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A Memória Infinita (2023, Maite Alberdi) | 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

A Memória Infinita (2023, Maite Alberdi) | 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

Por Fernando Oikawa Garcia

A Memória Infinita (2023, Maite Alberdi) é, durante boa parte de sua realização, um documentário caseiro. Ao fim da primeira cena, vemos Paulina Urrutia – atriz e ex-Ministra da Cultura do Chile – desligar a câmera, ligeiramente desfocada, posicionada à meia distância da cama que ela partilha com Augusto Góngora. Ele não sabe quem ela é; com graça, ela apresenta os dados fundamentais do filme: ele é jornalista; ela, atriz. É também sua esposa. No retrato do convívio e do amor do casal enquanto lidam com a degeneração progressiva do Alzheimer de Góngora, momentos íntimos como esse, filmados como uma espécie de vlog pessoal, constituem boa parte do filme e dão a medida de sua intimidade.

 

Dirigido por Maite Alberdi, uma das documentaristas mais reconhecidas do Chile (La Once, Agente Duplo), o longa nasce de um longo percurso. Acordado entre a cineasta e o casal — sobretudo pelo desejo expresso de Góngora, ainda no domínio de suas faculdades mentais, de  realizar a produção —, o filme teve início apenas com filmagens realizadas pela equipe de Alberdi, a quem foi dado acesso livre à vida do casal. Mais tarde, diante do isolamento da pandemia de Covid-19, a produção entregou uma câmera para Paulina, levando ao registro de um material ainda mais privado, ao qual uma equipe profissional nunca teria tido acesso. O amadorismo se torna qualidade, e não só pelas possibilidades de registro: mesmo o desfoque não intencional da câmera, resultado da inexperiência da senhora com o aparato, mostra-se um signo em profundo diálogo com a turbidez da perda da memória.

 

Nunca se esquece do paradoxo triste de que Góngora, jornalista que tanto lutou pela reconstituição da memória histórica de seu país, agora vê as suas próprias lembranças  se esvaindo. Até por isso, existe uma parte do projeto de abraçar uma série de facetas do jornalista: desde sua atividade durante a Ditadura de Pinochet até a luta contra a doença degenerativa. Para além dos registros cotidianos do presente, Alberdi recupera uma série de materiais (reportagens de TV, textos, vídeos caseiros), numa espécie de tributo integral ao documentado. Performances de Pauli no teatro são também registradas, exibindo uma vida produtiva mesmo diante da dificuldade. No centro do filme, não está tanto a doença, mas o que existe ou existiu em suas vidas apesar da enfermidade.

 

O resultado, ao todo, não poderia ser mais tocante, principalmente porque tanto o amor quanto a dificuldade do casal se tornam muito palpáveis. Reconhecer isso, porém, não dispensa o fato de que haja talvez um certo excesso nos procedimentos melodramáticos: na trilha sonora, entre peças orquestrais e boleros românticos; na recorrência de certas situações de esquecimento. Alberdi não encontra aqui o equilíbrio de Agente Duplo (2020) — onde se escapava de qualquer armadilha apelativa ao inserir ao documentário elementos farsescos —, mas a cineasta, ao mesmo tempo, exibe a mesma sensibilidade para dar peso à passagem do tempo, por meio da confluência entre graça e crueza que pontuam um sentimento de perda.

 

E é esse sentimento, afinal, que vai ganhando corpo em A Memória Infinita. Perder a memória, afinal de contas, vai se traduzindo numa impossibilidade de ser, em que a falta de referencialidade passada impede um presente pleno — afirmação que vale no caso de Góngora, mas no caso do Chile também. A sobreposição entre a memória do jornalista e a História do país, eternamente assombrado pelos apagamentos da Ditadura de Pinochet, estabelece uma dialética constitutiva. Quando, em determinado momento, Paulina lê para o homem a passagem de um livro dele, “A Memória Proibida”, versando sobre a necessidade de recuperar a memória histórica do país, tais palavras nitidamente se aplicam para seu estado atual também. Uma memória falha, mas insistente.

 

Se os documentos e os depoimentos podem reconstituir o passado do Chile, são os materiais acumulados de sua vida (fotos, livros, vídeos) que permitem a Góngora retomar o acesso àquilo que é intrínseco à sua existência. Esta é a memória infinita, não sujeita às limitações do corpo — uma memória, no fim das contas, cuja composição inclui o próprio filme. O registro que fazem Alberdi e Paulina é um gesto contrário ao esquecimento. E, embora é claro que o filme não possa dar novos futuros ao casal, recuperar seu passado e registrar seu presente não deixa de ser, nessa situação, um gesto sensível na instância audiovisual: em cada abraço e conversa dos dois, assistimos o cotidiano não se esvair, mas sim se tornar memória.

 

 

Biografia: 

Fernando Oikawa Garcia é graduando em Cinema na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), onde realizou projeto de pesquisa sobre o cineasta Fernando E. Solanas. É diretor e roteirista de três curta-metragens, buscando refletir nas produções seu interesse pelas possibilidades de diálogo entre cinema e literatura.

 

A cobertura do 47º Mostra Internacional de Cinema São Paulo faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

Agradecemos a toda a equipe da Assessoria da Mostra por todo o apoio na cobertura do evento.

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção e Edição: Bruno Dias

Edição: Davi Krasilchik, Luca Scupino, Fernando Oikawa e Gabriela Saragosa

Edição Adjunta e Assistente de Produção: Davi Krasilchik e Rayane Lima