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A questão da indústria cinematográfica brasileira na primeira metade do século

Após o que a historiografia consagrou como a "bela época" do cinema brasileiro, período compreendido entre 1908 e 1911, no qual alguns exibidores produziram filmes alavancando a produção nacional em termos quantitativos, temos o início da ocupação quase total do mercado brasileiro pelo produto estrangeiro. Com a I Guerra Mundial, a produção norte-americana açambarcou o mercado brasileiro, afastando suas principais concorrentes européias – França, Itália e Dinamarca. Data daí o início da instalação das agências de distribuição das principais empresas produtoras norte-americanas – Fox, Paramount, MGM, etc.
A produção no Brasil de filmes ficcionais – então denominados "posados" – diminuiu consideravelmente e a qualidade era muito inferior quando comparada ao produto norte-americano. A produção, a partir de então, foi majoritariamente de documentários e cine-jornais – então chamados "naturais" –, permitindo a continuidade da atividade, mas em termos absolutamente artesanais. Neste nicho do mercado não havia concorrência estrangeira e existia um público ávido em ver acontecimentos como, por exemplo, o carnaval – Carnaval do Rio em 1913 (dir: Alberto e Paulino Botelho, 1913) –, as ressacas do mar – A Formidável Ressaca da Semana Passada (prod: União Paulista, 1921), a chegada de personalidades importantes – Visita do Rei Alberto da Bélgica (dir: Igino Bonfioli, 1920), o futebol – Paulistas Versus Cariocas (dir: Paulino Botelho, 1925), paradas militares – A Grande Parada Militar do Centenário (dir: Alberto Botelho, 1922) –, eventos políticos – Washington Luis / Melo Viana (dir: Igino Bonfioli, 1926) –, etc. Além disso, logo a elite social brasileira viu no cinema um meio para divulgar a si própria, financiando inúmeros filmes nos quais o espectador poderia apreciar importantes famílias da sociedade – Em Família – Reminiscências do Passado: 1910-1914 –, fazendas – Fazenda Ribeiro Magalhães (prod: Carlos Comelli, 1919) –, fábricas – Visita às Grandes Oficinas dos Srs. Martins e Barros (dir: Antônio Campos, 1912) –, políticos inaugurando todo tipo de coisa – Inauguração Oficial da Estrada de Rodagem Rio-São Paulo (1928) –, etc. Por último, também filmes publicitários eram uma fonte de renda – Bordados à Máquina da Singer (dir: Igino Bonfioli, 1918).

Apesar da situação geral bastante ruim, Antônio Leal – então um dos fotógrafos e diretores mais experientes do Brasil – realizou em 1916 no Rio de Janeiro Lucíola, "posado" que obteve grande sucesso de público. Segundo Alex Viany, Leal teria construído um estúdio para a feitura desse filme, marcando "... uma das primeiras tentativas de industrialização de nosso cinema" (1). Mas todo o sucesso de Lucíola não foi suficiente para manter o estúdio em funcionamento ou Leal realizando filmes de ficção.

Na década seguinte, por volta de 1924 em São Paulo, houve outra tentativa de industrialização no sentido atribuído por Alex Viany, ou seja, cristalizada na construção de um estúdio. Desta feita através de Adalberto de Almada Fagundes, próspero industrial dono de uma grande fábrica de louças. A Visual Filmes e a sua única produção, Quando Elas Querem (dir: Paulo Trincheira e E. C. Kerrigan, 1925), muito impressionaram dois críticos cinematográficos cariocas que tentaram naquele momento compreender o atraso do cinema brasileiro, estamos falando de Adhemar Gonzaga e Pedro Lima. Mas o fracasso financeiro de Quando Elas Querem levou Adalberto de Almada Fagundes a retirar-se da atividade cinematográfica.

