos do dia 2 de outubro de 1968, quando estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, contrários à Ditadura Militar, e estudantes da Universidade Presbiteriana Mackenzie, à favor da repressão vigente, entraram em um conflito violento na Rua Maria Antônia, que delimitava os dois campi. O conflito não era maniqueísta ao ponto da descrição anterior, mas em essência esta era a divisão política dos alunos. A memória desse embate permanece principalmente através de seu resultado  mais conhecido: a morte de um estudante secundarista, que incitou uma marcha dos estudantes pela cidade de São Paulo para protestar pelo ocorrido. 

 

Egito se aproveita para estruturar a obra ao redor dessa consciência histórica. A cineasta retrata, portanto, a parte menos conhecida do dia fatídico, em uma contagem regressiva de 21 planos-sequência — análogos aos anos de Ditadura Militar no Brasil —, e eventualmente culminando no acontecimento que sua audiência já espera. A contagem entre os planos do filme remete ao efeito de uma bomba-relógio, de modo que a explicitação da estrutura de montagem muda completamente a relação tradicional entre filme e espectador. Cria-se então um jogo de expectativas diferente do habitual, pois o suspense não se encontra necessariamente dentro das cenas, mas naquilo as circunda. 

 

Como a própria montagem evidencia, a roupagem do longa é muito mais experimental que sua substância, tendo sido realizado em película 16mm, preto e branco, mas ainda assumindo uma postura narrativa plenamente tradicional. A estética da fotografia remete a uma certa identidade jornalística, acentuada pela justaposição de imagens de arquivo durante os créditos. A sensorialidade tátil da película se alia à linguagem de planos-sequência para criar no filme uma sensação de “fotografias vivas”, como se cada momento fosse a reencenação de um breve registro temporal. 

 

O verdadeiro diferencial da obra está no trabalho de câmera e na vivacidade do trabalho de figuração. A câmera transita com um propósito próprio e explícito, quebrando frequentemente a imersão invisível e chamando atenção para si (durante os planos-sequências, ela abandona personagens e parece seguir sua própria agenda). O trabalho, porém, oscila pela inclusão de cenas mais voltadas para o estado emocional dos personagens, agindo em prol da progressão dramática tradicional de um filme narrativo.

 

A adoção de um teor clássico — explicitado no próprio filme na referência à Poética de Aristóteles — não caracteriza um defeito por si só, mas é por vezes conflituosa com a estética e estrutura empregadas em A Batalha da Rua Maria Antônia. O arco de radicalização da protagonista Lilian, imersa no núcleo narrativo dos estudantes, é permeado de teatralidades e falas expositivas, em uma tentativa de tornar claro o contexto histórico e as intenções dos personagens. Alia-se a isso a presença de personagens arquetípicos como Benjamin, o líder charlatão, ou a professora Leda — cujo arco é o mais explicitamente artificial — na construção de um filme de guerra em pleno coração do movimento estudantil sessentista. 

 

É visível, então, uma confluência dicotômica dos gêneros cinematográficos: o filme de guerra e o drama de amadurecimento, nunca plenamente integrados. Nas cenas em que apenas um desses gêneros predomina, o filme ganha unidade e credibilidade — como é o caso de uma das cenas de sexo mais belas da memória recente, focando apenas no aspecto da juventude —, mas nas cenas em que ambos se misturam, a verossimilhança se esvai. 

 

A força motivadora do projeto, no entanto, é claramente manifesta na política e no discurso anti-ditadura. Como manifesto político, a perspectiva apresentada do ponto de vista de uma outsider do movimento estudantil é boa para revelar também o que há por trás da luta: jovens que, apesar da consciência política, são ainda jovens e inexperientes — tal qual conclui Zuenir Ventura em seu livro 1968: O Ano Que Não Terminou. A necessidade que a proposta estética do filme impõe é de uma dependência extrema do agir; da ação. Em decorrência disso, a humanidade dos personagens se perde no movimento constante entre muitos espaços e muitos núcleos, pois sua existência se torna essencialmente performática. Não é como se os personagens deixassem de existir quando a câmera os abandona, mas é evidente que as performances só acontecem na presença desta.

 


Biografia:

Felipe Palmieri é estudante de Cinema na FAAP. Absolutamente fascinado por todas as pluralidades e sutilezas que a linguagem cinematográfica é capaz de abrigar, e pelas infinitas perspectivas que foram e serão materializadas através disso.

 

A cobertura do 47º Mostra Internacional de Cinema São Paulo faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

Agradecemos a toda a equipe da Assessoria da Mostra por todo o apoio na cobertura do evento.

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção e Edição: Bruno Dias

Edição: Davi Krasilchik, Luca Scupino, Fernando Oikawa e Gabriela Saragosa

Edição Adjunta e Assistente de Produção: Davi Krasilchik e Rayane Lima