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Cidadão Santo (2023, Tinatin Kajrishvili) | 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

Cidadão Santo (2023, Tinatin Kajrishvili) | 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

Por Giuli Gobbato

 

Vencedor do Globo de Cristal no Festival de Karlowy Vary, Cidadão Santo (2023, Tinatin Kajrishvili) é um drama que apresenta o processo de construção e degradação da fé em um pedestal — literalmente —, através da figura de um santo local crucificado numa pequena cidade da Geórgia. Este terceiro longa da diretora Tinatin Kajrishvili, que é o representante georgiano no Oscar de Melhor Filme Internacional deste ano, conta com uma abordagem similar à de um estudo de caso, explorando, por meio de retratos dos personagens, as diversas reações que uma divindade de carne e osso pode causar ao viver entre nós. 

 

Não se sabe desde quando, mas um mineiro morto em um acidente foi crucificado e acabou virando uma pedra e um santo. Na porta da mina da cidade, todos os mineiros o saúdam no início de seus turnos, buscando proteção no trabalho, e cidadãos vêm de longe lhe fazer oferendas, tocando-lhe os pés, movidos pela sua divindade. O “santo”, porém, acaba voltando à vida e vira cidadão quando, após ser retirado para restauro — na sua casa transformada em museu —, o corpo some da cruz e aparece vivo em meio à população, como um estranho mudo. As reações são adversas, mas a própria ressurreição dele reforça a crença de muitos na potência de seus milagres. A fé em seus feitos é indiscutida quando a cachorra do velho morador da mina volta a andar por intervenção dele. É assim que descobrem que o santo desaparecido está vivo, no meio dos humanos. Nunca sua existência pareceu tão crível; seus milagres, nunca antes tão próximos e possíveis.

 

A cineasta não se demora em mostrar como agora o santo está mais vulnerável do que jamais esteve, frágil como um humano. E é justamente o aspecto tátil do personagem, a sua existência física, que o faz parecer menos. É só um pobre homem, que escuta, age de formas misteriosas e não justifica aqueles pedidos que resolveu ignorar. Assim, a população passa a questionar cada vez mais sua fé no santo próprio, sem perceber que eles mesmos construíram e defenderam a força do homem que criticam. Daí surge o caráter alegórico de Cidadão Santo: a situação fantástica é apresentada de forma que concretiza e materializa conceitos e questões abstratas sobre fé, um campo geralmente discutido apenas no plano imaginário. 

 

Kajrishvili explora a fé como a relação com o divino, através de vários personagens. Os planos não evidenciam porta-vozes, por isso a sensação de um estudo da situação surge, quase documental, sem o senso de intervenção de um drama clássico que busca reforçar uma tese. A câmera está sempre distante e paciente, criando um espaço similar ao de um panóptico; ela se coloca no olhar do santo, observa a todos na cidade de forma pausada e coletiva. O santo não fala durante todo o filme, tudo que conhecemos a seu respeito é construído em nosso imaginário através dos comentários e opiniões dos moradores da cidade, seus fiéis. Desta forma, vários pontos de vista são colocados em embate, e os conhecemos através das situações às quais o santo é exposto, quando ouve a população, quando não os responde e quando dá ou não o que lhe pedem.

 

 

Todas essas contradições da população da cidadezinha são reforçadas pela fotografia em preto e branco da obra. A escolha das cores — ou melhor, a ausência delas — apresenta uma monotonia e simplicidade da vida dessas pessoas. No entanto, um filme preto e branco é, na verdade, mais cinza que composto por essas duas cores puras, mais que o absoluto entre uma e outra. E, intencionalmente ou não, Kajrishvili parece ter optado por um visual que reforça a falta de respostas absolutas sobre a fé: é tudo sempre uma zona cinza; uma pessoa acredita naquilo que faz sentido para ela, sem necessariamente escolher entre acreditar e não acreditar. O visual também parece justificar uma certa ingenuidade dos personagens ao lidar com o cidadão santo, já que as imagens em preto e branco remetem à sensação de assistir a um filme mais antigo, de uma época na qual questionar a fé era malvisto e incomum.

 

Esse questionamento que surge em alguns personagens atua como elemento causador de inseguranças e dúvidas a respeito da divindade, nunca respondidas pelo filme. É melhor rejeitar o santo e deixá-lo longe dos humanos? Ou é melhor recrucificá-lo, retornando-o para o lugar original? A conclusão à qual a obra chega é perfeitamente resumida em sua última fala, sem tomar partido junto de nenhum dos lados da população, responsáveis por decidir seu destino. Ela não é sobre a fé, mas sim sobre as pessoas que buscam nela algum acolhimento: “eles só precisam que alguém esteja lá.”

 

 

Biografia:

Giuli Gobbato é cineasta, comunicadora audiovisual e escritora. Formada em Cinema pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), sempre explorou o som de todas as formas, inclusive na música. Foi montadora e diretora de som em diversos curta-metragens, além de dirigir e roteirizar dois curtas independentes. Atualmente pesquisa a acessibilidade na comunicação.

 

A cobertura do 47º Mostra Internacional de Cinema São Paulo faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

Agradecemos a toda a equipe da Assessoria da Mostra por todo o apoio na cobertura do evento.

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção e Edição: Bruno Dias

Edição: Davi Krasilchik, Luca Scupino, Fernando Oikawa e Gabriela Saragosa

Edição Adjunta e Assistente de Produção: Davi Krasilchik e Rayane Lima