Adhemar Gonzaga e Pedro Lima, entre 1924 e 1930, coordenaram a primeira campanha em defesa do cinema brasileiro através de colunas veiculadas nas revistas Para Todos, Selecta e Cinearte. Nesta campanha, entre outras questões, os dois críticos buscaram compreender quais as razões do atraso da produção e quais as soluções possíveis que permitiriam a sua industrialização. Acompanhando e discutindo intensamente a produção brasileira daquele momento, eles compreenderam que muitas vezes os filmes não conseguiam chegar às salas, pois os exibidores, devido à sua aliança comercial com os distribuidores estrangeiros, tinham grande resistência em passar o produto nacional. Como solução para esse impasse, os críticos cariocas propuseram uma lei que obrigasse os cinemas a exibirem filmes nacionais. Mas a influência ideológica da dupla não se restringiu a isso. Propuseram ainda: a concentração de esforços em torno da realização de "posados", a criação de uma distribuidora única de "posados" nacionais; a isenção da taxa alfandegária cobrada pelo governo na importação de filme virgem, pois esta taxa era vista como um dos maiores fatores de atravancamento no desenvolvimento de uma possível indústria cinematográfica brasileira; um modelo de industrialização calcado, sobretudo, em Hollywood, ou seja, com o esquema de produção baseado no estúdio e na política do star system; e um modelo artístico fortemente inspirado pelo cinema americano dos anos 20.

No início dos anos 30 encontramos Adhemar Gonzaga à frente da mais arrojada tentativa industrial dentro do período que estamos analisando, trata-se da Cinédia. Gonzaga construiu não apenas um estúdio moderno, mas ainda importou os melhores equipamentos da época, montou laboratórios, criou uma distribuidora de filmes e contratou nomes de valor, tais como Humberto Mauro e Almeida Fleming. Apesar de ter produzido filmes de sucesso como os carnavalescos Alô, Alô, Brasil! (dir: Wallace Downey, 1935) e Alô, Alô, Carnaval! (dir: Adhemar Gonzaga, 1936) ou o melodrama O Ébrio (dir: Gilda de Abreu, 1946), a empresa teve grandes dificuldades em manter-se ativa até a sua paralisação em 1951, quando o terreno onde o estúdio estava instalado foi vendido com a finalidade de pagar as dívidas (2) . E, significativamente, a forma encontrada por Gonzaga para sustentar a Cinédia ao longo dos anos 30 e 40 não foi através dos filmes de ficção, mas da feitura de documentários e cine-jornais.

Adhemar Gonzaga também participou ativamente das lutas políticas da classe cinematográfica. Em 1932, durante o Governo Provisório de Getúlio Vargas, entrou em vigor a primeira legislação brasileira sobre cinema, a lei 21.240, e, dentre suas várias medidas, além de diminuir o imposto sobre o filme virgem também previa a exibição compulsória de filmes brasileiros. Adhemar Gonzaga teve influência na redação da lei. Entretanto, essa lei previa a obrigatoriedade de exibição de um curta-metragem nacional em cada programa composto por um longa estrangeiro, e não a exibição do longa nacional, conforme o crítico defendia. Somente em 1939 foi decretada uma lei que tornou obrigatória a exibição de um longa-metragem brasileiro por ano em cada cinema. Em 1946, foi decretada nova lei, passando a obrigatoriedade para três filmes de longa-metragem brasileiros por ano em cada cinema. No período analisado a lei de obrigatoriedade estimulou a produção nacional. Posteriormente, principalmente nos anos 70, foi um instrumento importante para que a produção nacional avançasse significativamente no mercado interno.

Adhemar Gonzaga também participou ativamente da fundação da Distribuidora de Filmes Brasileiros (D.F.B.), em 1935, que congregava os principais produtores e visava evitar que a concorrência entre eles tornasse a remuneração dos filmes aviltada (3). Nos anos 60, a experiência da Difilme serviu para possibilitar a produção de vários filmes do Cinema Novo e nos anos 70 a distribuidora da Embrafilme foi uma das alavancas para o avanço do produto nacional no mercado interno.

Em 1933 foi criada no Rio de Janeiro, pela atriz e produtora Carmen Santos, a Brasil Vox Filmes, cujo nome foi alterado em 1935 para Brasil Vita Filmes. O estúdio da empresa ficou pronto em 1936, mas já no ano anterior o sucesso de Favela dos Meus Amores (dir: Humberto Mauro) parecia anunciar uma empreitada de sucesso. Porém, os filmes seguintes produzidos e estrelados por Carmen Santos – Cidade Mulher (dir: Humberto Mauro, 1936), Argila (dir: Humberto Mauro, 1940) e Inconfidência Mineira (dir: Carmen Santos, 1948) – fracassaram nas bilheterias e levaram o estúdio a um funcionamento instável até o falecimento de Carmen Santos em 1952.

