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A Besta (2023, Bertrand Bonello) | 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

 

 A Besta (2023, Bertrand Bonello) | 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

Por Marcos Kenji

 

Gabrielle (Léa Seydoux) está na frente de uma tela verde, em um estúdio. Uma voz (em off) solta instruções para ela encenar uma situação base: pegar a faca na mesa, fugir de uma besta, que a está perseguindo, e reagir ao seu ataque. Por estar em um estúdio de chroma key, ao redor do corpo de Gabrielle, tudo pode ser permutado, customizado, renderizado com o mais profundo realismo. No entanto, o essencial é: ao ser captado diretamente pela câmera, o corpo exprime indícios de realidade que, somados à ilusão criada por efeitos especiais, encenam um drama. 

 

Em seu novo filme A Besta, Bertrand Bonello explora as infinitas possibilidades que os avanços tecnológicos oferecem ao seu cinema na encenação de um melodrama em um ambiente completamente virtual. Para o diretor, assim como ele explica em um painel no Festival de Nova York (NYFF) de 2023, o melodrama é simples: duas pessoas se amam, e todo mundo sabe, menos eles. Assim como em um bom filme de suspense, o excitante em um melodrama é aguardar ansiosamente para que dois personagens fiquem juntos. Partindo dessa ideia, Bonello leva o melodrama, da história de amor de Gabrielle e Louis (George Mackay), a um extremo: suspende a realização desse amor em três tempos históricos.

O ano é 2044. Gabrielle está buscando um emprego e, para conquistar isso, ela é obrigada a passar por procedimentos de expurgo de emoções de vidas passadas, como uma maneira de conformidade social a normas criadas por inteligências artificiais. Desta forma, como se fosse um sonho, ela passa a revisitar suas vidas em 1910 e em 2014. E Louis é protagonista nas vidas dela. 

 

No segmento de 1910, introduzido logo na segunda cena, o filme encena o encontro de Louis e Gabrielle em uma festa da aristocracia francesa. Em uma troca de palavras desajeitada, os personagens rememoram um tempo em que estiveram juntos e apaixonados. No entanto, esse romance nunca se realizou, já que Gabrielle teria tido uma premonição mórbida. Tendo em mente somente esses elementos, é possível concluir que esse  segmento é uma adaptação livre da novela A Fera na Selva (1903), de Henry James. Contudo, de imediato, a novela e o filme se desencontram: ao invés de um homem que desperdiçou um grande amor à espera de uma “grande recompensa”, Gabrielle é amaldiçoada pelo sentimento de espera por uma tragédia. Louis e ela embarcam em um amizade, que se transforma em um triângulo amoroso com o marido de Gabrielle, conforme os dois investigam a causa do presságio. Nesse momento, uma vidente anuncia esbraveja para ela: “Ele faz amor nos sonhos”.  

 

Henry James é um romântico. Suas obras partem da noção clássica de amor — a platônica, que, acima de qualquer desejo carnal, se dá no mundo inteligível e, por consequência, tem uma procedência puramente espiritual. De maneira semelhante ao anunciado pela vidente, o amor em A Besta é transcendental: Gabrielle é destinada a amar Louis. Todavia, tanto Bonello quanto James sabem que não é simples assim; ambos colocam o amor platônico como produto de um olhar distanciado para a pessoa amada e com um medo paralisante de tomar partido. É como se apaixonar pela ideia de alguém, ao invés da pessoa em si. Em tons neoclássicos, a tragédia em A Besta paralisa o melodrama, e isso provoca ressentimento e, por consequência, violência. 

 

A tragédia ganha forma no segmento de 2014 com a transformação do gênero abordado em um terror slasher de invasão domiciliar. Esse segmento é distante, semelhante ao trabalho de John Carpenter em Halloween (1978), com uma câmera pervertida que persegue a personagem. No caso, esse é o olhar de Louis, que, ao criar uma obsessão por Gabrielle, persegue e atenta contra a vida dela. Uma série de vídeos amadores, para o YouTube, revelam verbalmente suas insatisfações e sua visão de mundo, de um jeito exponencialmente ameaçador. Ele é a besta que, com ideias contíguas aos incels e red pills, está “farto” de ser rejeitado pelas mulheres. O que frustra a fruição do amor é esse male gaze recheado de ressentimento e de um tratamento que transforma Gabrielle em um objeto de desejo e alvo de violência. Isso é inevitável.

 

O mais frustrante de tudo é que, por mais que uma série de elementos sugiram a transcendentalidade do amor dos dois, eles não vão ficar juntos. O amor é impossível aqui. O trauma que impede o tratamento de Gabrielle, o seu presságio mórbido, é o medo da besta que há dentro dele. Por mais que, em 2044, ela tente encontrar Louis e implore para que os dois vivam o amor, ele nega. É como em A Besta na Selva, com o homem esperando uma “grande recompensa”, ou, de uma certa maneira, como Afire (2023, Christian Petzold), outro filme exibido na 47ª Mostra, com um escritor tão neurótico e bitolado que não vive a vida. Esses personagens não vivem a vida, são meros espectadores passivos. 

 

Bertrand Bonello trata aqui de neo-romantismo, com a problematização formal do olhar masculino. A centralização da câmera em Gabrielle e, por consequência, em Léa Seydoux, expressa o melodrama como algo decepcionante, na medida em que o olhar masculino destitui o amor de beleza. Gabrielle expressa a reciprocidade no amor, um esforço para resolver uma incomunicabilidade que parece inerente aos homens e às mulheres. As situações se repetem, as formas se repetem; a questão é entender como o cinema pode extrair desse cotidiano formal, dentro das imagens digitais, alguma autêntica relação humana. Por mais que A Besta expanda para relações bem mais complexas, no fundo o que mais importa é a relação entre duas pessoas, e os sentimentos conflituosos infligidos aos espectadores.

 

Biografia:

Marcos Kenji é graduado em Cinema pela FAAP, onde realizou quatro curtas-metragens nas áreas de som, arte e assistência de direção. No momento, está se especializando na técnica de som, com o objetivo de atuar na área e escrever com autoridade sobre o assunto. É colaborador da Mnemocine, com um texto publicado na revista e fez parte da cobertura do Kinoforum em 2023

 

A cobertura do 47º Mostra Internacional de Cinema São Paulo faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

Agradecemos a toda a equipe da Assessoria da Mostra por todo o apoio na cobertura do evento.

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção e Edição: Bruno Dias

Edição: Davi Krasilchik, Luca Scupino, Fernando Oikawa e Gabriela Saragosa

Edição Adjunta e Assistente de Produção: Davi Krasilchik e Rayane Lima