No final dos anos 30, em São Paulo, um grupo de fazendeiros investiu capital na criação da Companhia Americana de Filmes, construindo um moderno estúdio e comprando equipamentos. Sua única produção, A Eterna Esperança (dir: Leo Marten), ficou pronta apenas em 1940, foi parcialmente filmada em locações no Nordeste e fracassou comercialmente.

Por último, merece destaque a Atlântida, criada em 1941 no Rio de Janeiro por Moacyr Fenelon, Edgar Brasil, Alinor Azevedo, José Carlos Burle e Arnaldo de Farias. Através de um novo sócio, o Conde Pereira Carneiro, dono do Jornal do Brasil, a Atlântida conseguiu o capital necessário para construir um estúdio algo improvisado, comprar equipamentos de segunda mão e partir para a produção de cine-jornais e documentários. Dois anos depois da sua criação, a companhia produziu o seu primeiro longa-metragem de ficção, Moleque Tião (dir: José Carlos Burle), filme estrelado por Grande Otelo e que narrava de forma romantizada a vida desse grande ator. A fita foi um sucesso de público e crítica, estimulando a continuidade da companhia. No rastro dos filmes musicais carnavalescos, que já então faziam grande sucesso de público, a Atlântida produziu Tristezas Não Pagam Dívidas (dir: José Carlos Burle e Rui Costa, 1944), primeira película na qual Grande Otelo e Oscarito formaram uma dupla. Foi a Atlântida que consolidou a chanchada como o principal gênero do cinema brasileiro do ponto de vista comercial, e até por volta de 1960 este seria o gênero cinematográfico mais popular do Brasil. Também alguns filmes com temática mais "séria", tais como Vidas Solidárias (dir: Moacyr Fenelon, 1945), que abordava a questão da socialização da medicina, ou Também Somos Irmãos (dir: José Carlos Burle, 1949), cujo enredo abordava a questão do racismo, foram realizados ainda nos anos 40.

A partir de 1946, motivado, sobretudo, pela lei 20. 493, que obrigava todos os cinemas a exibirem pelo menos três longas-metragens brasileiros por ano, o maior exibidor do país e dono da distribuidora União Cinematográfica Brasileira, Luiz Severiano Ribeiro Jr., passou a investir na Atlântida, tornando-se no final da década o proprietário da empresa, após o progressivo afastamento dos primeiros sócios. A verticalização empreendida por Luiz Severiano Ribeiro Jr. foi fundamental para a longevidade e continuidade das atividades da Atlântida e para o sucesso de público dos seus filmes (4).

No campo das idéias é necessário destacar o "Manifesto da Atlântida", escrito por Alinor Azevedo e Arnaldo de Farias. Este documento, que marcou a fundação da empresa, era uma espécie de carta de intenções e, dentre outras coisas, afirmava "..., quem se propuser, fundado em seguras razões de capacidade, a contribuir para seu [do cinema brasileiro]desenvolvimento industrial, sem dúvida estará fadado aos maiores êxitos." (5)

O trecho acima citado tem importância por ser, possivelmente, a primeira demonstração no meio cinematográfico brasileiro de consciência da necessidade de adequar a produção e a proposta de industrialização à realidade concreta do mercado. E a Atlântida colocou isso em prática, pois, ao invés de gastar grandes somas com equipamentos e estúdios que não condiziam com a realidade econômica do momento, construiu um estúdio bastante improvisado e procurou comprar equipamentos de segunda mão. Tanto Moacyr Fenelon quanto Alinor Azevedo terão muita influência sobre o pensamento industrial cinematográfico de um dos críticos que inspiraram as propostas do Cinema Novo, estou falando de Alex Viany, mas aí já se trata de uma outra história, fora do período que nos compete abordar.


* Arthur Autran é doutor pelo Depto. de Multimeios do Instituto de Artes - Unicamp e Professor do curso de Imagem e Som da UFSCAR.